VALE A PENA CONFERIR (ENTREVISTA COM THAÍS NICOLETI).
Entrevista de Thaís Nicoleti ao Jornal Tribuna de Alagoas, em 2005
Estudei na Universidade de São Paulo, onde cursei letras (português e lingüística), licenciatura e ciências sociais. Trabalhei muitos anos em escolas de ensino médio e cursos pré-vestibulares.
Thaís Nicoleti de Camargo
Entrevista publicada no jornal Tribuna de Alagoas (2005)
Por favor, discorra um pouco sobre sua formação (acadêmica, profissional)
e também sobre sua participação no “Manual Graciliano Ramos”.
Estudei na Universidade de São Paulo, onde cursei letras (português e lingüística), licenciatura e ciências sociais. Trabalhei muitos anos em escolas de ensino médio e cursos pré-vestibulares.
Meu trabalho começou a ganhar mais visibilidade quando elaborei e apresentei as aulas de português do programa “Vestibulando”, produzido e levado ao ar em rede nacional pela TV Cultura, de São Paulo. Hoje atuo como consultora de língua portuguesa da “Folha de S.Paulo” e do “UOL”.
Assino, na seção de educação do jornal eletrônico “Folha Online”, a coluna Noutras Palavras, em que abordo temas da língua portuguesa contemporânea. Apresento diariamente uma “dica” de língua portuguesa na seção de educação do UOL, com uma explicação sucinta sobre algum tema gramatical. Os temas são, em geral, suscitados pelos próprios textos publicados no site.
Também assino colunas no caderno Fovest, da Folha de São Paulo, em que trato de língua portuguesa, literatura e redação para o vestibular. Esses três espaços me permitem interação com o leitor, o que considero muito importante para o meu trabalho. A dificuldade do leitor orienta a escolha de temas a desenvolver e até mesmo a linguagem a empregar.
O “Manual Graciliano Ramos de Uso do Português” nasceu de uma preocupação da Secom em realizar um trabalho voltado para a língua portuguesa, no contexto do debate sobre a preservação do idioma e de suas características. Por se tratar de um manual, o livro tem caráter prático. É organizado na forma de verbetes que,de forma sintética, buscam resolver dúvidas sobre questões gramaticais. O livro contém ainda um apêndice com dados sobre as cidades e os municípios do Estado de Alagoas. Sou organizadora do material e autora do conteúdo gramatical da obra.
Fale um pouco sobre a reforma ortográfica no Brasil e em Portugal, sobre
a padronização da língua. Qual a importância desse projeto? O que temos a ganhar (ou a perder) com isso? Quando isso deve acontecer?
Existe um projeto de unificação da ortografia da língua portuguesa nos países em que ela é o idioma oficial. Não se trata de uma padronização da língua, o que seria impossível. É fato que não há dificuldade de compreensão das pequenas distinções de grafia que ocorrem no português de cada país. Há diferenças mais expressivas na sintaxe e no emprego do vocabulário, dado que o português é falado em situações geográficas e sociais bastante diversas. Nada disso, entretanto, pode sofrer um processo de unificação. Ademais, são grandes os custos envolvidos numa possível reformulação de todos os livros editados, em particular, na reedição do material didático. O argumento favorável à idéia é o de que essa unificação favoreceria um maior intercâmbio cultural entre os países lusófonos. Avaliando a relação custo-benefício, tenho a impressão de que, mais uma vez, a votação desse projeto será postergada.
O brasileiro fala muito mal o português? Quais os seus erros imperdoáveis e quais os mais freqüentes?
Primeiramente, é preciso desmistificar a idéia de que a língua é algo externo aos falantes, um ente misterioso e inacessível, cujo conhecimento pertence a poucos iniciados. Na verdade, a língua pertence aos seus usuários. Ela é aquilo que o uso define como útil. É preciso lembrar que a língua é um instrumento de comunicação e os falantes falam bem quando se fazem entender, quando produzem de maneira eficaz a comunicação em todos os seus níveis. É claro que não podemos ignorar os problemas decorrentes da educação deficitária no país. É trágico tomar conhecimento de que crianças terminam o ciclo fundamental sem adquirir competência lingüística suficiente para ler e compreender um texto. E não é exagero, infelizmente, afirmar que há estudantes de nível superior com conhecimento muito precário da língua, ou seja, com dificuldades de compreensão e de redação de um texto formal.
