O baú das ilusões
Havia um homem que vivia escrevendo, isolado, no campo. Isolado de tudo e de todos. Sua morada; uma choupana. Era só ele e sua velha máquina de escrever, cujo tinido vibrante das teclas ecoava pelo espaço. Não era muito instruído. Não tinha diplomas. Mas lia muito. Um autodidata. Só lhe bastava saber ler e escrever.
Contemplava todos os dias o alvorecer, enlevado, e ao cair da tarde entristecia. Era o momento de maior inspiração. Então escrevia, melancólico, à hora do Ângelus. Seus dedos obedeciam o que lhe ditava a mente e a alma, impávidos. Piedoso, fazia uma breve oração, tão breve que nem havia palavras. Precisava de tantas palavras para escrever, mas para orar não eram necessárias.
Envelheceu. Sentindo que seus dias findavam, tomou de uma pá e pôs-se a cavar. Uma águia voejava no céu em círculos e observava tudo com atenção. O ancião juntou todos os seus escritos num velho baú e enterrou-o. Ali estava tudo que escreveu durante a vida. E assim, com o cenho franzido, falou consigo mesmo:
- Pronto! Ali está o meu tesouro. Tudo que a minha alma ditou. Tudo que senti, verdadeiramente, neste velho coração enternecido, nesta minha vida empedernida. A bradar aos ventos e ouvir o que as pedras tinham a me dizer. Minha vida está ali. Ali está meu espírito, aqui uma velha carcaça. Um baú de ilusões, a quem poderia interessar? Daqui a pouco morrerei e se ninguém me achar por aqui, penso que logo alimentarei os abutres, que deitarão sorte sobre os meus despojos.
O ancião parecia adivinhar pois logo caiu morto, ao crepúsculo. E não foi visto por ninguém. Ninguém passava por ali, nem um caçador, nem um viajante. Exceto a águia que, intrigada, lá de cima perguntou-se:
- O que será que o velho enterrou ali? Deve ser algo muito valioso. Ouro? Sim, um baú cheio de ouro.
A noite caía e a águia, de hábitos diurnos, recolheu-se e voltou na manhã seguinte quando o cadáver, fedorento, já impregnava o ar. Astuta, foi ter com a toupeira:
- Há um grande tesouro enterrado ali e preciso que cave pra mim.
- Cê tá maluca! (falou a toupeira) - Eu vivo aqui, todo esse território é meu e nunca vi nem achei nenhum tesouro embaixo das minhas terras.
- Veja o cadáver daquele velho ali. (disse a águia e a estúpida toupeira olhou, incrédula) - Ontem à tarde eu flutuava ao vento e vi lá de cima quando ele enterrava ali um baú cheio de ouro. Depois morreu.
- E por que um velho enterraria um baú de ouro aqui?
- Raciocina, sua anta! - Zangou-se a águia. - Ele não tinha herdeiros, não tinha pra quem deixar a sua fortuna. Por isso enterrou. Eu como sou esperta e vejo tudo lá de cima... tirei minhas conclusões, entendeu?
A toupeira então começou a minar a terra atrás do baú. Quando achou, disse:
- Pronto, eis o baú! Vamos dividir o ouro em partes iguais, afinal, você não poderia escavar sem a minha ajuda, nem mesmo com toda a sua perspicácia. (disse a toupeira, bufando, cansada)
Á águia pousou sobre o baú e disse:
- Você só terá um terço do ouro. Isso te basta. Não saberia mesmo o que fazer com tanto ouro. Sua vida é minar a terra e sua mente é curtíssima, por isso é chamada uma toupeira. Enquanto que eu, sou o símbolo da astúcia, viajo altaneira pelo céu e a minha sagacidade é invejada pelos animais da terra.
A coruja, de hábitos noturnos, despertou do seu sono com aquela algazarra e, atenta, com seus olhos enormes, ficou olhando silenciosa. Sem compreender o que se passava; um cadáver fedendo próximo a um baú, sobre o qual a águia fazia-se prevalecer à uma estúpida toupeira perto de uma cova aberta.
- Meio a meio, sem mim você jamais conseguiria botar a mão no ouro. (replicou a toupeira) - Além do mais, ocê num causa inveja em nós. A raposa também é muito astuta.
(completou a simplória toupeira).
- Nem tanto quanto eu. (respondeu a águia) - Além do mais ela não pode voar. Sou muito superior.
- E a coruja? (retrucou a toupeira, convencida de que ela própria não podia jamais superar a águia).
- A coruja é muito sábia mas sabedoria não basta. Não tem a minha sagacidade, minha astúcia e perspicácia. Nem é tão vivaz e sutil como eu...
A coruja, sonolenta, mas atenta, sentiu-se atingida no seu brio, mas ignorou e continuou quieta. A toupeira cedeu, derrotada. Acabando por concordar com a terça parte e a águia então ordenou :
- Abra o baú. Ou acha que vou fazer isso com o meu belo bico.
A toupeira, já irritada, abriu o baú.
- Quê droga! Só tem papéis aqui! (exclamou a águia, surpresa, endoidecida e cheia de raiva).
- Só papéis! Está cheio de papéis escritos! Só isso! Quê velho maluco!
- A toupeira riu-se às cambalhotas: - Quanta astúcia, hein! Quanta esperteza, dona águia! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!
A águia, frustrada e envergonhada, ruflou as asas e voou em disparada, reclamando: - Velho caduco! Fez-me de idiota! Pra que serve um monte de papéis escritos? E pra quê enterrar?
A toupeira enfiou-se na terra e foi embora zombando da águia. A sábia coruja deixou seu abrigo na árvore, tirou tudo do baú e com a ajuda de dois coelhos, empurraram o defunto para dentro da cova aberta e cobriram de terra. Prevendo um funesto espetáculo que teria que assistir; o ataque dos abutres, que já sobrevoavam o local atraídos pela catinga putrefata.
Depois pousou sobre a montanha de papéis e começou a escarafunchar, detidamente, lendo os escritos. Todos eles.
- Nossa! Isso é um verdadeiro tesouro! (exclamou)
- Descanse em paz, meu velho! Seu tesouro será preservado.
Dizia a coruja, lendo e cada vez mais se encantava...
- Puxa! Eis aí um grande homem! Quanta sabedoria!
Exclamava, esgazeada, devorando os papéis com avidez. Lia e comentava aos ventos: - Quê riqueza há aqui! Pobre homem! Talvez imaginasse que ninguém daria valor a tudo que escreveu. Quê grande artista! Morreu no anonimato!
Edir Araujo
("Contos Avulsos" pág. 31 – 24 de agosto de 1981)