Surf na Ribeira Grande: Rabo de Peixe – IX
Rabo de Peixe – IX
É quase impossível falar das ondas da Ribeira Grande sem falar das malogradas ondas de Rabo de Peixe. Isso é (quase bem) verdade para os surfistas mais velhos. Por que será? Porque, com as irmãs do Areal de Santa Bárbara, do Monte Verde e de Santa Iria, formavam o ‘quarteto’ dourado do surfing da Ilha. Porque ‘entre os surfistas de fora da Ilha, Rabo de Peixe era sinónimo de boas ondas.’ Por que razão foram à vida? Provavelmente, porque o surf era (ainda na Vila de Rabo de Peixe, porventura, já não tanto na cidade da Ribeira Grande) uma ‘brincadeira para entreter’ ‘os meninos drogados da cidade de Ponta Delgada.’ Estava-se (então) longe de reconhecer o valor económico das ondas. Ainda assim, os esforços (frustrados) para as salvar não iriam cair em saco roto. As entidades oficiais - locais, regionais e nacionais -, passariam a ter (muito mais) respeito pelas ondas.
Onde se formam as ondas? E como? Rui Ponte, especialista à escala mundial do fenómeno do El Nino, assíduo das Poças e dos areais da Ribeira Grande, gerado e criado aqui mas nascido nas Lajes do Pico, onde a mãe fazia questão que os filhos fossem nascer, respondeu: ‘Essa era uma bela conversa para um passeio no areal de Santa Bárbara. Por e-mail é mais difícil. No entanto, e tentando por poucas palavras, toda a ondulação é gerada localmente pelos ventos à superfície. Depois, dependendo das suas características (comprimento de onda, frequência de oscilação, etc..) pode dissipar-se localmente ou propagar-se por longas distâncias. E consoante a idade e a distância de propagação, pode tornar-se mais regular. As ondas que vêm rebentar no Areal, bastante regulares, podem ser geradas a milhares de quilómetros! A ondulação mais irregular, que se pode ver misturada com as outras ondas regulares que fazem a delícia dos surfistas, é gerada localmente e não teve ainda tempo de "amadurecer," é uma grande misturada.’ E, continuando: ‘Essas ondas de superfície só sentem o fundo quando estão perto da costa. O fundo não gera a onda mas modifica-a de várias maneiras. Pode atrasar a velocidade de propagação, pode mudar a direcção de propagação, pode ditar quando e como a onda quebra, etc. Aliás, a onda quebra porque a crista sente menos o fundo e adianta-se aos poucos acabando por "cair." A maneira como a profundidade varia junto à costa é muito importante. Pedra ou areia pode ter influência na medida em que pode afectar as variações de profundidade (pedra não mexe e é irregular, areia é outra coisa).’ Por que razão há mais ondas no Norte? ‘Os ventos são, como já sabemos, importantes. Mas, neste caso, não são os ventos locais que interessam. A maior parte das tempestades no Atlântico Norte passam a norte dos Açores. Mesmo longe e não influenciando o tempo nos Açores directamente, as ondas que elas geram vão naturalmente ter maior energia nas costas viradas a norte. Julgo que é por isso que há sempre mais ondas na costa norte. Mas o perfil de profundidade perto da costa também tem importância porque influencia a direcção de propagação das ondas e especialmente onde e como rebentam. Vai um mergulho? Era bom, era!’ Que há de (tão) especial nas praias da Ribeira Grande? Perguntei a Pedro Arruda, um esteta das ondas que foi Presidente da USBA: ‘A resposta mais simples é a qualidade das ondas.’ De que quadrante são as melhores? ‘Do Norte com vento Sul.’ O que te atrai nas ondas? ‘Costumo dizer que o Surf não é um desporto de acção mas de contemplação… De facto passamos mais tempo sentados na prancha à espera da onda do que em cima dela… e a esperar pelas ondulações, os ventos certos, a hora da maré… são muitas as variáveis e a tua vida fica tomada pelos mapas meteorológicos e pelas previsões…’
