ENTREVISTA COM GODOFREDO DE OLIVEIRA NETO    

          
                                          
APRESENTAÇÃO 

                                                                Carina Lessa
                                      Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)


   Godofredo de Oliveira Neto nasceu em Blumenau, Santa Catarina, em 1951. É professor e pesquisador da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Romancista e Contista (premiado no Jabuti, 2006), integra o Guia Conciso de Autores Brasileiros publicado pela Biblioteca Nacional. Seus livros foram adotados e estudados em escolas e universidades. É presidente do Instituto Internacional de Língua Portuguesa da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), com sede em Cabo Verde.
   Em 1981, Godofredo publicou Faina de Jurema, um dos primeiros romances brasileiros a propor estilisticamente o que se convencionou chamar de Pós-Modernismo. Trata-se de uma história fragmentada, em que a transição de um capítulo a outro é marcada por telegramas que delineiam, pela narração de Darci, a faina de Jurema - uma sequência de palavras e frases curtas nos dá o destino da personagem. Já ali tínhamos um espaço aberto ao leitor curioso, apto a reconhecer que a leitura não é um jogo, um duelo, mas uma parceria pelo eterno desejo de dialogar com o autor.
   Com a publicação de O Bruxo de Contestado (1996), Pedaço de Santo (1997) e Marcelino Nanmbrá, o Manumisso (2000), o escritor teve rapidamente seus romances marcados como uma trilogia histórica, na qual a Guerra do Contestado, a Ditadura Militar e o Governo Vargas, respectivamente, entram em cena e se tornam alvos principais da crítica literária. Ressaltemos ainda que esses romances, bem como os posteriores Oleg e os clones (1999) e Ana e a margem do rio (2002), constroem um universo cultural brasileiro e, junto com ele, uma identidade nacional.
   No entanto, apesar desse pano de fundo temporal e espacial, é importante lembrar características que autenticam a obra como literária: os personagens são construídos de forma a ressaltar as dualidades humanas, com psicologias esmiuçadas em uma dimensão existencial inconstante e inquietante; os leitores são envolvidos por narradores que reconhecem a eterna completude do amor entre ambos, e o leitor construirá sempre um novo ponto de vista sobre a obra. Esta questão, tipicamente pós-moderna, levou muitos críticos a acreditarem que a figura do autor estava esmaecendo ou, radicalmente, morrendo. E é em Menino Oculto (2005) que a questão da autoria se torna ainda mais viva, não só pelo tema, mas também pela forma.
   Em O Bruxo do Contestado, a estrutura narrativa vem intercalada pela estória ou história que constrói o romance de Tecla (narradora-personagem) com capítulos em que ela - enquanto escritora - discuti  com o leitor passagens do livro e o seu processo narrativo. Em Menino Oculto, a figura do leitor entra como personagem por meio de dois entrevistadores: professor Albano e o doutor Orestes. Estes se constituem em elementos fundamentais, pois, mediadores do discurso de Aimoré (narrador-personagem), serão responsáveis pela ambiguidade que nos dá duas narrativas diferentes: a da esquizofrenia do escritor e a do escritor esquizofrênico. Por meio desses dois discursos, Aimoré irá brincar com a questão da autoria, desde a eliminação do menino morto do quadro de Portinari à inserção de fragmentos de obras de Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Machado de Assis e José de Alencar. O romance ganha fôlego naturalmente e revigora com maestria o autor, que manipula duas versões que brigam por narrar-se. Aimoré direciona os entrevistadores-leitores de acordo com a leitura desejada. 
Marcelino,o mais recente romance do escritor – publicado em 2008 – pode ser visto como o resultado da experimentação narrativa de toda a obra. Godofredo, em um movimento autofágico, como leitor de Marcelino Nanmbrá, o Manumisso, reescreve o livro, que passa a ter o dobro de páginas. Os personagens são bem mais descritivos, ganhando a vitalidade de seres reais; a narrativa passa a ser linear, com começo, meio e fim. Maria Eugênia Boaventura (In: NETO, 2000) afirma: “constrói um artefato lingüístico refinado, competente e sedutor, desvia-se dos clichês e da platitude da linguagem comum de parte da ficção atual” - características que fogem, inevitavelmente, das típicas ficções pós-modernas e que, não podemos deixar de pensar, vão ao encontro do que o autor vem chamando de Literatura Pós-pós.    

              Foto: http://www.imagem.ufrj.br/index.php?acao=detalhar_imagem&id_img=2751


                                            ENTREVISTA

                                                                     por

                                           Raquel Cristina dos Santos Pereira
                                   Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ
)
                                                         Editora Teia Literária


   Teia LiteráriaComo o texto literário contemporâneo inscreve em suas narrativas o enlace entre as representações da memória e da identidade cultural de uma nação?
 