Além de investir na educação, de que forma o Estado pode intervir para um
melhor uso da língua portuguesa? Lembremos a famigerada cartilha do PT,
que tentou impor uma política sobre o que pode e o que não pode ser falado.
Ao Estado cabe o investimento na qualidade do ensino. A democratização das oportunidades é extremamente importante, mas é chegado o momento de investir na qualidade. Isso, entretanto, só vai ocorrer quando as autoridades se derem conta de que é no professor que devem investir. Bibliotecas e computadores são elementos importantes, mas o fundamental é agir de modo que a profissão de professor deixe de ser desprestigiada. É preciso torná-la competitiva, para que atraia os melhores profissionais do mercado, em vez de fazer exatamente o contrário. Não basta oferecer aos estudantes o acesso à internet. É preciso valorizar o professor, que é o orientador do aprendizado, sobretudo quando a quantidade de informações é tão vasta como ocorre atualmente.
A cartilha proposta por Nilmário Miranda assumiu de imediato um tom folclórico. Acho que ninguém levou aquilo a sério. É preciso, no entanto, observar que as palavras podem carregar, sim, preconceitos arraigados em nossa sociedade. Isso é fato. Dizer,por exemplo, que alguém é “de cor” ou “moreno” em vez de dizer que é negro revela preconceito. E é possível que muita gente não se dê conta disso e use essas expressões sem intenção de agir preconceituosamente. Afinal, aprendemos a língua ouvindo as pessoas que nos circundam.Nesse ponto, acredito que a intenção da cartilha foi boa, mas, na prática, só serviu de piada porque a língua não admite interferências proibitivas. É impossível proibir por decreto o uso de uma palavra.
Isso também se aplica aos estrangeirismos? Vale a pena lembrar o projeto do deputado Aldo Rebelo...
Sim, é o mesmo problema. Existe uma preocupação legítima com o uso da língua, mas, ao mesmo tempo, uma dificuldade (ou mesmo uma impossibilidade) de aplicação prática de uma lei que puna o uso de determinadas expressões. Entendo, porém, que a grita contra o projeto do deputado Aldo Rebelo tenha sido exagerada e injusta.
O estrangeirismo incorpora-se ao idioma quando traz consigo uma informação nova, quando não tem substituto na língua. Daí o caráter preocupante da proliferação de palavras estrangeiras (sobretudo anglicismos) no português. Nos centros urbanos, tornou-se comum o uso de “sale” no lugar de “liquidação”, por exemplo. É um estrangeirismo que aparentemente não tem nenhuma utilidade. Por que é usado, então? Possivelmente porque empresta ao estabelecimento comercial o status de modernidade, transformação, valores associados ao mundo da moda e da tecnologia. Muito mais do que um significado estrito, o estrangeirismo carrega um leque de valores que as pessoas desejam adquirir.
Pode-se dizer que a língua portuguesa está sofrendo um processo de descaracterização? O que há de mais belo em nossa língua, que justifique a sua preservação?
É difícil afiançar isso até porque nos falta o distanciamento objetivo, que propicia o olhar analítico. Estamos vivenciando um processo. Todos sabemos que as línguas sofrem alterações no decorrer do tempo, mas também sabemos que esse processo é lento. Hoje essa mudança parece estar sendo acelerada. É preciso lembrar que a língua reflete o momento histórico, as forças que se digladiam no espaço geográfico e social. As línguas sofrem grandes impactos em situação de invasão de território. Nos processos de dominação, a língua do país conquistador é imposta. Hoje esse processo é mais sutil ou, pelo menos, mais diluído. Assim, a própria população elege a cultura estrangeira como objeto de desejo. A indústria cultural,os bens de consumo, as inovações tecnológicas vêm acompanhados de termos, expressões e modos de falar que não são caracteristicamente nossos.
Preservar a língua é preservar a nossa identidade cultural. O idioma, como atesta a etimologia, representa a língua particular ou própria de um povo, o seu modo de recortar o universo e apropriar-se dele, o seu modo de ver o mundo e estar nele. A língua portuguesa é riquíssima, repleta de nuances e sutilezas e capaz de exprimir com precisão quaisquer conteúdos.
Temos uma literatura de altíssimo nível, que, por si só, já comprova a beleza de nossa língua e nos convida a conhecê-la cada vez mais profundamente.
Qual a maior contribuição da língua portuguesa à cultura do planeta?
