Literatura: Arte ou Comércio?
Esta questão, nem de longe incomum nos meios literários, é por si só enganosa, uma pergunta viciada, isto por duas razões principais: a) não devemos, necessariamente, considerar Arte e Comércio como pólos excludentes; b) não possuímos definições apodícticas sobre o que é Arte, por isto, é complicado saber se determinada produção é ou não Arte se nem ao menos sabemos o que isto significa.
Fomos condicionados a dividirmos e organizarmos o mundo em categorias e sob determinados rótulos. Como se fosse simples realizar esta tarefa, como se não existissem, geralmente, limites não muito definidos, zonas acinzentadas entre o preto e o branco, territórios difusos.
A pergunta proposta exemplifica a complicação que é patinar entre dois conceitos que, por vezes, se mesclam.
<<O que é Arte?>>
O que entendemos por Arte já passou por tantas transformações e renovações — conjunto de técnicas, entre os gregos; o que expressa o Belo, para Hegel; um juízo sem conceito, para Kant; o que causa determinadas sensações estéticas nos receptores, e assim por diante — que mal teríamos condições para definir quais delas melhor se aplica ao objeto dito artístico. Podemos dizer que esta incapacidade é o legado, e a maldição, das vanguardas modernistas do século XX. Ao tentar ampliar os limites da Arte, os modernistas eliminaram qualquer possibilidade de se falar sobre Arte.
Por isto, tentaram transferir do observado, i.e. obra de Arte, para o observador a responsabilidade sobre a existência da Arte. Obviamente que isto cria uma série de outros problemas, pois, supondo que jamais existe unanimidade de juízos estéticos, uma obra seria Arte para uns, mas não para outros, ou seja, não resolvemos nada.
<<O que é Comércio?>>
Enquanto precisamos recuar diante do conceito de Arte, ou fingirmos que o entendemos sem a necessidade de explicações, definir comércio já é bem mais fácil e inquestionável: o ato de troca de determinado produto, mercadoria, serviço ou valor por outro produto, mercadoria, serviço ou valor, com a finalidade de obter lucro.
O comércio não surge com o capitalismo, mas é radicalizado por ele e pela sociedade industrial. Seria muita ingenuidade nossa pressupor que todos os artistas da Antigüidade criavam altruisticamente, sem a necessidade de sustentar suas famílias, seus lares, pagar suas contas ou dívidas. Aliás, esta é uma tendência generalizada, de idealizar o artista como uma criatura supraterrena, que não come pão, não dorme, e que convive com os demais seres humanos apenas incidentalmente. Este mito foi criado, em parte, pelos próprios artistas, e perpetuado como uma verdade.
O que ocorreu de fato foi apenas uma mudança na conjuntura história. Anteriormente, o artista não precisava vender o resultado de seu trabalho, pelo menos não como o artista de hoje, mas atuava como um vassalo da Igreja ou da aristocracia. Eram remunerados e sustentados por seu senhor e, deste modo, terminavam por vender, mesmo que dissimuladamente, seus serviços a certa classe social.
<<O Advento do Romance Moderno>>
No entanto, se acompanharmos o percurso da Literatura Ocidental, constataremos que o surgimento do romance (novel) na Inglaterra anda de braços dados com a dominação mercantilista e com o comércio. Por exemplo, Robinson Crusoé, de Daniel Defoe: o protagonista é um rapaz que abomina o simples pensamento de se tornar um indivíduo de classe média, por isto, decide viajar o mundo como mercador, acumular riquezas, e voltar para sua terra numa nova posição social. O naufrágio e os anos de isolamento numa ilha são apenas um revés para o Robinson Crusoé. Ele é resgatado, mas nem assim desiste de seu intento, retorna ao mar para cumprir sua meta.
O romance é a própria expressão da nova relação entre o homem e o capital, a busca frenética pela aquisição de bens. E Robinson Crusoé foi, por sua vez, um livro boas vendas em seu tempo.
