José Reinaldo F. Martins Filho - A arte de filosofar
Opinando e Transformando
José Reinaldo F. Martins Filho
Doutor em Filosofia pela UFG e em Ciências da Religião pela PUC Goiás, em que atua como professor em nível da graduação, mestrado e doutorado. É o atual coordenador do Bacharelado em Filosofia do IFITEG. Desenvolve pesquisa de Pós-Doutorado em cooperação entre a PUC Rio e a PUC Chile.
Em sua opinião, o que é cultura de paz?
Para mim, cultura de paz diz respeito a uma extensa colaboração entre os seres humanos, em suas mais diferentes áreas de atuação e valendo-se de múltiplos mecanismos para consolidar e manter uma das necessidades prementes à vida social, qual seja: a paz. Eis porque para mim ao menos duas observações preliminares devem ser feitas a esse respeito. Em primeiro lugar, que pensar a paz como uma necessidade vital, de igual condição em relação à manutenção da vida, da subsistência, implica num significativo desenvolvimento da capacidade cognitiva que caminhou pari-passu ao aperfeiçoamento e à conquista da sociabilidade. Esse percurso remete a um longo itinerário na evolução da espécie humana, que pouco a pouco aprimorou estratégias de comunicação e de boa convivência, que fizeram de sua condição fundamental de distinção da natureza, especialmente dos demais animais, a capacidade de uma relação não violenta com o meio e com os outros, mediada pela política, pelo diálogo, e, mui ulteriormente, pelas formas mais avançadas de respeito que hoje conhecemos. No entanto, como anunciei acima, para mim uma outra dimensão também deve ser considerada ao pensarmos numa cultura de paz, e aqui faço referência, entre outras possibilidades, ao que podemos refletir com a ajuda de um autor de crucial importância para a delimitação dos pontos de acesso ao pensamento ocidental. Falo de Agostinho de Hipona, no século IV da era cristã. Evoco Agostinho por um simples motivo: pelo fato de esse grande pensador ter insistido na impossibilidade da paz como uma realização passível de plenitude na vivência política. Notadamente, àquela altura, num contexto de constantes conflitos, o filósofo se dirigia à impossibilidade de paz na constante tentação das invasões estrangeiras, na disputa dos povos por terra e domínio. Em nossos dias, no entanto, concordo com Agostinho sobre os obstáculos à plenitude da paz em nível da convivência social, mas por um motivo bastante divergente. Para mim, uma paz completa, como essa almejada por muitos, implicaria, necessariamente, no silenciamento de direitos e de diferenças; de vitalidades pulsantes, solapadas sob a hegemonia dos grandes, que podem manter a paz às custas do domínio, da força, uma paz feita por violência. É aqui que, concordando com Agostinho, ainda que falemos de uma cultura de paz, o realmente possível entre nós é a concórdia, uma postura de não violência, de tolerância (e essa palavra é bastante insuficiente) à diversidade e, quiçá, com muito esforço, de respeito. Assim, talvez a paz possa dar lugar a algum movimento – necessário e bem-vindo – garantidor de direitos e conquistas, a concórdia.
Como podemos difundir de forma coerente a paz neste vasto campo de transformação mental, intelectual e filosófica?
Começo pela constatação. De fato, vivemos num tempo de constantes transformações, e reconheço isso como um dado muito positivo. Cresci ouvindo dos mais velhos que “as coisas estavam mudando”. Ao longo de minha formação, não raras vezes ouvi dos professores: “não estamos numa época de mudanças, mas numa mudança de épocas”. Até certo ponto, concordei com eles. De um ponto em diante, tomei outra interpretação como viável: na verdade não estamos num tempo de mudanças, ou numa mudança de época, mas na consolidação da mudança como regra, como novo modo de ser do tempo presente. Como diria o sociólogo Zygmunt Bauman, tudo o que era sólido se liquefez, e em meio a esse maremoto institucional, a esse “degelo das calotas sociais”, cada um de nós deve alcançar o seu apoio de sobrevivência, a forma de flutuar na ausência de amparos em que se agarrar. Digo que vejo isso como um fator positivo, porque se, por um lado, o constante frenesi, as transformações a que estamos submetidos, pode causar insegurança e medo, por outro, faz com que rompamos muitas barreiras que na realidade nunca existiram (ainda que nos fizessem sentir seguros, que limitassem nossas possibilidades, que legitimassem nossos discursos). Para Max Weber a cultura é uma teia de sentidos que nós mesmos tecemos, embora nela estejamos amarrados. Num tempo de movimento, as possibilidades de sentido se dilatam. Consequentemente, as possibilidades do que podemos ser ganham maior abrangência. Mas como, e aqui retorno à sua pergunta, não nos perdermos num horizonte tão amplo, e, mais que isso, contribuímos na promoção de uma cultura de paz em tempos tão movimentados?
