Chalalá, Cap. IV
Uma tarde de quarta-feira, em dezembro, uma semana antes do Natal, Marilda dá duas pancadinhas na porta envernizada e entra no escritório do vereador.
- Vereador, a Krakov, aquela atriz de novela que agendamos para hoje, já está aí.
- Ah, sim. E já está na hora de atendê-la?, perguntou Chalalá, sem interromper o que escrevia.
- Não, ainda não. Ela é que chegou trinta minutos mais cedo. São duas e meia ainda.
- Tudo bem, peça-lhe para entrar. Termino logo com ela e ganho esse tempo.
Krakovievna Mansur era uma atriz de teatro, cinema e televisão. Popularizou-se a partir das novelas de TV. Mas não levou muito tempo, após o sucesso na TV, para receber convites para protagonizar peças de teatro e filmes, dada à sua incrível capacidade de interpretação e talento. Tinha o reconhecimento da maioria da crítica. Era conhecida também como Krakov Mansur, A Petulante, pela economia de palavras e pelo olhar irradiar um misto de tristeza com um afetado desinteresse pelo interlocutor. Era jovem – 23 anos – e extremamente bela, exigência fundamental para aparecer na telinha. Curiosamente seu rosto era tanto mais belo quanto mais triste. Olhos verdes, nariz afilado, cabelos curtos na altura das orelhas, olhar perdido no devaneio da ocasião.
Sentou-se após receber um beijinho protocolar de Chalalá em cada uma das faces, voltando o vereador para a sua mesa meio desconcertado pela beleza da atriz ali em carne e osso.
- Puxa, quer dizer que estou tendo a honra de receber a grande Krakov Mansur, não é isso?, começou Chalalá, depois de vir pensando no que dizer a partir do momento em que a moça entrou na sala.
- Que nada, senhor vereador, eu é que estou honrada de poder vir conhecê-lo depois de tudo o que se diz a seu respeito, respondeu Krakov, os olhos no interlocutor, dessa vez com o maior interesse.
- Como vão os trabalhos? Muitos compromissos, muitos convites?
- Tem havido alguns, sim. Não posso me queixar.
- E todo esse sucesso? Não acaba sendo estressante?
- Sim, é verdade. Mas essa pergunta também lhe cabe, respondeu Krakov com um leve sorriso.
- Às vezes incomoda, dada à freqüência com que somos requisitados. Mas não deixa de ser gratificante, muito embora eu tenha a convicção de que dificilmente terei condições de realizar tudo o que um dia pretendi ou vier a pretender.
- A minha presença aqui tem um pouco a ver com isso.
- Como assim, Krakov?, perguntou Chalalá, agora menos extasiado pela beleza da garota.
- É que a gente acaba ganhando alguma coisa. Na verdade possuo considerável soma em dinheiro, no banco, do qual grande parte poderia dispor para ajudar outras pessoas, principalmente crianças carentes e desprotegidas.
- Existem inúmeras associações de caridade, ONG’s sem fins lucrativos ou até pessoas físicas aptas a receber doações para pobres ou outros excluídos, ponderou Chalalá.
- Só que não são confiáveis, em sua maioria. Por isso vim procurá-lo. Disponho de três milhões para isso. Não vão me fazer falta. Além disso, é possível que eu consiga algum desconto no meu Imposto de Renda.
- Olha só, Krakovievna Mansur, vamos pensar um pouco. A única coisa que faço sozinho são meus quadros, além, é claro, de necessidades mais imperativas. Tenho que conversar com o meu pessoal. Saber que idéia eles teriam a respeito. De qualquer modo, agradeço-lhe a confiança em mim depositada, embora eu não seja um banco.
- Ah, mas não vim aqui para lhe fazer um empréstimo ou lhe pedir que guarde com o senhor essa quantia para mim, interrompeu Krakovievna, sorrindo mais desinibidamente.
- Sei disso. Estava apenas brincando, posseguiu Chalalá, sorrindo também. Dentro de dez dias, se você estiver na cidade, conversaremos de novo. Até lá já saberei o que lhe dizer.
- Está bem, Vereador. Estarei esperando.
Logo que ela saiu, Chalalá começou a pensar no que poderia ser feito com a verba oferecida. Viu várias alternativas e as anotou para discussão posterior com a sua equipe de trabalho, na esperança de que eles sugerissem por coincidência uma delas. Percebeu logo que, qualquer que fosse o projeto a ser desenvolvido com o oferecimento de Krakov, ele significaria certamente oferta de empregos. E isso era extremamente desejável, embora significasse mais aborrecimentos e responsabilidades para a coleção de Chalalá.
Tendo tomado conhecimento da oferta da atriz, o grupo de Chalalá optou pela possibilidade de ser construído um prédio moderno, de pavimento único, de dimensões aproximadamente iguais a de uma escola para 200 ou 300 alunos, em que funcionasse algo como um centro de estudos e atividades profissionalizantes para a educação de menores de rua. Haveria necessariamente a possibilidade de alojamento para, no máximo, 150 crianças que não tivessem responsáveis ou lares onde residissem normalmente. A idéia era a de possibilitar a diminuição do número de menores, aparentemente sem lar ou responsáveis, vivendo pelas ruas da cidade. O centro seria inteiramente administrado por universitários em fase de estágio. Teriam a remuneração de dois salários-mínimos como ajuda de custo por 4 horas de trabalho, durante um semestre, no mínimo. ONG’s, firmas de grande porte e fundações seriam organismos a serem contactados para a viabilização financeira do projeto, proporcionando recursos para atender aos gastos com manutenção, mobiliário, rouparia, pessoal, alimentação, etc. Seria estudada a possibilidade de se obter ajuda também da Prefeitura, através de eventuais programas de apoio aos universitários, mediante convênios entre a Prefeitura e entidades públicas ou privadas.
Ainda eufóricos com a decisão a respeito do que fazer com a verba oferecida pela bela Krakov, os integrantes da equipe de Chalalá, sempre aplaudidos e estimulados pelo próprio, começaram a fantasiar ações da mesma natureza em diferentes setores. Na área de saúde imaginaram a construção de um centro de atendimento tipo Posto de Atendimento Médico (PAM), desses que existem na Prefeitura. Seria uma entidade de caráter privado, pessoa jurídica, mantida por verbas fornecidas por empresários ou industriais de peso que poderiam abater suas despesas nas declarações de rendimentos de suas firmas. No que se refere à área de segurança, imaginaram a estruturação de um centro de estudos e atividades destinadas à reordenação da conduta pessoal das pessoas, isto é, daqueles que achassem necessária a modificação de seu tipo de comportamento. Uma coisa utópica dessa natureza deveria ter tido basicamente o dedo de Chalalá. Imaginaram um centro, também construído com o dinheiro de empresários e firmas, destinado a estudos e discussões sobre corrupção, tráfico de influência, relação policial-bandido, a dinâmica dos presídios, malversação do dinheiro público, etc. Para a área de transportes, pensaram na estruturação de um espaço – providência que iria levar ainda algum tempo – destinado ao desencadeamento de ações que cobrassem das autoridades a reativação da malha ferroviária urbana e interurbana, buscando uma alternativa para o transporte tanto de pessoas como de produtos. Todas essas atividades, pensava Chalalá, iriam forçosamente significar pólos geradores de emprego.