VALE A PENA CONFERIR 02
Jornal do Brasil, 31.01.2002
Poeticamente incorreto
Carta aberta do poeta Alexei Bueno questiona reputações e denuncia ditadura literária
ELIANE AZEVEDO
Concisão, definitivamente, não faz parte dos cânones do poeta carioca Alexei Bueno, de 38 anos. Ao mesmo tempo em que acabou de lançar seu décimo livro, Os resistentes (Editora Francisco Alves), ele decidiu divulgar uma carta aberta aos poetas brasileiros contra o que qualifica de ditadura dos pós-cabralistas. Traduzindo: a corrente que tem como guru João Cabral de Melo Neto - e sua obra de precisas palavras -, que se alinha com o concretismo dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos, para quem a concisão é indispensável à boa poesia. Bueno, ao contrário, é verborrágico. Um poeta à moda antiga, digamos, afeito a métricas e a temas metafísicos, como demonstrou em especial nos livros A juventude dos deuses (1996) e A via estreita (1995). É também um respeitado estudioso da literatura brasileira - organizou várias coleções da Nova Aguilar, como as obras completas de Augusto dos Anjos, Gonçalves Dias e Vinicius de Moraes - e ainda acumula o cargo de diretor do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac). Com essas credenciais é que fulmina: para ele, o poder literário e, mais especificamente, a crítica especializada, está nas mãos dos defensores da estética concretista. A poesia brasileira, garante, está vivendo a era do poeticamente correto. ''Existe uma idéia de legitimidade que é espúria. Pode-se escrever excelente poesia sob diversas formas de expressão'', diz ele. Que conclama todos os interessados a combaterem a tal hegemonia inspirados numa receita, dada por Bueno na entrevista que se segue: ''O que existe é a literatura que se fez até hoje, o universo à frente e você. O resto é mistificação e picaretagem''.
Quais os pontos centrais do seu desabafo?
Enquanto a proposta da chamada modernidade foi abrir todos os recursos expressivos possíveis - desde a coisa mais estruturada geometricamente até o surrealismo, que é o fluxo do inconsciente total - a partir dos anos 50, houve um refluxo, uma lenta tomada do poder literário por uma corrente que defende um único caminho autêntico, que seria o esgotamento do modernismo até João Cabral de Melo Neto e, depois, seus epígonos. Ora, essa idéia de legitimidade é espúria. Pode-se escrever excelente poesia em formas infinitas de expressão, como o surrealismo, ou a musicalidade da palavra ou o pensamento, a filosofia. Mas é mais difícil para o crítico conviver com a multiplicidade.
Pode dar um exemplo dessa legitimação?
Se o português Herberto Helder, que faz uma poesia que mistura uma origem germânica com o surrealismo - um movimento forte em Portugal - fosse um jovem brasileiro lançando seu primeiro livro, seria achincalhado por essa crítica do establishment, porque não tem concisão, frieza de raciocínio, estruturação geométrica. Uma obra magnífica como a dele seria achincalhada por essa camarilha de pós-cabralistas.
Mas você publica livros regularmente, não está alijado da produção poética nacional. Até que ponto se configura o domínio dessa corrente?
Todo o grupo que defende essa tese se recusa a escrever sobre mim e vários outros. A minha poesia é ''ilegítima'', porque minha ligação é com o simbolismo e o pós-simbolismo português, com Fernando Pessoa, com a poesia grega. É o seguinte: há uma poesia sendo escrita no Brasil. Em vez de a crítica se debruçar sobre ela, para uma análise para o bem ou para o mal, ignora 99% dessas outras vozes.
Mas quem é essa crítica?
Boa parte da crítica universitária deste país. Ela criou o que eu chamo de escadinha cronológica: depois do neo-parnasianismo entrou o modernismo, depois João Cabral, depois o pós-cabralismo e ficou esse pós-pós eterno. Então, poetas de vozes curiosíssimas e de imenso talento são rigorosamente ignorados pela crítica. Vou dar um exemplo: o Marcos Accioly, um poeta pernambucano que acaba de lançar um livro imenso, interessantíssimo, Latino-América. Essas coisas não são lidas no eixo Rio-São Paulo, ficam abafadas. A intelligentsia universitária brasileira fica eternamente nas figuras escolhidas para a manutenção da teoria do seguimento - com ''gui'' mesmo - da poesia brasileira.
Pode definir como é a poesia dessa corrente?
É uma poesia pasteurizada. Nega qualquer visão direta do lado trágico da vida - morte, miséria, sofrimento. É uma poesia curta, como eles gostam de falar, concisa, toda muito parecida. As estrofes parecem cocô de cabrito, aquelas bolotas todas iguais. E não passa de uma diluição lamentável do João Cabral de Melo Neto, uma rarefação que caracteriza a todos os dessa escola, que são os queridos dessa crítica universitária. Carlito Azevedo, Nelson Ascher, Régis Bonvicino são os mais midiáticos, mas há uma horda. O [organizador do livro Os cem melhores poemas do século] Ítalo Moriconi disse que não me incluiu naquela antologia dele porque a minha poesia era metafísica. Para ele, o que era interessante agora era a poesia gay. Eu gostaria de compreender, esteticamente falando, por que a poesia gay é melhor do que a metafísica.
Para o leitor comum, parece que a poesia brasileira parou em Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, com alguns espasmos posteriores, como Ana Cristina Cesar ou Adélia Prado. O que aconteceu?