Para mim, a filosofia (e as humanidades de maneira geral) tem aí uma contribuição incontornável. Ela nos ensina que embora estejamos ligados à natureza por vínculos de ordem biológica, somos igualmente a centelha de uma potência muito mais elevada, somos capazes do pensamento. Mas não de qualquer pensamento. Ao dizer pensamento aqui me refiro ao refinamento do espírito, ao constante aperfeiçoamento de uma capacidade que nos projeta ao além de nós: nas obras que construímos, no patrimônio imaterial e material, nas artes, nas relações que tecemos e entretecemos. Não basta, então, dizer que o ser humano é um animal racional, é preciso reconhecer que o adjetivo aí imposto nos obriga ao esforço por cada vez mais superarmos a nossa condição. No tempo dos antigos gregos vários pensadores relacionaram esse esforço ao movimento dos navegantes quando em alto mar percebiam a escassez dos ventos. Sem vento para movimentar as velas, era preciso recorrer aos remos, o que chamavam segunda navegação. Platão faz referência a isso ao denotar o esforço da razão como tentativa de romper o ciclo natural, a manifestação instintiva do animal humano na sua relação com o mundo, substituindo-a por uma relação espiritual. Esse é o processo realizado em toda forma de educação, pelo que educar é sempre um gesto de amor para com toda a humanidade.
Como você descreve a cultura de paz e sua influência ao longo da formação da sociedade brasileira/humanidade?
Responder a essa questão nos faz remeter e dar continuidade ao que vínhamos discutindo na questão anterior. O fato de sermos, em geral, compreendidos como animais racionais não significa que sejamos sempre portadores de uma atitude consequente. Dito de outro modo, ser racional nem sempre equivale a ser razoável. O exercício de uma vida ética, a promoção de direitos e dignidade para todos, não diz respeito a uma iniciativa natural, mas à acomodação do espírito humano numa determinada percepção do mundo que o cerca, uma percepção irrecusavelmente moldada pela educação. Note como o primeiro comportamento de um indivíduo a respeito de algo que não conhece é a desconfiança, o temor. Trata-se de um critério de sobrevivência no mundo da natureza. O animal que não desconfia do que lhe é estranho, fatalmente perece. Torna-se “preza fácil” às adversidades do meio. Essa postura também é comum entre as crianças pequenas, em que o instinto vital fala mais alto que a formatação da razão: a criança não come algo que nunca viu logo na primeira impressão, precisa ser convencida. Esses exemplos apenas nos ajudam a recordar que, embora estejamos na crista da onda de um desenvolvimento societário da sociedade mundial, ainda não perdemos completamente nossos vínculos biológicos. Nascemos completamente biológicos para morrermos quase completamente culturais. Mas ainda assim temos em nós mecanismos que são legados por anos e anos de evolução da espécie; mecanismos diretamente ligados à luta pela sobrevivência, dos mais fortes ou mais astutos. Falar de paz nesse contexto não é possível sem o papel precípuo da educação, que, como estou insistindo, molda os espíritos, incute a repetição como forma de acomodar ímpetos que cada vez mais vão se tornando uma lembrança opaca, que cada vez mais vão firmando a nossa distância com relação ao mundo dos outros animais e fortalecendo a nossa condição de sempre-ultrapassamento com relação à nossa origem. Ao falar sobre isso sempre me recordo das palavras do Padre Antônio Vieira, o paiaçú, na linguagem dos índios que tanto protegeu. Existe um aforismo de Vieira que diz o seguinte: “há muitas misérias que não são fruto de ignorância, mas toda ignorância é uma miséria”. Acredito completamente nisso. Toda ignorância é uma miséria, porque toda ignorância é geradora de violência, de fundamentalismos, de desrespeito e, em última instância, de morte do outro, da diferença; de anulação da diversidade. Note-se que os maiores gestos de violência são propagados por ignorância. Não ignorância como sinônimo de ingenuidade, mas o comportamento aprisionado numa leitura estreita da realidade, que com o tempo tende a ser ultrapassada – ainda que suas consequências dificilmente possam ser revertidas. Hoje, quando olhamos para trás, para o legado da história que nos antecedeu, encontramos centenas de exemplos para o que pode ser o alto preço da ignorância: povos desrespeitados, poderes legitimados às custas da opressão de culturas dinâmicas e altamente ricas. Aos poucos fomos substituindo as armas pela palavra, a violência física pelo diálogo, pelo acordo que fomenta a concórdia. Isso a despeito de alguns desdobramentos mais atuais que chamam a nossa atenção para a sempre iminente possibilidade de regressarmos a um estado regressivo da humanidade, quando fechamos nossos ouvidos à voz da razão e da consciência.
