MILLÔR FERNANDES NO "ESTADÃO"
'Sou um crente porque creio na descrença'
Millôr Fernandes permanece, aos 84 anos, como um dos mais finos pensadores brasileiros
Ubiratan Brasil
Aos 84 anos, Millôr Fernandes não revela sinais de desgaste. Se sua obra continua a frutificar - a Desiderata, por exemplo, acaba de reunir em uma caixa os volumes Novas Fábulas Fabulosas e Novos Contos Fabulosos, seleção de artigos inéditos em livros -, ele se mantém como um dos mais finos pensadores brasileiros. Autor de uma obra cujo conjunto soma mais de cem peças, uma infinidade de desenhos, traduções e meia centena de livros, Millôr passa boa parte do dia em seu confortável estúdio, no bairro carioca de Ipanema.
Ali, onde uma televisão vive constantemente ligada, mas sem som (“De vez em quando, dou uma espiada e, por conta da falta de qualidade, volto correndo ao meu trabalho”), Millôr conversou com o Estado na tarde de quarta-feira, quando a sessão secreta do Senado absolveu o presidente da casa, Renan Calheiros (PMDB-AL). Ele soube do resultado pelo telefonema de um amigo, segundos antes do anúncio pelas emissoras.
“É por isso que minhas fábulas são amorais”, divertiu-se Millôr, responsável pela valorização de um gênero literário tão conhecido universalmente mas que, sob sua ótica, se transformou em sátira da grande esculhambação que é a vida humana. Autor de frases inesquecíveis que bem traduzem o cotidiano (“Generalizando-se a corrupção, restabelece-se a Justiça” e “Todos os países são difíceis de governar. Só o Brasil é impossível” são algumas), ele consegue tratar de qualquer assunto sem perder a esportiva.
Millôr iniciou sua carreira aos 14 anos, na revista O Cruzeiro. Criou publicações que se tornaram referência como Pif Paf e foi um dos fundadores do Pasquim. É autor de 24 peças, entre elas Flávia, Cabeça, Tronco e Membros, É... e Liberdade, Liberdade. Deve-se a ele a tradução no Brasil de importantes clássicos do teatro, especialmente da obra de Shakespeare.
Artista de tantas ferramentas e com um raciocínio tão rápido que, às vezes, atropela as próprias palavras, Millôr conversou sobre quase tudo, pontuando as falas com uma gargalhada marota, como se observa a seguir nos seguintes tópicos.
PASQUIM:
A reedição do Pasquim, que muitos teriam feito algo terrível, solidificou o espírito do jornal, em bela seleção feita pelo Sérgio Augusto e Jaguar. O Ziraldo, que é um maluco, não percebeu que o período histórico tinha acabado e tentou reeditar o Pasquim, o que só desmoralizou o jornal.
IVAN LESSA
Nós o cultivamos como escritor maldito e ele gosta disso.
FÁBULAS E CONTOS
Não participei da seleção, deixei tudo por conta da editora (Marta Batalha) que pesquisou em meus arquivos. Mas tenho impressão que deve ser um material de quinta ordem e, por isso mesmo, vai vender muito.
PAULO COELHO
Ele deve ter razão no que diz e escreve, pois vende 200 milhões de livros, viaja na Transiberiana. O mundo é feito assim. Mas continuo achando seus livros uma merda.
SARNEY E FERNANDO HENRIQUE
A obra do Fernando Henrique é uma porcaria, escrita por um Sarney barroco. Tenho uma amiga que estudou com ele e o achava admirável, mas logo se decepcionou. Para mim, a figura do scholar, do grande erudito, não existe no Brasil.
MACHADO DE ASSIS
Desde a escola, somos condicionados a acreditar que se trata de um grande escritor. Assim, todo mundo repete isso, mesmo sem ter lido uma linha. Eu nunca disse que não gostava de Machado de Assis, mas o considero um escritor de segunda - afinal, na época dele tínhamos o Proust. Machado era um burocrata. Não entendo, por exemplo, por que tanta discussão sobre a possível traição em Dom Casmurro - só faltam encomendar agora o teste de DNA da criança para tirar a dúvida. Afinal, a se julgar pelas cartas que escreveu para o Escobar, o Bentinho era uma bicha louca, que só não saiu do armário porque não era comum na época.
RENAN CALHEIROS
Sua absolvição não é um fato ocasional. Ele é um subletrado, dono de uma mentalidade que representa um tipo de político que ainda existe no Brasil. Aquele que não pode deixar o poder sem ter se beneficiado.
