Memórias de um Soldado

O menino sentia pelo avô um orgulho muito grande, para ele, o velho senhor era um herói.

Ainda pequeno, o garotinho parecia ser mais inteligente do que a idade lhe permitia.

No escritório de seu velho herói, sempre observava a grande estante de cor escura, ali, naquele lugar, estava aquilo que seu avô mais apreciava, um arsenal de porta-retratos. Eram muitos, ainda sem saber contar muito bem, o garotinho já havia contado cerca de trinta fotos, todas em preto e branco.

Com a ajuda da avó, o menino, agora, sabia reconhecer o avô em todas elas.

Naquela época, ele, ainda jovem, carregava em sua mão, um fuzil, conhecido como “Fuzil Ordinário”, além disso, ele também carregava em sua farda uma cruz vermelha e a bandeira da sua pátria, Brasil.

As fotos que o menino mais gostava, eram aquelas que tinham como paisagem, lá ao fundo, a formosa Itália.

A senhora Beti, avó do menino, sempre lhe contava histórias sobre aquele tempo, em que o velho herói era soldado, e que contra a vontade, teve que lutar na guerra. Ele era médico combatente, fazia o seu trabalho perfeitamente.

E naquele dia lá estava o menino olhando as fotos outra vez.

O senhor João, avô do menino, aproximou-se do escritório, em silêncio, não queria assustar o netinho.

Ele encostou-se à porta e esperou.

Ficou olhando e olhando.

Finalmente, quando o menino se virou, viu o avô. Correu para um abraço que sempre lhe trazia conforto e esperança.

- O que tanto lhe atrai naquelas fotos Leo? - perguntou o avô ao neto.

- Eu gosto de soldados, eu sei onde você ta em todas elas - respondeu o garotinho sorrindo e apontando para as fotos.

O avô não soube o que dizer, mas não deixou de falar algo.

- Então vamos, me mostre quem sou eu, quero ver se você sabe mesmo.

Ambos sorriram.

O pequeno Leo partiu em disparada, correndo em direção aos retratos, mas em seu caminho, ele tropeçou em uma cadeira, que ficava ao lado da mesa do escritório. Isso vez com que o menino caísse e acidentalmente na queda, ele foi de encontro à grande estante, derrubando assim alguns retratos. Um em especial foi ao chão, partindo em pedaços o vidro que protegia a foto.

Felizmente nada de grave aconteceu, o senhor João acudiu o neto rapidamente, sem se importar com as fotos.

Logo depois de fazer o netinho parar de chorar com o susto e o medo de apanhar por ter quebrado um quadrinho, o avô foi dar conta dos cacos de vidro.

Quando levantou o retrato, seu corpo congelou, era a última foto que tirara na Itália, um dia desastroso que o fez abandonar a carreira como médico. Aquele foi o dia em que ele gostaria de esquecer para sempre, não queria ter vivido.

Leo correu até o avô, e viu em seus olhos um mar de lágrimas.

- Porque ta chorando vovô?

Ele nada respondeu, apenas abraçou o netinho e fez dele o ombro amigo.

Assustado com a situação, Leo também começou a chorar, nunca havia visto o seu herói daquele jeito, estava com medo.

- Para de chorar vovô, você não pode chorar - disse o menino.

- Tem razão querido - disse João acariciando a face do neto, logo depois lhe deu um beijo e levantou.

O netinho preocupado se voluntariou para levar a caixinha com os cacos para o lixo, e assim foi feito.

João ainda com a foto em mãos caminhou até a mesa do escritório, arrumou a cadeira que o neto tropeçara, deu a volta e sentou-se em sua cadeira estofada, do outro lado da mesa.

Olhou fixamente aquela imagem, ainda preto e branco, paralisado no tempo, sabia que não viveria aquilo de novo, mas sua mente arrastava-o para o passado, torturando-o como um prisioneiro.

Ano de 1945 - Itália - Proximidades de Monte Castelo

Estava frio, muito frio.

Nossos agasalhos pareciam não esquentar, os soldados dormiam juntos, quase um dentro do outro, somente assim era possível esquentar um pouco mais, mesmo assim não era o suficiente.

Dia seguinte...

- Corre João, não vai dar tempo!

Estávamos dentro de uma casa de uma família italiana, nossa inimiga. Eu não era nenhum carrasco, ainda possuía um coração devotado a salvar vidas e era isso que estava fazendo, salvando vidas, seja ela de soldados aliados ou não.