A cultura, a educação liberta ou aprisiona os indivíduos?
Para manter fidelidade com o que tenho dito até aqui, seria natural supor, portanto, que irei responder: a cultura liberta os indivíduos. Diria até mesmo que a cultura e a educação libertam da esfera do individual, tornam o indivíduo (esse jeito de ser ensinado pelo jugo do capitalismo) um pouco mais comunitário, menos fechado em si mesmo. Mas essa resposta não seria completamente honesta, não seria completamente verdadeira com o que eu acredito. Para mim, cultura e educação também aprisionam, mas é preciso que se entenda bem o que penso ao afirmá-lo. Muitas pessoas conhecem a famosa alegoria da Caverna, interposta por Platão no VII livro de sua coletânea A República. Sem repetir aqui toda a história, lembro o risco aludido pelo autor, envolto no questionamento sempre presente ao indivíduo que se libertou das amarras da caverna e lançou-se à luz do dia, deixando de ver as sombras que antes supunha como realidade em função da beleza real do que há para ser contemplado. O dilema desse indivíduo é justamente esse: voltar e resgatar seus companheiros que ainda ficaram presos no interior da caverna, correndo o risco de ser novamente aprisionado ou, até mesmo, morto, ou guardar a descoberta adquirida apenas para si. Essa forte tensão acompanha qualquer pessoa que tenha se disposto ao caminho do conhecimento. Cada novo passo implica novos dilemas com relação ao mundo em redor e consigo mesmo, novas apostas, novos riscos, sem possibilidade de previsão. Isso significa dizer que a educação também aprisiona, já que uma vez que o olhar esteja liberto, jamais regressará à sua condição anterior. O mundo não será mais o mesmo sonho encantado de antes. Os monstros da fantasia darão lugar aos verdadeiros monstros que assolam a vida social, os combates se darão no nível da realidade, com perdas que serão concretas, sentidas, choradas. O caminho da educação, por isso, ainda que se acene como o único possível para a libertação e para a implantação de uma cultura da paz, também é um caminho que aprisiona, aprisiona às responsabilidades, ao dever e à voz da consciência. Aprisiona a ver o mundo em sua verdadeira face, sem maquiagens suficientes para aplacar a sua nudez. Talvez por isso não seja um caminho em que muitos perseverem. Sobre isso, aliás, permita-me contar uma breve anedota, a fim de ilustrar o que disse. Ao atender um de seus pacientes, que sofria de episódios de completa surdez, um médico orientou-lhe a deixar a bebida. Passados alguns dias o médico encontrou o paciente em um passeio pelo parque. Aproximando-se dele, ergueu o volume da voz e cumprimentou-o. Eis que o paciente reagiu dizendo: “acalme-se, doutor, conforme sua indicação, deixei a bebida, agora escuto muito bem”. O médico ficou bastante feliz pelo resultado e se despediu. Alguns dias depois a mesma cena se repetiu. Dessa vez o médico cumprimentou o homem com voz normal, e, para sua surpresa, recebeu de volta a alocução: “o que você disse?” Estranhando o caso, o médico questionou o que havia acontecido, pelo que recebeu a seguinte explicação: “Doutor, como você indicou, deixei a bebida e voltei a escutar muito bem. Ocorre que não gostei do que estava ouvindo, por isso voltei a beber!” Ora, essa breve narrativa, que aprendi do psiquiatra vienense Viktor Frankl, pode muito bem ilustrar o que disse acima. A educação e a cultura libertam, mas também aprisionam. E nem todos já se encontram em condição de pagar o preço pela relativa libertação.
Comente sobre o espaço digital, destacando sua importância na difusão do despertar da humanidade.