Houve uma ruptura da poesia com a sociedade. Antes, havia uma crítica militante na imprensa. Não eram professores universitários, mas críticos como Álvaro Lins e Otto Maria Carpeaux, que levaram de modo natural, ao público daquela época, nomes como Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Murilo Mendes. O que aconteceu depois desse período? A crítica militante foi desaparecendo da imprensa. Surgiu o professor de Letras. A universidade funciona dentro de um mundo estrito e essa crítica não funciona em relação à sociedade como um todo. É autofágica, é feita pela universidade, na universidade e para a universidade, e a sociedade não toma o menor conhecimento disso. A maioria dos poetas dessa escola é formada em Letras. Não tem mais médico ou engenheiro poeta neste país. Criou-se esse monte de poetas que ninguém lê ou, para usar uma expressão de Drummond, são glórias pré-fabricadas.
E quando começou esse domínio do qual você fala?
O problema foi a partir das décadas de 70 e 80, nas quais aparecem duas referências: a chamada poesia marginal - que não tem nada de marginal, foi muitas vezes subvencionada publicamente - e o mais nefasto de todos os movimentos, o lobby concretista, que criou uma falsa genealogia. Pega-se o romantismo inteiro, monstros absolutos como Gonçalves Dias ou Castro Alves, e os substituem por um poetastro completamente abominável como Sousândrade, que faz aquelas misturebas lingüísticas que existem desde a Grécia, passando por Rabelais, o barroco, os bestialógicos. Só tem novidade para quem é muito ignorante. Depois, chega-se no modernismo, que é aquela coisa com uma riqueza fabulosa, e é pinçado Oswald de Andrade, um poeta menor, um agitador cultural muito superior ao escritor. Elege-se um tradutor ilegível como Odorico Mendes, que fez da Eneida de Virgílio um telégrafo de maluco, e só a fabulosa atração por tudo o que é esquisito, aberratório, teratológico, para chamar a atenção e fazer quizumba, de ''seu'' Haroldo de Campos, pode explicar uma coisa dessas. O que é extraordinário é a quantidade de estudantes universitários, sobretudo em São Paulo - é sabido que os dois únicos lugares do mundo onde se leva o concretismo a sério são São Paulo e Hamburgo, na Alemanha - que cai nessa esparrela. Formou-se uma geração de idiotas que nunca leu nem Gonçalves Dias e perde tempo com Sousândrade.
Em sua carta aberta, você compara essa corrente com os parnasianos, movimento do século 19 que pregava o formalismo e a racionalidade na poesia. Por quê?
O pós-cabralismo é uma ideologia oficial como foi o parnasianismo. Naquela época, havia poetas geniais como Augusto dos Anjos, considerado louco pela poesia oficial do Brasil, feita pelos bem-pensantes. É só ir na Biblioteca Nacional e abrir um jornal de 1919 para ler a crítica sobre quem se afasta da estética parnasiana. Cruz e Souza, genial, negro e pobre, foi praticamente massacrado em vida por esse pessoal. Ele, a mulher e os quatro filhos morreram de tuberculose provocada pela fome, pela falta de reconhecimento dos bem-pensantes da época. Os pós-concretistas fazem o mesmo. Toda a poesia que presta hoje no Brasil, que tem coragem de encarar a realidade, é poeticamente incorreta.
Isso explicaria a queda de qualidade na produção poética brasileira hoje, se comparada com 40 anos atrás?
E há coisas extraordinárias acontecendo, no Nordeste, por exemplo. Essa barreira Rio-São Paulo é pavorosa. Os poetas nordestinos como Rui Espinheira Filho, da Bahia, Alberto Cunha Melo, de Pernambuco, Mauro Machado, do Maranhão, não conseguem furar a barreira regional. Não é uma poesia ao gosto da crítica universitária dominante. Essa barreira é ainda pior em São Paulo. A imprensa paulista vai ou pela linha cafajeste, do tipo Diogo Mainardi, que esculhamba Deus, o mundo, a mãe, ou está na mão desses grupelhos.
Como isso funciona no mercado editorial?
Por incrível que pareça, a área editorial é mais aberta do que a crítica. Quem é bom acaba se colocando no mercado editorial, por pior que esse mercado seja, e é muito ruim para a poesia. A poesia é o gênero literário mais requintado e menos popular. A maioria dos leitores no mundo inteiro prefere narração, uma história. A poesia, a rigor, não conta história. É uma forma para quem já se interessa muito por literatura. Vai vender menos sempre, aqui, na França, em qualquer lugar. Mas não sinto preconceitos das editoras brasileiras, só cautela, medo de perder dinheiro.
Já se disse que os melhores poetas brasileiros hoje são letristas e compositores.
Nunca entendi por que os grandes compositores e letristas, amados pela população, rasgados pelas fãs, ganhando fortunas, continuam querendo roubar esse pobre título da miserabilíssima classe dos poetas, que não têm onde cair mortos. A poesia funciona com o silêncio por base. É óbvio que se pode musicar um poema, mas é diferente: se você tira a música, o poema continua existindo. Mas letra de música não dá nem para ser lida sozinha, porque, sem querer, você acaba solfejando. Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil são fabulosos compositores. Mas poesia é outra coisa.
O que você pretende com sua carta aberta?
Há milhares de poetas pelo Brasil inteiro e, desses, deve haver dezenas muito bons pensando a mesma coisa. Eles podem sentir uma certa satisfação em ver que não estão sozinhos. Como eu tenho um nome firmado no ramo, é mais interessante que eu fale. É para uso geral dos que se sentem como na era do parnasianismo, para quem já encheu o saco do poeticamente correto. Mas eu é que devo estar numa torre de marfim e os pós-cabralistas, totalmente ligados à realidade, falando dos corredores da Lagoa ou do supermercado Zona Sul e outras coisas altamente transcendentes... Meu recado é que existem três coisas: a literatura que foi escrita até hoje, o universo mais à frente e você. O resto é mistificação e picaretagem.