Naturalmente, os grandes autores. Em Portugal, Camões, padre António Vieira, Cesário Verde, Eça de Queirós, Fernando Pessoa, Sá Carneiro, Lobo Antunes, Saramago e tantos outros. No Brasil, Gregório de Matos, Castro Alves, Machado de Assis, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, José Lins do Rego, Euclides da Cunha, José Paulo Paes, Clarice Lispector, Dalton Trevisan, Cecília Meireles... Existe muita literatura de altíssimo nível em língua portuguesa.
O que ela ainda pode oferecer aos outros povos?
Pode continuar oferecendo literatura de boa qualidade, além de muitas das letras de nossas canções populares já conhecidas em todo o planeta. Não podemos nos esquecer de nomes como Tom Jobim, Chico Buarque de Holanda,Vinicius de Morais e tantos outros que,com a criatividade e a inventividade de sua música, conduzem a língua portuguesa pelo mundo afora. O cinema brasileiro também vem se desenvolvendo e, com ele, naturalmente a língua se expande. Essa temática é abordada brilhantemente pelo cineasta português Manoel de Oliveira, em seu filme intitulado “Um filme falado”.
Nos jornais, o português é bem escrito?
O texto jornalístico tem características próprias. A quantidade de informações a serem transmitidas com rapidez e, em geral, em pouco espaço leva a construções sintáticas às vezes lacunares. Pratica-se nos jornais uma norma culta um tanto flexibilizada, uma linguagem que, embora se aproxime do registro oral, não se rende a ele, o que provoca certa tensão entre dois registros distintos. Percebo na minha experiência cotidiana que existe uma grande dificuldade em distinguir a norma culta do registro oral. Eu me refiro não só ao vocabulário mas, principalmente,à sintaxe. Daí a dificuldade de empregar o pronome relativo adequadamente e de pontuar corretamente o texto, por exemplo.
Que tipo de erro o jornalista comete e que não podia cometer?
Comete erros de grafia, que, embora não sejam tão importantes do ponto de vista do conhecimento de uma língua, são muito visíveis. Além disso,freqüentemente, encontramos nos jornais textos que permitem dupla leitura. Isso decorre sobretudo da ordem dos termos na frase. O redator reproduz a ordem escolhida na linguagem falada e isso nem sempre dá certo. Na fala, lançamos mão de recursos acessórios, como a entonação e a gesticulação. Por escrito, é preciso tomar mais cuidado. Tenho abordado esse assunto com certa insistência na minha coluna Noutras Palavras (Folha Online).
O jornalismo contribui para a modernização da língua? A linguagem jornalística é ascendente? Ou ela é decadente, pueril etc.?
Voltamos à questão da linguagem mista, como se o jornal estivesse num ponto intermediário entre a escrita e a fala. A imprensa, potencializada primeiro pela TV e agora pela internet, tem grande poder disseminador. Isso é inegável. Sem dúvida, esse estilo desenvolvido nas redações vem-se espalhando. Eu não diria que essa linguagem é pueril, mas ela tem certo caráter simplificador, que é imposto pelas condições de produção e pelos propósitos a que se destina.
A linguagem da internet: o que é bom e o que é péssimo? E de que forma isso muda radicalmente a língua?
Tenho visto muita gente preocupada com o que eu chamaria de “insubordinação ortográfica”. Trata-se de uma espécie de código de usuários da rede, que tem um pretenso caráter facilitador. Cria-se uma ortografia fonética, acrescida de símbolos, numa mescla de linguagem icônica com linguagem linear, o que, aliás,caracteriza o próprio meio (a internet). Não acredito que isso leve a mudanças lingüísticas,mesmo porque é um comportamento que incide apenas na camada superficial da língua, que é a ortografia.
Por um lado, não vejo como impedir que os jovens façam uso desse código (até porque ele tem um aspecto lúdico e constitui um uso particular da língua, em tese acessível apenas a um grupo, tal qual a gíria). Por outro, não acho que devamos estimular esse tipo de uso lingüístico, como fez certo canal pago de TV, que instituiu uma sessão de cinema com legendas escritas na tal “linguagem de internet”. Do ponto de vista educativo, parece-me que o uso dessa escrita pode dificultar o aprendizado da ortografia vigente. O que deve ser estimulado sempre é a leitura de nossos bons autores.
Obs. Conheça mais sobre a escritora: www.thaísnicoleti.com