Momentos antes trocamos tiros contra soldados italianos, como sempre, foi horrível. Eu não me envolvia diretamente nos combates, mas tinha que estar lá para socorrer os feridos em campo de batalha.

A cidade estava em ruínas, muitas casas estavam em pedaços. Em algumas delas era possível ver as famílias ainda agonizando, algumas baleadas, outras soterradas pelos escombros.

Infelizmente nas horas de batalhas eu deveria manter a atenção nos soldados, ficar em alerta. Se conseguíssemos vencer e contornar a situação a nosso favor, eu voltaria para prestar socorro.

Em minhas mãos estava uma criança de aproximadamente doze anos de idade, foi baleada acidentalmente nas trocas de tiros entre a “FEB” e soldados italianos.

Conseguimos conquistar parte da cidade, mas a grande concentração ainda estava mais adiante.

Usei muitos medicamentos para tentar salvar a menina, ela parecia resistir, um pouco mais de esforço e ela estaria salva. O projétil estava praticamente em minhas mãos, eu podia vê-lo. Ela havia levado três tiros, era um caso grave, mas eu parecia estar contornando a situação.

Infelizmente perdemos alguns amigos, um deles era Sebastião, ele carregava o rádio e o telefone de campo da nossa companhia. Ele estava ao meu lado, morto.

Os aparelhos não paravam de chiar, aquilo estava matando meu cérebro. Eu podia ouvir vozes ao fundo, parecia que alguém estava tentando falar, mas não fiz questão de pegá-lo.

A vida da menina era mais importante.

As ordens eram seguir em frente, missão Monte Castelo. Meus companheiros vieram me chamar, era hora de ir. Eles perambulavam pela casa, alguns roubaram alguns pertences, outros apenas olhavam o que sobrou da casa além de quase toda a família morta.

Eu disse para seguirem em frente, que logo os alcançaríamos, a garota estava praticamente estável, assim acreditávamos.

Então eles se foram.

O que estava fazendo era errado perante os olhos dos oficiais, eu seria punido por isso, mas naquele momento aquilo pouco me importou.

Mauricio e Pascácio ficaram para me ajudar e proteger. Eles não se esqueceram de pegar o rádio e o telefone.

Pensei em levar a menina comigo, mas não podia. Então rezei para Deus ajudá-la, pois eu já havia feito o possível para salva-la.

Coloquei a garota na cozinha, era o único local menos destruído, a mesa ainda estava intacta, então a limpei e coloquei a menina ali em cima.

Eu e meus amigos não percebemos nada.

Tiros começaram de repente e vinham de trás de nós.

A cozinha parecia estar explodindo, os tiros vinham aos montes, sem mira e precisão, apenas atiraram contando com a sorte, que parecia ajudá-los.

Eram italianos, vieram não sei de onde, mas acabaram encontrando a mim e meus amigos.

Não tivemos tempo e reagir. Presenciei novamente a morte de camaradas.

Se não bastasse, a garota que cuidei com tanta dedicação, também foi baleada, centenas de tiros.

Incrivelmente não fui atingido. Eu estava sem arma, havia deixado na sala. Olhei para cima e lá estava a janela da cozinha.

Por um momento os italianos pararam de atirar, eu estava atrás de uma parede caída. Eles caminhavam com lentidão e cuidado. Aproveitei a calmaria para correr o mais rápido possível.

E assim o fiz.

Pulei a janela, partindo o vidro em pedaços. Sofri alguns cortes na face, mas resolvi não cuidar deles naquela hora.

Aquela era a parte de trás da casa, havia uma pequena floresta, fugi para o seu interior.

Horas depois fui encontrado por outros soldados da FEB. Eu estava próximo de Monte Castelo. Segui a caminhada com eles.

Perdi a vontade de cuidar, tudo o que eu havia feito foi-se por água abaixo. A menina estava morta. Era tanta violência que eu já não agüentava mais. Decidi largar as seringas e empunhar armas de verdade, assim o fiz perante Monte Castelo.

A cruz vermelha voava ao vento, a bolsa médica foi repassada para outro, já estava cansado de lutar batalhas incertas, estava cansado de sentir as vidas escorrerem como águas entre meus dedos.

Era hora de invadir Monte Castelo, a batalha já acontecia há dias, meus comparsas estavam lá, pude vê-los.

Empunhei o “Fuzil Ordinário” e corremos para a batalha, gritamos Brasil.

Era 21 de fevereiro.

A vitória era nossa.

Raphael O Lord
Enviado por Raphael O Lord em 04/02/2011
Reeditado em 04/02/2011
Código do texto: T2771908
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.