Talvez tudo o que discutimos acima tenha, nos dias atuais, maior expressão no espaço digital. É bastante conhecida a referência do filósofo e romancista italiano Umberto Eco, de que a internet teria dado voz a quem não tinha nada a dizer. Sobre isso, chego a complementar, como tenho repetido há algum tempo aos meus alunos, que a internet fez com que o “sagrado direito à opinião” fosse confundido com o “sagrado dever à opinião”. Assim, as pessoas se sentem compelidas a emitir uma opinião sobre todos os assuntos, mesmo quando não têm nada a dizer, quando não fizeram sequer uma reflexão mais profunda sobre o assunto em questão. É inadmissível, por isso, o papel altamente nocivo das mídias sociais como disseminadoras de mentiras e de discursos superficiais, que não conduzem ao amadurecimento da capacidade de leitura do mundo, mas tornam os indivíduos reféns de sua superficialidade. Alguém que começa lendo os contos dos irmãos Grimm (Chapeuzinho Vermelho, Rapunzel, A bela e a fera), poderá evoluir à leitura de clássicos mais densos e expressivos, de Cervantes a Goethe, ou a Machado de Assis e João Cabral de Melo Neto. O leitor do Facebook ou do WhatsApp, porém, dificilmente continuará a leitura em conteúdos mais densos. Ao contrário, se tornará afeiçoado àquele tipo de exposição da notícia: instantâneo, superficial, descomprometido, irresponsável. Esse é um problema bastante sério e que temos aprendido a enfrentar pouco a pouco. É motivo de grande preocupação que o Brasil se encontre entre os países em que a população mais acredita em fake news. Apesar disso, também não posso encerrar a contribuição das mídias de comunicação digital apenas em seu aspecto nocivo. Seria retrógrado e até mesmo um comportamento idiota simplesmente me opor ou fechar às tecnologias que já estão aí, que já estabeleceram o seu espaço de ação e impacto. Como comecei dizendo nessa entrevista, o mundo está em transformação e, como nos ensinaram as teorias evolucionistas do século XIX, somente perduram aqueles que se adaptam e que aprendem as novas estratégias de sobrevivência. Sou um educador jovem que, com tantos outros, início a terceira década do século XXI. Portanto, não posso me dar ao luxo de simplesmente banalizar mecanismos tão potencialmente positivos como a internet e tudo o que ela encerra. Se esses dias de pandemia da covid-19 enfatizaram a fragilidade de um sistema de ensino que é excludente, de uma estrutura material completamente sucateada em nível público, de professores mal remunerados e com condições de trabalho digno ignoradas, também nos ensinaram a viabilidade de algumas possibilidades que até recentemente baníamos de nosso arsenal antes mesmo de podermos testá-las. Para mim, então, o ponto de equilíbrio a esse respeito reside em não deixarmos de apontar a ferida, denunciar os limites resultantes do domínio da técnica, da supervalorização de estruturas e interfaces em detrimento das relações humanas reais e imediatas, ao mesmo tempo em que também precisaremos nos valer com todas as nossas forças dos recursos e mecanismos disponíveis. Se a internet é espaço de propagação da violência e da ignorância, temos trabalho redobrado, fazendo também a nossa parcela de contribuição, cada um de nós em sua área de atuação. Os jornalistas, nesse sentido, têm muito a contribuir. Os professores também. Iniciativas como essa que você inaugura são muito bem-vindas. O intelectual deve, enfim, sair de seu gabinete, “dar a cara a tapa” na ágora hodierna. Fomentar o diálogo e dialogar, não se fechar na segurança de sua classe ou na bitola de seu laboratório. Somente desse modo o pensamento se faz em curso e a onda avassaladora do que há de ruim poderá ser confrontada por um material de qualidade, à altura do seu enfrentamento.
Qual mensagem você deixa para a humanidade?
Deixo uma mensagem de agradecimento a todos os que contribuem nesse projeto, especialmente a você, Dhiogo Caetano, pela iniciativa e pela gentileza do convite. É bastante interessante o modo como você expõe essa última pergunta: uma contribuição para a humanidade. Sempre pensei que ao desempenharmos bem a função que nos é confiada, seja em que circunstância histórica ou geográfica nos encontrarmos, estaremos contribuindo com a humanidade toda. Que esforços como esses sirvam de inspiração a tantos outras iniciativas que serão despertas. Que a cultura da paz, que não cala o clamor dos que clamam por justiça, supere todo ódio, instaure o respeito e a colaboração entre todos.