Onda de Santa Iria - XIX
Onda de Santa Iria - XIX
Verão dos Milheiros. Tarde de sol. Mar grosso. Em Santa Bárbara ninguém na água. No Monte Verde ninguém na água. Em Santa Iria, nove pontinhos negros flutuam nas ondas. Tomei o caminho de terra do Lameiro. Daí a cinco minutos, parei o carro na entrada da vereda. Contei seis carros e uma carrinha. Um surfista que já arrumara a prancha. Australiano. Meio tímido. Como é que soubeste desta onda? Internet. Como estava a onda? Superb. Para baixo fiz o caminho em 20 minutos, na volta, 30 minutos. Sou lento.’ Três viaturas adiante, chegava outro. Um alemão do sul. Louro. De olhos azuis. Sorridente. Sociável. Como soubeste desta onda? Disseram-me. Excelentes ondas. De 2 metros e meio. Tem cuidado se fores lá baixo. As pedras estão escorregadias. Escolhe a maré vazia antes do meio-dia de amanhã. No dia seguinte, comecei pelo Monte Verde. Tive sorte em encontrar lugar para estacionar. As escolas do Xolim, do João Rodrigues e do Triki estavam em aulas. Vou ao miradouro de Santa Iria. A custo, descobri um pontinho negro na água. Fui lá. Troquei atalhos. Até que vi alguém. Era o Carlo, italiano de Roma que mora na Ilha. Ondas? Fracas.
Que nomes deram (dão) ao que se vê do miradouro? Entre este, a que deram o nome de Santa Iria (inaugurado em 1941 na Ponta que Frutuoso chamou de Santiago) e a Ponta do Cintrão (onde se vê o Farol e não há muito tempo houve uma vigia de baleia) fica a baía de Santa Iria (cujo nome – dado muito mais tarde -, derivará de uma ermida que em tempos João do Outeiro quis erguer no cimo do Piquinho: um ilhéu rente ao porto). Emoldurando a baía, as prainhas (morada das ondas), o calhau do Ferreiro, a boca da ribeira do Salto, o calhau do Esguicho e o (infeliz) porto de Santa Iria. E a História Geológica daquilo por ali? ‘Essa costa faz parte do limite nascente do graben da Ribeira Grande. As lindas prainhas são reentrâncias de erosão preenchidas por areias vulcânicas. As bases dessas praínhas são enormes penedos de basaltos acinzentados que aceleram as ondas, terra dentro.’ Diz Vítor Hugo Forjaz. ‘As prainhas são ‘praias mistas de areia e calhau rolado, rodeando domos e cones strombollianos.’ Diz um folheto que tem mão de Vítor Hugo Forjaz. O que disse das prainhas em quinhentos o cronista Frutuoso? ‘de areia, de um tiro de mosquete de comprido ao longo da água do mar, com que se vai misturar alguma doce das fontinhas da alta rocha (…).’ Dá-se o caso que essas prainhas descritas no século XVI pelo cronista Frutuoso, hoje (até prova em contrário) estão mais a poente do local onde Frutuoso as colocou. E, se as contas estiverem próximas, a praia não só estará noutro local como terá o dobro da extensão da do século XVI: rondará os 290 metros (mais coisa menos coisa). Em suma, trata-se de um Calhau de Areia (a exemplo de outros). Às vezes com areia. Outras, não.