MEMÓRIAS
Não preciso escrever, pois basta juntar meu trabalho. Comecei na imprensa com 14 anos. Costumo dizer que nunca conheci ninguém famoso porque todos grandes nomes do jornalismo brasileiro já eram meus conhecidos antes da fama. Logo todos viraram vedetes. Inclusive eu. Mas de um assunto sobre o qual eu jamais vou falar é minha vida pessoal. Nunca tive nenhum problema (muito pelo contrário), mas não acho que interesse a alguém.
ESCRITOR
Não me considero um autor. Minha vocação sempre foi a de ser atleta. Era um grande nadador. Eu gostava de me meter em tudo, até boxe. Mas em tudo que me meti, fui um medíocre.
TEATRO
Uma das melhores peças que escrevi foi Flávia, Cabeça, Tronco e Membros, que tem 23 personagens. Nem sempre, porém, é compreendida pelos encenadores. Escrevi também algumas que não foram encenadas. É o caso, por exemplo, de Duas Tábuas e Um Caixão, que escrevi para a Fernanda Montenegro. Ela interpretaria uma mulher que vem da Inglaterra e que pretende trabalhar no teatro, ao lado de um jovem ator. Em um determinado momento, a mulher começa a falar sobre a espera da morte. Acho que, com Fernanda interpretando, seria arrepiante. Não sei por que minhas peças são encenadas e também por que não são encenadas. Lembro de um texto, Um Elefante no Caos, que ficou anos sem nenhum diretor se interessar até que um grande amigo, João Bethencourt, se interessou. Acho que a demora é explicada pelo absurdo da história sobre um incêndio que consome um imóvel durante seis meses, porque na hora em que os bombeiros quase conseguem apagá-lo falta água para terminar o trabalho. Eu sempre a achei divertida, especialmente cenas como a que aparece um bombeiro comendo bolinho de bacalhau, como se nada tivesse acontecendo. E tem também um bando de terroristas que, para despistar, começa a falar na língua do P. Eu ainda colocava, na porta do teatro, as piores críticas - lembro até que o Paulo Francis escreveu, pomposo: “Millôr é pré-marxista, preso ao sistema ético familiar.”
LIBERDADE
Tudo o que eu gostaria de dizer está publicado no texto que escrevi para a edição do livro Areopagítica, clássico de John Milton. Ali eu prego pela liberdade de descrença em frases como “Só existe uma liberdade de ser livre: ser o opressor”, “A liberdade absoluta só existe em momentos limites, quando não se tem mais nada a perder”, “O carcereiro não pode vigiar o prisioneiro o tempo todo: o encarcerado pode fugir, donde o prisioneiro ser filosoficamente mais livre que o carcereiro”, “As prisões mais sujas, todos sabem, são as mais limpas”. Lembro ainda de uma conversa que tive com Odylo Costa, Filho, quando trabalhávamos no Cruzeiro. Ele me disse: “Millôr, eu conheço tua bandeira (eu nunca soube que tivesse uma!), mas pode ficar tranqüilo que te dou toda liberdade.” Eu respondi: “Odylo, me perdoe, mas você não pode me dar toda liberdade - você apenas pode tirá-la.”
HUMOR
O tipo de humor que eu gosto está resumido na epígrafe que inventei para a edição completa dos meus pensamentos e frase. Diz o seguinte: “Tenho quase certeza que, no Méier, em certa noite de tempestade, fui barbaramente assassinado. Mas isso faz muito tempo.” Depois disso, quem disse que eu preciso de psicanalista?
PSICANÁLISE
Sou um ser humano auto-analisado, não preciso fazer análise. Inveja todo mundo tem, por que eu deveria acreditar ser um defeito? Somos fracos, vaidosos, mas podemos conter isso. Sempre gostei de notoriedade, mas popularidade, por outro lado, é vulgar.
SHAKESPEARE
Sou um dos maiores vendedores das peças de Shakespeare no Brasil. Sei, por exemplo, que Rei Lear vendeu mais de 70 mil exemplares. Hamlet, 50 mil. Já os meus livros não vendem tanto. O que gosto nesse trabalho é mostrar as brincadeiras lingüísticas que Shakespeare fez no inglês. Como, por exemplo, os trocadilhos de Hamlet: em uma determinada fala, ele responde de forma genial à mãe, que o trata por ‘primo’: “Perfila-me como primo porque não primo como seu filho.”
Fonte: O ESTADO DE SÃO PAULO, em 15/09/2007
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