Enquanto os desportos de pavilhão, para falar apenas destes, exigem a construção de edifícios (normalmente) caros e de uma constante manutenção ainda mais cara, os desportos de ondas precisam (apenas e pouco mais) que deixem as ondas em paz. Já em 1995, João Brilhante tinha essa preocupação. Mesmo antes, já defendia (em entrevistas e artigos de jornal) os areais (daqui) contra a selvática exploração de areia. Luís Melo (primeiro em Rabo de Peixe, onde iniciou o ensino do surf) a partir de 2001 defende as ondas de Rabo de Peixe e das Poças (os de fora conhecem-nas por Piscinas). O Alta Pressão, programa da RTP/Açores, a exemplo do que já se fazia pelo continente, dedicou três edições (uma primeira em 2004, uma segunda, em 2007 e uma terceira e última, em 2011) aos desportos radicais nos Açores. Ao tratar também do surf, abriu caminho à divulgação (portanto, à defesa) das ondas dos Açores. Luís Melo e Joana Cadete na primeira edição, e Luís Melo e outros, nas restantes, foram cruciais na revelação de spots de surf em todo o arquipélago. Em 2008, a ASSM, de João Brilhante, de Paulo Ramos Melo, de Vasco Medeiros, de Paulo e Luís Sousa, reintegrou no seu programa (já o havia feito em 1995) ‘campanhas de sensibilização e limpeza nas praias bem como acções de formação.’ O mesmo havia feito e voltaria a fazer (Luís Melo e os seus companheiros) em Rabo de Peixe. Em 2009, a perda da onda das Poças e das primeiras duas de Rabo de Peixe, levou a USBA (para prevenir males maiores) a (tentar) ir à raiz do mal. Para tal, organiza uma (tanto quanto sei, um inédita) Conferência (que teve lugar no Teatro da Ribeira Grande) intitulada: Em Busca da Onda Perfeita – Os Desportos de Ondas e a Sociedade Açoriana: Perspectivas Económicas e Preservação Ambiental para um Desenvolvimento Sustentado. A intenção era, como se pode depreender pelo título, além de discutir o valor económico da actividade, a de (em primeiro lugar, e isso já havia sido tentado antes) ‘identificar e classificar todos os locais com aptidão para a prática dos desportos de ondas na Região.’ Querendo ir mais longe, isso já era novidade, o levantamento serviria ‘de base para uma futura legislação específica de protecção destes locais.’ Vasco Medeiros (que trocara a ASSM pela USBA) apresenta o projecto. Infelizmente, ‘acabaria por não se concretizar.’ Porquê? ‘Meteram-se entretanto outras coisas pelo meio e nem todas as ilhas responderam ao nosso pedido.’ Explica Vasco Medeiros.
E nisto, em 2011, estala a polémica (desta vez também a nível nacional e internacional) em torno das ondas (sobreviventes) de Rabo de Peixe. Porquê? ‘A ampliação do porto de pesca (…) pode ameaçar uma das melhores ondas do arquipélago," alerta a (…) associação SOS - Salvem o Surf.’ A acontecer o que pretendia o Governo e (alguns) pescadores, seria uma nova catástrofe a somar às anteriores. O que já sucedera? ‘A baía de Rabo de Peixe tinha a valiosa onda para os surfistas do arquipélago dos Açores, uma onda de qualidade mundial. Essa foi estragada há cerca de uma década com a construção do actual molhe.’ E avisam o que poderia vir a suceder com a obra pretendida: ‘(…) existe uma outra onda vizinha que está em perigo, com o projecto do novo molhe.’ Disse Pedro Bicudo, presidente da associação. Querendo salvar a onda, propõem alternativas. Que (na sua óptica) contentariam pescadores e surfistas: ‘O estudo da associação propõe, por exemplo, que seja estudada a alteração da implantação do novo molhe projectado, rodando-o a fim de permitir a escapatória das embarcações e de não prejudicar o surf.’ Em Biarritz, França, Paulo Ramos Melo, responsável pelo capítulo Açores da Surfrider Foundatiom Europe, que reabrira – com João Brilhante -, em 2007 a ASSM, defende aquelas (preciosas) ondas. No ano seguinte, 2012, em Março e em Dezembro, numa última e desesperada tentativa de salvar o que restava daquelas fantásticas ondas, desloca-se a Rabo de Peixe uma delegação de peso do surf nacional. Voltam a propor soluções de compromisso, no caso ‘como alternativa secundária,’ ‘defendem a construção de um recife artificial ao lado do quebra-mar, para que as crianças possam aproveitar uma onda semelhante.’
