Tarde demais...

Tarde demais...

(Daniel Lellis Siqueira)

Estava eu andando pelas veredas da sobriedade

lutando por um punhado de compaixão,

e esperando uma contestação telúrica

de que o meu lugar já não é mais aqui.

Passei pelos bares em que eu ia de costume,

procurei consolo nos braços bizantes de seus donos

mas já não era a mesma coisa.

Fui para a casa e me questionei sobre aonde

seria sepultada a minha dignidade... no asfalto?

Nos velhos amigos? Nos meus próprios sonhos que ninguém saberá?

Tirei a camisa e me sentei ao pé da cama,

descansei o revólver frio em minhas coxas

e tentei por alguns intantes divagar sobre as minhas qualidades.

Dizem que antes da gente morrer

passa um filme da nossa vida em centésimos de tempo,

e se não passar? Morrerei sem ter ao menos um momento de gozo?

Tudo tive e de nada valeu, eram coisas fugazes

tive bíblia, mulheres, casa, bebidas e amigos.

agora eu percebo que a gente nasce e morre sozinhos,

tarde demais...

Levantei-me com a arma em punho e fui defronte ao espelho do quarto

tenho que atirar logo, pois já vai bater dez da noite e

não quero acordar ninguém da pensão.

o aluguel ainda nem foi pago, mas eu não mais me afobarei

ponho na conta de Deus; para na próxima vida, nascer sem as duas pernas ou com um só braço,

eu não ligo.

Nem por mim nem por ninguém eu vou gostar de um Deus

só por ele ser mais poderoso e vingativo que o meu vil ser.

Coloco o cano da arma na venta direita, fecho os olhos e aperto o gatilho...

nenhum som...só o estalido do cão, que foi em vão

atrás de uma antiga bala que já não funciona mais...

Coloquei a camisa e saí sem rumo pela cidade.

fui em direção a um prédio alto que dava de frente a praça da Sé,

subi renitentemente degrau após degrau

e segurando as calças e o medo que eu tenho de alturas

vertia os meus sonhos em salobre desespero.

Os meus olhos, cansados de secar,

tremulavam por aquelas paredes frias com marcas de mãos.

Parecia uma eternidade subir quinze andares...

talvez eu não pretendia morrer caindo,

já caí tanto na vida...

Pelo menos me resta a certeza que será

a minha última queda. (isso se eu não for pro inferno)

Ao chegar no topo, minhas pernas estremeceram,

me escorei no corrimão ao ver a cidade tão pequenina...

de lá de baixo, tudo parece tão grande...

andei até a borda do prédio, tinha um pequeno muro

será que eles pensam que um muro deste tamanho me impedirá?

Subi relutante o pequeno muro

e após muito custo fiquei de costas para a cidade

com os pés paralelos e o coração efusivo.

abri os braços como Cristo, e deixei a gravidade cuidar do resto...

Ao sentir a sola dos meus pés se descolarem do muro,

(que eu não tinha dado valor, mas ele era a divisão da minha vida e morte)

meus pulmões exalaram uma amargura intensa,

com os lábios entreabertos eu deixava o eflúvio dos carros me possuir

que de nada mais valia gritar...

como um rouxinól eu me entreguei tão puramente ao céu,

comecei a dar rodopios no ar e a esta altura

já nem sabia se era medo ou coragem.

Meus cabelos pareciam que tomaram vida própria,

meus olhos saltaram do meu corpo covarde,

minha língua foi de encontro ao meu peito que

pôs-se a eivar com a minha derrota.

O asfalto me acolheu, (como se ele tivesse escolha) cedeu-me as costas

para eu expor as minhas vértebras e vísceras.

A minha inteligência também estava num raio de uns quatro metros.

Como um grande cântaro eu me ponho a absorver os sonhos

que de mim não sairão nunca mais, não sairão...

E façam da minha angústia a espinha dorsal da primavera,

dancem sobre meu túmulo como a um cafetão

que sorve os corações dos maus amados.

Excomungado de todos os preconceitos que eu já tive

eu terei mais conselhos que uma flor,

que corrói o âmbar dos ventos coléricos de um coração apaixonado.

Rasgue minhas vestes num trepidar de ilusões

e encontre o seu rumo para a luz.

Eu não entreguei senão minhas mãos à dor da forja de pensamentos

desconexos, tendo um pouco de seus olhos nos olhos de meus filhos.

Nada mais... tarde demais...