Entrevista de Ignacio Romanet com Noam Chomsky, 1ª Parte

Apresentamos a seguir, subdividido em partes e traduzido por mim do espanhol para o português, um trecho da entrevista de Ignacio Romanet com Noam Chomsky, ocorrida em Buenos Aires, Argentina, de 12 a 14 de março do corrente ano, por ocasião do Fórum Internacional pela Emancipação e Igualdade, organizado pelo Ministério da Cultura e pelo Secretário de Coordenação Estratégica do Pensamento Nacional.

Ignacio Romanet é um jornalista galego, diretor do periódico francês Le Monde Diplomatique.

Noam Chomsky é linguista, filósofo e ativista político, professor de Linguística do MIT (Massachusetts Institute of Technoilogy).

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Ignacio Ramonet: Noam, no dia 9 de março passado, Barack Obama decretou o “estado de emergência” nos EUA pela “ameaça inusitada e extraordinária” que representaria a Venezuela para a segurança nacional de seu país. O que pensa você desta declaração?

Noam Chomsky: Temos que ser cuidadosos e distinguir dois pontos nessa declaração. Por um lado, um feito real: a imposição de sanções a sete funcionários da Venezuela. De outro lado, um aspecto bem mais técnico, isto é, a maneira como se formulam as leis estadunidenses. Para que um presidente imponha uma sanção, ele deve invocar essa declaração ridícula segundo a qual se pretende que haja “uma ameaça à segurança nacional e à existência dos EUA”. Trata-se do aspecto técnico do direito estadunidense. É tão ridículo que, de fato, nunca foi usado. Porém, desta vez insistiu-se nele pela ocorrência na América Latina. Em uma declaração habitual quase nunca se menciona todo esse contexto e creio que essa é a nona vez que Obama invoca uma “ameaça à segurança nacional e à sobrevivência dos EUA”. Porque se trata do único mecanismo ao seu alcance mediante o qual a lei o permite impor sanções. Ou seja, o que conta são as sanções. O resto é uma formalidade absurda; uma retórica obsoleta da qual poderíamos prescindir, mas que, em todo caso, nada significa.

Embora às vezes, sim. Por exemplo, em 1985, o presidente Ronald Reagan invocou a mesma lei dizendo: “O Estado da Nicarágua é uma ameaça à segurança nacional e à sobrevivência dos EUA...”. Porém, neste caso era verdade. Porque ocorria num momento em que a Corte Internacional de Justiça (CIJ) havia ordenado aos EUA que pusessem fim aos seus ataques contra a Nicarágua mediante o uso indevido dos chamados “Contras” contra o Governo Sandinista. Washington não deu importância. Por seu lado, o Conselho de Segurança das Nações Unidas também aprovou, naquele momento, uma resolução que pedia a “todos os Estados” que respeitassem o direito internacional… Não mencionou nada em particular, mas todo mundo sabia que a referência era feita aos EUA.

A CIJ havia pedido aos EUA que pusessem fim ao terrorismo internacional contra a Nicarágua e que providenciassem importantes reparações por meio de pagamentos à Managua. Porém, o que fez o congresso americano foi aumentar os recursos das forças (os “Contras”) financiadas por Washington que atacavam a Nicarágua. Significa dizer que a administração Reagan se opôs à resolução da CIJ, violando o que nela se decidira. Nesse contexto, Reagan calçou suas botas de cowboy e declarou que a Nicarágua era uma “ameaça à segurança dos EUA". Você há de se recordar que, naquele mesmo momento, Reagan pronunciou um célebre discurso dizendo que “os tanques da Nicarágua estão a apenas dois dias de marcha de qualquer cidade do Texas...”. Ou seja, declarou que havia uma “ameaça iminente”. Bem, segundo Reagan, aquela “ameaça” era uma realidade. Porém, agora, não. O discurso de Obama é uma fórmula retórica, uma expressão técnica, digamos. Claro, trata-se de dar à declaração um aspecto dramático adicional, com o intuito de introduzir-se no Governo da Venezuela. Algo que Washington quase sempre faz nesses casos.

IR: Você conheceu o presidente Hugo Chávez. E Chávez tinha uma grande admiração por você. Fez elogios a alguns de seus livros. Que recordações você tem dele e qual a sua opinião dele como governante, em particular pela sua influência na América Latina?