Este novo tipo de romance, que se afastou dos princípios e da temática do romance de cavalaria, era uma literatura voltada para a classe burguesa ascendente. É a este leitor ávido por capital, mas também sequioso por adquirir bens culturais, de modo a se assemelhar à decadente aristocracia, que obras como as de autores ingleses — Defoe, Henry Fielding, Walter Scott, Dickens — , ou na França, de Alexandre Dumas, Balzac, Flaubert, Vitor Hugo, se destinam.
Não nos iludamos, tais autores, não mais sob proteção dum senhor feudal, ou de algum outro tipo de soberano aristocrata, tinham de ganhar seu sustento à base da venda de seu trabalho, literário ou não. A proliferação dos folhetins foi a oportunidade, para muitos, de adquirir fama e fortuna, ou seja, na gênese do romance moderno está vinculada a capitalização e a compreensão do livro enquanto produto.
<<A Intersecção>>
Agora, suponhamos que entendamos o que seja Arte e tentemos relacioná-la com o comércio.
Muitos escritores tendem a pensar estes dois conceitos em oposição, ou melhor dizendo, qualitativamente.
O que vende é popular; o popular é simplório; portanto, o que vende é simplório.
Temos um juízo de valor que atribuir qualidade ao produto (cultural) destinado às elites, aos poucos capazes de compreendê-lo. A questão nem chega a ser se um é mercadoria e outro não; ambos, tanto a obra de arte do populacho, quando a da elite são, sem dúvida, mercadorias, posto que são produzidas por instâncias que visam lucro e que possuem um valor de mercado.
Para ser mais claro, o livro possui um preço e uma valoração qualitativa. O preço é constante, mas a qualidade varia de acordo com os exemplares vendidos, quanto maior a vendagem, mais simplória, mais adequada à mente do leitor do populacho é a obra, isto se radicalizássemos esta perspectiva.
Mas logo surgem as inúmeras, incontáveis, exceções, de autores canônicos que, mesmo após séculos, continuam vendendo bem — o Google realizou uma pesquisa recentemente sobre quais eram as obras mais procuradas na internet, a listagem obtida nem de longe coincidia com as listagens de best-sellers veiculadas pela mídia, porém este resultado foi abafado pelas grandes editoras; outro caso é das editoras especializadas em publicação de obras canônicas, como a Penguin Books, que em suas estatísticas apresentam dados assombrosos de autores clássicos que possuem vendagem constante na casa das centenas de milhares de exemplares, muito mais, às vezes, do que autores da moda —, ou de autores contemporâneos reconhecidos pela crítica, como ganhadores de Nobel, ou outros prêmios importantes.
Quer dizer então que as obras de tais autores teriam seu valor qualitativo diminuído por causa das estatísticas de vendas?
Talvez fosse muito mais fácil pensarmos numa dualidade, em dois conjuntos — Literatura e Comércio.
No conjunto Literatura incluiríamos tudo aquilo que pertence ao domínio das Letras, obras canônicas e atuais, boas ou ruins, ficção e não-ficção; no conjunto Comércio teríamos tudo aquilo que pode ser comercializado, desde TVs, geladeiras, canetas e passando por livros.
Nem tudo o que há no conjunto Literatura é comercializável, nem tudo que há no conjunto Comércio é Literatura, porém há uma intersecção nestes conjuntos, uma área onde encontramos obras literárias que possuem potencial mercadológico — canônicas ou não, ficcionais ou não, bem escritas ou não.
<<Considerações Finais>>
Parece ser da natureza humana mistificar a realidade, querer pintá-la com cores que não lhe dizem respeito. É esta a impressão que tenho quando se fala em Arte, na sublimidade de Belo, na intocabilidade do artista.
Escrever é um ofício como outro qualquer e o escritor é um profissional como outro qualquer. É óbvio que, como em toda atividade criativa, paira um aura de fascínio sobre a gênese da criação, a inspiração inicial, mas, no fim das contas, o resultado esta em igual relação com o resultado de várias outras ocupações.
Então, tentando responder à mal concebida pergunta inicial: “Literatura: Arte ou Comércio?”
Os dois, ou nenhum, ou apenas um dos dois; no fundo, isto nem faz muita diferença mesmo.
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