   Godofredo de Oliveira -
Acho que, de início, a gente não pode esquecer que o compromisso do texto literário é só consigo próprio. O passado da recordação e o presente da escrita estão postos na literatura contemporânea na enxurrada de textos autobiográficos que se encontram por aí, fruto do tipo de consciência histórica das últimas décadas do século XX. E tem a ver com a emergência do eu pós-moderno. Se é verdade que, como nos diz Borges, toda literatura é autobiográfica, não é menos verdade que o espaço do eu cresceu exponencialmente a partir de fins dos anos 70 do último século (falo da literatura mais contemporânea), com a vitória esmagadora do liberalismo. O testemunho dá voz aos esquecidos e marginalizados, e isso corresponde à livre iniciativa no campo da economia e da gestão. Essa representação da memória pensa poder ir além do eu (mas pensa mesmo?) e retratar a história de franjas importantes da sociedade brasileira e contribuir, assim, para a fixação de uma identidade nacional. Problemas: o escritor esquece o compromisso a que me referi no início, força muito um eu mais egocêntrico do que nunca, e esquece que a competência do leitor é potencialmente modificante. O que também deve ser lembrado é que a literatura dá sentido à existência, é a partir dela que o real se torna significante. Ela descobre o real (lembremo-nos de Proust) e o leitor se torna o leitor de si mesmo. Mas há uma diferença, como justamente diz Proust, entre uma literatura de anotações e uma literatura arte. A primeira registra o que acha ser o real sem tirar dele algum sentido, ela só reproduz. A segunda faz conhecer a realidade que a gente não vê. Graças à literatura é possível revelar a imagem subjetiva que cada consciência faz do real. A literatura é, assim, a única vida realmente vivida. Flaubert escreveu que quando ele lia Shakespeare ele, Flaubert, se tornava maior, mais inteligente e mais puro. Novos horizontes surgiam, perspectivas infinitas apareciam. Então há textos de anotações e literatura.
 
 
   Teia Literária
Quais são as marcas estéticas e éticas predominantes na atual produção ficcional?
 
   Godofredo de Oliveira -
Um texto fragmentado; a recusa das categorias literárias fixadas pelo Estruturalismo e difundidas pela Universidade e pela crítica de então; um umbiguismo atroz; a recusa em tratar dos grandes temas Humanistas (visto como brega); o nojo pelo discurso poético (também visto como brega); a violência gratuita; o sexo que não sacia, as drogas que não saciam, a vida que não se sacia; daí personagens sem projetos existenciais; uma aproximação forçada com uma oralidade guetificada (diferente dos modernistas), logo uma torrente de palavrões; frequentes textos autobiográficos; a cidade devoradora e animalizada não mais sinônimo de civilização (o indivíduo reage com porradas e palavrões, uma maneira de sobreviver na selva urbana e garantir o espaço do seu eu); uma recusa abominável da tradição, ou seja, não precisa ter lido romance ou poesia escritos antes, basta sentar e escrever!! E por aí afora. Mas parece que essa estética vai perdendo força. 
 
                                                                                               
   Teia Literária
Afirma-se que com o advento do Pós-Modernismo dessacralizou-se na literatura a figura do escritor. O senhor, enquanto escritor, poderia apontar quais foram as estratégias literárias determinantes para esta recente posição destinada ao autor?
 
   Godofredo de Oliveira -
O fim do discurso poético retira do narrador o papel que lhe é tão caro, e essa questão está presente na minha obra como um todo. As lições de Iser quanto à interação entre leitor e texto talvez ajude nessa questão. A parte de criatividade que o texto deixa ao leitor me parece maior no discurso poético que no behaviorismo literário pós-moderno. Uma fenomenologia da leitura mostrará que o efeito estético é desempenhado também pelo leitor. A presença marcante e decisiva do cinema mexe na alma do texto; o roteiro cinematográfico substitui o que se costumava chamar literatura tout court. Os personagens vão se delineando e se caracterizando conforme a sua própria atuação no texto. Sobra um espaço menor para o leitor. Esse behaviorismo é uma marca forte do pós-modernismo. Além disso, como já dito, a recusa da tradição nivelou todo mundo. Os blogs são o exemplo. Há uma aparente e sedutora democracia (digo aparente), todo mundo pode ser tudo. Quando empreendi o processo de reescritura do romance Marcelino pretendi jogar no centro do lago um texto que retoma esse papel do narrador e das categorias literárias e aguardar o círculo da onda chegar à margem. E qual não foi a minha surpresa ao receber a informação da classificação nos últimos concursos literários nacionais, justamente na fase que dependia de indicação de um público mais amplo e não da idiossincrasia das bancas finais. O meu romance anterior, Menino oculto, bem diferente, tinha sido premiado no Jabuti dois anos antes, e quis que fosse a fase intermediária entre um pós-modernismo se desvitalizando e uma nova literatura que lhe ia suceder. Tentei entender o que o público leitor deste final de década do século XXI espera do texto literário. 
 
 
   Teia Literária
Já que ressaltamos algumas questões pertinentes ao Pós-Modernismo, poderia mencionar qual seria uma das definições mais apropriadas acerca de uma produção literária pós-moderna?
 
   Godofredo de Oliveira -
Uma literatura com foco narrativo a partir de jovens no seu cotidiano urbano, imóveis criticamente e atraídos por uma força (ou corpo) que não responde à expectativa. Uma arte fragmentada espectadora do prazer em épocas do império da imagem. Cromatismo ocular que só se colore com a energia dos outros.   
 
 
   Teia Literária
Estamos chegando praticamente no fim da primeira década do século XXI, acredita que novos rumos estéticos já estão sendo percorridos pela literatura? Quais são?
 
   Godofredo de Oliveira -
Me parece que as marcas mais presentes da literatura pós-moderna vão pouco a pouco esmaecendo. O código retórico e estilístico vai sendo lido com dificuldade por um novo público , os cenários comuns e intertextuais (para usar Eco) vão se metamorfoseando, insinua-se uma nova ideologia. Essa ideologia está na origem do enfraquecimento das propostas pré-modernistas do romance. Há uma reação, cujos limites ainda estão algo imprecisos, que leva a uma revisitação das categorias literárias, à volta de temas humanistas e a um maior cuidado com a língua portuguesa, entendida não como enfeite mas como instrumento de uma cognição mais sofisticada. Saem de cena o palavrão gratuito, a violência gratuita e entra uma formatação mais próxima do romance convencional, algo quase inspirado (digo inspirado, não copiado) do romance pré-modernista. Chamo essa tendência que vem aos poucos entrar em concorrência com a estética de fins de século e virada, de literatura Pós-pós.