Um camponês com ouvido
Aos bisnetos
Que são meus filhos
Fechou-se no Perfil 24 B a série sobre fragmentos de azulejo setecentista, abre-se agora neste perfil 25 A esta sobre História Oral.
No verão de 1984, regressado aos Açores, desenvolvi um dos meus primeiros projectos no âmbito da História Oral. Tanto quanto sei, em Portugal, olhada ainda com muita suspeição por certa comunidade científica, esta abordagem histórica dava os seus primeiros passos. Colaboraram o Carlos Pereira, hoje professor de História, a Natália Silva, hoje engenheira civil, a Filomena Borges, hoje professora de Inglês, a Abília Baptista, radialista no Canadá. Não me recordo se mais. Inseriu-se num projecto de verão (OTL/Jovem) que tinha como responsável o vereador Fernando Monteiro. Era presidente Artur Martins.
Pretendeu-se recolher testemunhos representativos da memória oral do núcleo central da Ribeira Grande. Quis-se seguir o percurso do cereal desde os campos de sementeira, passando pelo moinho, à mesa da casa. Para representar a memória daquela comunidade, marcadamente rural, entrevistaram-se moleiros, polícias, camponeses assalariados, proprietários, comerciantes, pescadores, donas de casa, jornalistas, industriais, administradores privados ou públicos, elementos do clero, professores, parteiras, desportistas, músicos.
Infelizmente, passado algum tempo, a fita castanha das gravações, mais barata e de baixa qualidade, devido à implacável humidade das ilhas, perdeu qualidade. Ainda assim, escapou, em razoável estado, algumas transcrições. Felizmente, além das gravações, as imagens salvaram-se. Excertos destes textos e das fotografias, têm servido para vários trabalhos, como é o caso da memória dos moinhos de água. Neste texto, por opção jornalística, vou apenas respigar alguns passos de uma entrevista. Podendo ter começado por outras entrevistas, vou começar por esta de um camponês com ouvido para a música. Em Julho de 1984, quando o entrevistei, tinha 84 anos. Infelizmente, para um homem de música, ensurdecera.
O camponês de que falo era Anselmo Ângelo da Costa Ledo mas toda a gente da Ribeira Grande e arredores o conhecia por Ângelo Ledo. Foi toda a vida um pequeno agricultor. Tinha dois pedaços de terra fértil que herdara de tios solteiros: um, no caminho Novo das Caldeiras, o outro, no caminho Velho das Caldeiras. Ao contrário das irmãs, que partiram para sempre para a América, ficou agarrado à ilha. Deles tirava o seu sustento de casa remediada.
Faleceria com 87 anos, meses antes do bisneto Júlio nascer, no dia 16 de Janeiro de 1986. Nasceu, segundo uns, numa casa do Cabo da Vila, na Conceição e morreu numa casa da rua das Pedras, na Matriz. Teve três filhos: um filho e duas filhas. Deixou netos e bisnetos. Andou ligado aos movimentos apostólicos do prior Evaristo Carreiro Gouveia. Apesar de ter sido tudo o mais, era acima de tudo um homem com ouvido para a música.
Assim que lhe disseram quem eu era, disse: toquei música com o senhor Fernando Moura. O senhor Fernando Moura é meu avô paterno: alfaiate de profissão, carcereiro na pausa da agulha e músico ‘cão’ (banda Triunfo) do coração. Chegara à casa 109 da rua das Pedras a meio da tarde numa tarde de sol. Sentara-me numa banqueta de cimento junto à janela. Não tardou a dizer: ‘comecei no campo,’ mas ‘toquei música.’ Apesar de ser ‘Cão’ (Banda Triunfo), tocou nos ‘Gatos’ (Banda Voz do Progresso)’. Apesar do seu instrumento ser ‘o baixo’, tocou outros instrumentos, tais como o ‘(…) cornetim (e a) trompa. E esteve sempre disponível para ‘(…) o que a banda precisava.’
Sem que lhe perguntasse, falou, como não fosse coisa dele, mas com uma pontinha de vaidade, dos seus insucessos: ‘os que me acompanhavam eram fracos. Eu não queria ir tocar.’ Diz: ‘Fomos a um concurso na cidade (Ponta Delgada) em 1916.’ Nesta altura, ‘tocava baixo.’ Em conclusão: ‘Não ganhámos prémio nenhum.’ E dos sucessos: ‘No segundo ano tive dois prémios. Fui para as Furnas e para a Lira Açoriana na cidade.’
Lira? Explica a origem da Lira: ‘Naquele tempo havia quatro bandas na cidade (Ponta Delgada). A Lira Açoriana foi feita com os melhores músicos daqui da ilha.
As bandas tinham nalgum tempo mais importância do que têm hoje? Responde-me: ‘Havia mais concursos. Hoje não há nada.’ Para sublinhar a importância: ‘Tive uma discussão com um fulano que estava dando mais valor à bola do que à música. O que é um clube da bola? O que é que vão aprender para ali? Agora, uma sociedade de uma banda é um centro de instrução e recreio. A gente vai instruir-se para ali. No meu tempo era assim. Principalmente, ao Domingo. De semana, a gente ia trabalhar.’
No Perfil 25 B, vamos sentir um pouco mais deste homem?
Mário Moura
21 de Abril de 2014