Os demônios das amarras sociais são eternos
CHICO, jovem trigueiro de vinte e seis anos de idade - sujeito canhestro, feio, grosseiro, sujo e mal educado -, aprendeu a se virar sozinho na vida. A preguiça o levou a ludibriar a vida como flanelinha. Tornou-se um bufão de esquina, mas, no íntimo, uma alma amedrontada com seus demônios sociais.
Chico coçou a barba por fazer enquanto a flanela fazia um zig-zag no ar à espera da primeira gorjeta do dia. Desde a noite passada, não comia nada; a barriga roncando, os olhos sôfregos buscando donde vinha o cheiro do café.
Um carro parou meio metro distante do meio-fio enquanto o flanelinha observava o motorista.
- Não parece ser Pastoreba... – assim chamava seus desafetos evangélicos. Detestava esses donos do céu, como ele mesmo chamava. Um não lhe deu gorjeta e ainda o chamou de “endemoniado"; dali pra frente ganhou apelido dos colegas.
"Carne fresca no pedaço; o dia promete”. – Pensou maldosamente.. Balançou o caminhado e se aproximou com ritual rotineiro:
- Vai uma lavada ai, patrão...! - Sabia que não, o carro tava brilhando; o negócio era descolar a gorjeta do faz de conta do “tomar de conta”.
Um senhor desceu do carro, um amontoado de papéis nas mãos, óculos aros pretos; aparência de velho professo;. Chico na porta, ensaiando uma atitude cordial às canhas. O envelope foi-se escorregando, sem ser notado. Logo já estava dentro do rego de esgoto.
- Quem sabe não está cheio de dinheiro... – Os pensamentos eufóricos, a consciência se atordoando. - É tudo que preciso pra conseguir o que eu quero - O momento do embate entre o bem e o mal: dizer ou não dizer!
O homem se foi, o envelope ficou.
A busca da glória superando a honestidade – tormento dos simples e dos imortais em parâmetros diferentes. Os demônios das amarras sociais mexendo com os homens em qualquer tempo, em qualquer nação, em qualquer nível intelectual... Um dos momentos da passagem do homem rumo à redenção, na dualidade do ponto de vista social sobre o bem e o mal. Igual ao leitor preso ao "estilo incisivo do requinte mais sofisticado ao despojamento mais brutal", criado pelo artista em meio às suas amarras sociais.
Sim! Eles são eternos. Porque os homens, na sua hereditariedade, são eternos. Porque a palavra é eterna, e sem eles (nossos demônios) elas não existiriam; os textos não sairiam da cabeça, os deuses não tomariam decisões a nosso respeito, os anjos seriam ociosos... Então, para que exorcizar os que atormentam os pensamentos de quem escreve – muito menos dos que vegetam a sobrevivência?!
Chico conseguiu decifrar, com sua "pouca leitura", o que estava escrito no envelope: TESE DE DOUTORADO – OS DEMÔNIOS SOCIAIS DE LEON TOLSTÓI (O Tolstói quase não sai) – Baseado no seu Livro "O Poder das Trevas" e no seu diário aos 26 anos de idade.
- É coisa de pastoreba - Deduziu o flanelinha. - Dinheiro que é bom, nada... - Guardou o envelope e o devolveu ao dono. Ganhou gorjeta dobrada - estranhou!
Se tivesse estudado, teria tido oportunidade de decifrar naquele envelope que, num conceito diferente, sua vida mundana viaja junto com os mesmos demônios que atormentaram um dos maiores escritores da humanidade. Quem sabe não entenderia a "ânsia virulenta", que numa ficção-realidade – muito longe dali -, corrompe de Wall Street às ruas mais pobres de Nova York, na visão diabólica da trama de Tom Woolf – no seu livro “A Fogueira das Vaidades” -, onde os conflitos das almas dos homens não têm arestas sociais para acontecer.
Mas isso já é demônio de sobra para esse pobre "diabo".
O motorista ligou o carro, botou meia-cabeça fora e perguntou-lhe o nome: "Chico Cão, patrão; ao seu dispor". O carro partiu levando o sorriso de quem sabia que, dessa vez, os demônios das amarras sociais não tinham acertado o alvo.
Aquele coitado – por alguns instantes - havia sido honesto.