Em finais desse ano de 2012, Tânia Sofia Lourenço Cale, que (a fim de fazer o seu estudo) havia pedido a colaboração de Vasco Medeiros e de outros surfistas locais, apresenta ‘O Surf como potencial produto turístico nos Açores. Além de apresentar um (exaustivo) levantamento (bastante comentado) de spots de surf em todo o arquipélago, entre os quais se destaca Santa Bárbara, ‘a jóia da coroa,’ como aí é dito, prova por A mais B o valor económico das ondas dos Açores. No Verão de 2014, o documentário da americana Sachi Cunningham ‘Mar sem Fim,’ filmado na Ribeira Grande nos meses anteriores, é apresentado no festival de cinema de surf (Portuguese Surf Film Festival) da Ericeira. ‘retrata as ondas grandes [essencialmente a da Viola] da Ribeira Grande e [aborda] a História da chegada do Surf aos Açores.’ ‘Carlos Garoupa, a sua família e Marco Medeiros, são protagonistas. Apesar de todo o esforço, sem ter em conta o contributo dos surfistas ou o aviso dos pescadores mais batidos naquele mar, o novo molhe é inaugurado naquele mesmo Verão de 2014.
E agora? Havia-se perdido uma batalha, mas não a guerra. Em 2015, menos de um ano sobre a destruição da onda de Rabo de Peixe, o Governo Regional manifesta intenção de subir um patamar no apoio que presta ao Surf. Se, desde 2008, indo atrás do que fizera a Câmara da Ribeira Grande, o Governo Regional investe nas competições, em 2015, quer proteger as ondas, afinal de contas, elas são a matéria-prima do Surf. A mudança (pelo que se vê) deveu-se (em parte) a Paulo Ramos Melo, da Surfrider Foundation Europe, Capítulo Açores, e a Fausto Brito Abreu, Secretário Regional. Conhecido de Paulo, com um fraquinho pelo surf, fizera a instrução primária numa escola de Rabo de Peixe, inaugurara as obras que herdara do seu antecessor, mas quer mudar: ‘O Governo Regional entende que a qualidade das nossas ondas para a prática de surf é um recurso marinho com potencial económico e uma mais-valia ambiental.’ Promete-se (doravante) não esquecer as ondas: ‘O objetivo é também, diz, permitir "avaliar o impacto ambiental de futuras obras na orla costeira e gerir conflitos entre diferentes atividades na utilização das áreas marinhas.’ O mais importante, destaca Paulo Melo, ‘é que se trata de uma ferramenta que permite uma melhor tomada de decisão" quando o Governo regional pretender construir um porto, um molhe ou outra qualquer infraestrutura na costa de uma das ilhas.’ No final, quando a informação estivesse trabalhada, seria ‘introduzida na plataforma online do SIGMAR e poderá ser consultada por todos os interessados.’ Desta vez, passar-se-ia (ainda que a passo de caracol) da intenção aos factos?
Lugar das Areias, Vila de Rabo de Peixe – Ribeira Grande (continua)