NC: Devo confessar-lhe que depois que o presidente Chávez mostrou meu livro (Hegemonia ou sobrevivência) na Organização das Nações Unidas (ONU), o livro começou a vender muito no site Amazon.com (risos). Um amigo meu, um poeta, disse-me que o livro estava entre os últimos no ranking do Amazon, mas que logo se venderam milhares. Ele me perguntou se o presidente Chávez não podia mostrar um livro dele também na ONU (risos). Bem, mantive com Chávez algumas conversações no palácio presidencial, nada mais. Estive em Caracas um dia com um amigo e basicamente falamos com Chávez a respeito da sua chegada ao poder, da sua reação diante dos EUA e de coisas dessa natureza. Chávez fez um esforço muito grande para a introdução de mudanças substanciais na Venezuela e no que diz respeito à sua relação com o mundo. Um de seus primeiros atos foi conseguir que a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), detentora praticamente do monopólio do petróleo, reduzisse a produção para que os preços dos barris aumentassem. Segundo o que fui informado, esse foi o momento em que os EUA se voltaram definitivamente contra a Venezuela... Antes disso a toleravam... Chávez fez também muitas outras coisas: ofereceu petróleo a baixo preço a Cuba e a outros países caribenhos; realizou esforços no sentido de melhorar o sistema sanitário e reduzir a pobreza; e estabeleceu compromissos que significavam um grande esforço em favor das pessoas humildes.

Obteve certo êxito com tudo isto, mas não sem o enfrentamento de graves dificuldades, particularmente com relação à incompetência, à corrupção, à maneira de combater as greves, etc. O resultado final traduziu-se internamente num contexto difícil para a Venezuela. E o problema mais grave – ainda não superado –, e que é um problema que atinge de modo geral a toda América Latina, na medida em que todos esses países dependem de um modelo de desenvolvimento econômico não sustentável, baseado na exportação de produtos primários. Há países que podem assumir isso – como Argentina e Brasil o sabem – se as suas economias se diversificam de tal modo que proporcionem o desenvolvimento de uma indústria complexa. Contudo, uma indústria baseada unicamente em produtos agrícolas ou minerais não é um modelo sustentável. Se considerarmos os países desenvolvidos, começando pela Inglaterra, EUA e outros, vamos verificar que todos basicamente começaram exportando produtos básicos. Os EUA, por exemplo, se desenvolveram porque detinham quase que todo o monopólio de um dos produtos básicos mais importantes do século XIX, que era o algodão, cultivado em plantações por acampamentos de escravos – acampamentos que teriam feito inveja aos nazistas se eles os tivessem visto. Desse modo, os EUA conseguiram aumentar a produtividade do algodão mais rapidamente que a da indústria, sem qualquer tipo de inovação técnica... a não ser o uso do chicote, de que se valiam para torturar os escravos. Com o uso intensivo da tortura e de outras práticas horripilantes, a produção de algodão se desenvolveu muito rapidamente, proporcionando o enriquecimento dos donos dos escravos e evidentemente o desenvolvimento do sistema fabril.

Consideremos, por exemplo, o nordeste dos EUA, que é uma zona onde estão as principais fábricas que se ocupavam do algodão, onde foram obtidos diversos produtos a partir do algodão. O mesmo acontecia na Inglaterra. Os ingleses desenvolveram suas primeiras fábricas a partir da importação de algodão dos EUA. O que também permitiu a expansão do sistema financeiro, manobra de bastante complexidade sobre o empréstimo de recursos e outras operações financeiras. E tudo isso a partir do cultivo do algodão. Um sistema comercial, um sistema industrial e um sistema financeiro.

Pois bem, os EUA, assim como outros países desenvolvidos, não respeitaram o que hoje se chama de “economia saudável”. Princípios hoje em vigor eram violados, existindo pesadas tarifas alfandegárias e outros mecanismos protecionistas. E isto prosseguiu até 1945, quando os EUA conseguiram de fato o desenvolvimento da sua produção de aço e de muitos outros produtos. É desse forma que se obtém o desenvolvimento. Se um país se limita à exportação de produtos primários, vai acabar se dando mal... E isso é o que acontece com a Venezuela. A economia segue dependendo terrivelmente da exportação de petróleo... Esse modelo é insustentável. Como é também insustentável uma economia baseada na exportação de soja e de outros produtos agrícolas. De tal sorte que teremos que passar por um formato distinto de desenvolvimento como fizeram Inglaterra e EUA. Assim como certamente outros países europeus. França, por exemplo. A percentagem de 20% da riqueza da França é produto da tortura a que foram submetidos os haitianos... que se apresentam hoje de forma lamentável. O mesmo se deu com a história do desenvolvimento de outros países colonizados.

A Venezuela não superou esta escolha. E possui outros problemas internos graves que com certeza os EUA quiseram exacerbar. E estou convencido de que as sanções constituem-se num esforço para consegui-lo. Na minha opinião, uma boa resposta da Venezuela seria não levar em conta as sanções. Claro que não se pode deixar de leva-las em conta porque são reais... Porém, pelo que você mencionou, essa pretensão ridícula de “ameaças à segurança nacional estadunidense”... É importante repetir que isto, por si só, não significa nada. Como se diz, é meramente uma expressão formal. Trata-se de algo que nem mesmo os meios de comunicação nos EUA assinalaram. O importante é a reação, neste caso, produzida na América Latina.

(fim da primeira parte)

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 13/04/2015
Reeditado em 14/04/2015
Código do texto: T5205520
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