Quem (primeiro) avistou e decidiu surfar aquela onda? Para me aproximar de uma resposta, descobri duas versões. A de um grupo de adolescentes frequentadores do Pópulo e ligados ao Clube Naval de Ponta Delgada, em que um deles, Francisco Cabral de Melo (Chico Moleza), apesar de numa segunda conversa não ter dúvidas de ter sido em 1984, numa primeira, havia vacilado entre 1983 e 1984. E outro grupo de adolescentes frequentadores e (excepto um) residentes no Pópulo, em que um deles, Pedro Medeiros (Pedro Violante), tem dúvidas se foi em 1986 ou em 1987. Francisco (do primeiro grupo): ‘Nasci em 1967, teria uns 14 anos quando em 81 ou o mais tardar em 82, no Verão, comecei a surfar. Dois ou três anos depois, por isso, talvez em 1983/4 chegámos à onda.’ Insistindo noutra ocasião, indicou 1984: ‘tinha já 17 anos, portanto 1984.’ Como deram com a onda? ‘O Guy, eu e o Luís Ferreira vimos do miradouro a onda lá em baixo. Não fomos daquela vez. Voltámos noutra ocasião. Fomos pelo caminho de terra do Lameiro no Fiat 127 do pai do Guy Fraião Costa (já tinha 18 anos e o pai emprestava-lhe o carro). Perguntámos o caminho a um pescador que se dirigia para o calhau. Fomos atrás dele. Entramos na água. Apesar de a onda não estar boa, ainda surfamos.’ Na versão de Pedro Violante (segundo grupo), como é que descobriram a onda? ‘Do miradouro viu-se ondas a quebrar lá em baixo. Como é que se chega ali? Entrámos na carrinha e – se não me engano -, tomamos o caminho de terra do Lameiro. Devemos ter perguntado a alguém como é que se ia lá para baixo. Foi-se perguntando. Quem então a descobriu? ‘Um grupo grande que foi à procura de ondas na carrinha do Zé Vítor da Espelhadora.’ Quem fazia parte desse grupo? ‘Dos que me lembro, além do Zé Vítor e de mim, lembro-me do Minhoca – o José Albergaria, o Luís Português. Mas atenção havia lá outros. Naquele grupo ninguém tinha lá ido. Atenção pode ter havido quem lá tivesse ido antes de nós, mas aquilo das ondas funcionava dentro de um segredo tal qual nos descobrimentos marítimos portugueses. Quem sabia, não dizia. Nessa primeira vez, saímos da água depressa. Pareceu-nos ver uma barbatana de cação. Foi fugir.’
Em que pé ficamos, quanto a quem e quando foi descoberta a onda? Para responder sem dar topadas irremediáveis na verdade, convém olhar para a História. A partir de 1941, data em que o Miradouro de Santa Iria foi inaugurado, qualquer visitante que ‘se pelasse por ondas’ e que olhasse para as Prainhas poderia reclamar: ‘Ei, ali está uma onda boa. Para a próxima trago a prancha!’ Ou que alguém (civil ou militar, português ou anglo-americano), que espreitasse o mar pela janela do avião que se dirigia a Santana, tivesse reparado na onda de Santa Iria. Não esquecer que desde 1940s’ ali funcionou a base aérea (portuguesa) n.º 4 e ali iam pilotos das forças aéreas inglesas e americanas (gente oriunda das mais díspares partes dos Impérios coloniais Europeus, onde se surfava à grande). E que (apesar de a base ter sido transferida para as Lajes) o aeroporto ali se manteve até 1969. Há ainda ter em conta os que de fora da Ilha (portugueses ou não) iam ‘procurar ondas,’ como aconteceu com João Luís Pires dos Santos que surfou a Viola (ou a Maia?) em 81/82. E desse (pouco ou nada) se sabe. Ora, mesmo sem o ano certo/certo, certo é que o primeiro grupo é anterior ao segundo. Como é certo que ambos testemunharam a agonia do porto de Santa Iria.
Onda para surfistas e bodyboarders? ‘Mais para surfistas. Por ser uma onda mais vertical. Mas depois foi descoberta uma que rebenta da direita. Que é a melhor. A da esquerda foi a que nós descobrimos.’ É uma onda considerada por alguns como do ‘Top 10 mundial.’ Outros, nem por isso. Por que foram (então) à cata de ondas? ‘Quando a Ribeira Grande estava a chatear, a castigar, a dar porrada com ondas grandes e Rabo de Peixe ainda não estava a quebrar. Rabo de Peixe precisava de mar maior para quebrar.’ Foi por isso. Isso que diz Pedro Medeiros (Violante), diria outro surfista (ou bodyboarder). Como é descer e subir a ladeira e atravessar o calhau até às prainhas? ‘Aquilo é um esticão e pior ainda é subir com os fatos molhados e as pranchas às costas. E perigoso. Por causa das derrocadas. E quando o mar está muito grande é difícil regressar. E se a maré cheia estiver muito cheia, torna-se ainda mais difícil passar a ponta. Uma vez tivemos que trepar por uma encosta. Fomos safos por pescadores. Lá há sempre um ou outro. Ajudaram-nos com as pranchas.’ Há (por isso) – uns poucos – que preferem fazer o trajecto num barco do Porto Formoso. Deixar as viaturas no caminho, foi uma má experiência: ‘Houve uma vaga de assaltos. Vandalismo. Era malta da droga. Chegámos a deixar o carro mais junto da Freguesia. Um ia lá, deixando o resto à entrada da vereda. Era cá uma estopada!’
História (possível) da zona da ribeira do Salto (o caminho da onda). Além de dar o nome à ribeira também dá (ou dava?) o nome a uma área mais vasta. Que era (pelo menos no tempo de Frutuoso) tratada de forma (algo) distinta da Ribeirinha. Ficava pelo caminho que do centro da Ribeira Grande se dirigia à Ladeira da Velha, Porto Formoso e ao Nordeste. Onde começava e terminava? Da primitiva ermida do Salvador (mandada construir por António Rodrigues da Câmara no primeiro quartel do século XVI) à Grota do Sombreiro? Ou abrangia ainda a Ladeira da Velha? Há provas de que (pelo menos) até ao último quartel do século XVI, a área não só era habitada como era um importante centro abastecedor de matérias-primas e bom produtor agro-pecuário. Em 1508, Fernão d’Alvres (casado) morava ali. E cultivava trigo. Diz-nos Frutuoso. Em 1525, a Câmara da Ribeira Grande contratou Fernão Álvares o Grande (para o distinguir do mestre da ponte do Paraíso no centro da então Vila) para construir o caminho de acesso ao porto de Santa Iria. É provável que esse Fernão fosse o que morava na Ribeira do Salto. Fernão, para rasgar o caminho (de modo a facilitar a tarefa de arrastar terras, juntou as águas das ribeiras do Salto e da Ribeirinha). Na epidemia de peste de1526/27, quando a população do centro da Ribeira Grande foi evacuada, parte dela foi morar para a Ribeira do Salto onde construiu um moinho (de água) de cereais. Gonçalo Fernandes e Pedro Gonçalves, também moradores da Ribeira do Salto, criavam galinhas. Fernando Eanes, outro morador, criava gado vacum. Junto à Grota do Sombreiro, na Fajã do Bulhão, ‘dava muito trigo e algum pastel.’ Numa pedreira que houve junto ao salto (queda) da ribeira do Salto extraía-se ‘boa pedra de cantaria, quase branca [traquite], que serve para edifícios.’ Na foz, ‘no cabo desta ribeira (como diz Frutuoso), ao longo do mar, está um topo de terra alto, onde está uma tufeira.’ Tufo (considerado o melhor da ilha) era usado não só para chaminés mas para outras obras. Onde morariam os mestres (e operários) da pedra e do tufo? Onde guardariam ferramentas e materiais? É provável que (por comodidade e segurança, alguns, pelo menos) morassem perto do local de trabalho. Que, vendo por hoje, distaria ainda uns dois mil metros da ermida do Salvador (no início da Ribeirinha de então). Há (ou houve) vestígios que permitem admitir essa possibilidade. Na década de trinta, segundo um testemunho, ainda se viam ruínas de fornos espalhados pela ladeira da ribeira do Salto abaixo (como julgo ter percebido). Restos de construções ligadas às actividades extractivas? Ou também restos de fornos domésticos? Havia bastante espaço para hortas. Peixe e marisco nos calhaus. Água ali mesmo. Por que razão (em ocasião que desconheço) se deixou de extrair pedra e tufo dali? Esgotamento da tufeira e da pedreira? Já não se usava o tufo para caldear com a cal? Preferira-se o basalto à traquite? Por que abandonaram as (hipotéticas) casas? Havendo cessado a exploração, não se justificaria morar fora do centro da Ribeirinha e da ermida (velha, a nova uns trezentos metros abaixo foi iniciada em 1826 e concluída em 1861)? Hoje, havendo-se perdido a memória do que foi aquilo por ali, só uma intervenção arqueológica poderá (eventualmente) resgatar (ou negar) algum daquele passado. Aí por meados do século XIX, dominando já a área os senhores do Lameiro, José Jácome Correia fez ali uma (excepcional) granja experimental. Foram introduzidas novas raças de gado vacum, de espécies arbóreas, de chá. Até à primeira metade do século XX, as ladeiras que descem à ribeira do Salto (onde outrora se situaram as tufeiras e as pedreiras de traquite e por onde hoje vão os surfistas) produziam ‘agricultura de subsistência: fava, feijão, batata, batata-doce. Eram pedaços de terra muito fértil mas devido ao seu declive difíceis de trabalhar: ‘eram cavadas a sacho ou lavradas a arada.’ As fajãs sobranceiras as prainhas davam chicória, batata-doce. Passaram, quase sem excepção, umas e outras, a pastagem.
Alguma vida à volta da Baía de Santa Iria? A gritante ruína (actual) do porto de Santa Iria (no entanto) não há muito foi (para muitos) o melhor porto da costa Norte da ilha. Seguramente desde meados do século XX, as suas águas foram procuradas por banhistas. Em provas de destreza física, os mais corajosos, atiram-se à água do Piquinho (o ilhéu encostado ao porto) ou nadam até às baixas a meio da baía ou chegam às prainhas. Há quem regresse a nado. Outros, preferem o calhau. Uns poucos, sobem a ladeira da ribeira do Salto. Não longe da foz, onde vários piqueniques ainda se fazem, ficam as Poças (uma excelente piscina natural quase desconhecida). Que fazer para melhorar aquilo por ali? Construir um caminho até à foz da ribeira do Salto e lá em baixo construir estruturas de apoio aos surfistas e banhistas (como por exemplo, acontece no Lombo Gordo em Nordeste)? Foi o que se pretendeu num projecto anterior a 2005 e que (felizmente para alguns) ficou na gaveta. Deixar mais ou menos tudo como está, como parece preferir grande parte dos surfistas? De uma ou de outra maneira, há que ter (sempre) cuidado. João Rodrigues sugere ‘degraus no estilo dos da Lagoa do Fogo e a sinalização dos perigos que o surfista vai encontrar.’ Teme que (e falará por outros) que ‘se algo de trágico vier a suceder é muito capaz de prejudicar os profissionais do surf.’ Xolim lança o alerta: ‘agora com as chuvadas ainda é pior. Já houve quem partisse pernas. E quem tivesse de ser resgatado.’ João Rodrigues sugere outra opção: ‘fazer o percurso de barco. O Paulo do Porto Formoso tem feito estes percursos.’ Sem dispensar um painel explicativo no miradouro de Santa Iria, o local certo, a meu ver, para ‘interpretar’ a vida e a história (geológica e humana) da baía (e monitorizar a qualidade da água), seria no porto de Santa Iria. Porto, cuja recuperação e revalorização não poderá (seja por que razão ou pretexto for) ser (ainda) mais adiada. Seguindo o bom exemplo da Praia de Santa Bárbara, há que criar ali um espaço âncora, não só para os banhistas que a frequentarem no período estival, mas para assegurar uma frequência (de não banhistas) ao longo do ano. De outro modo, será entregar o ‘toucinho a Maio.’ Como dizia a minha avó Deodata.
Prainhas, Ribeira do Salto (Ribeirinha – Cidade da Ribeira Grande)