Gênese do infinito: Atemporalidade da imaginação no poema de Quintana

À tardinha, sentada ao arrebol na casa de campo, observando a passagem suave e iridescente dos matizes ao encontro da noite, descanso distraída contra o peito a grafia de 80 anos de poesia de Mário Quintana. A edição de 2008, pela Editora Globo, conversa com o fascínio e mistério das luzes do firmamento acima. Assim, aquém de esquadros políticos e históricos, e flameada liricamente por encanto, necessidade e inspiração da natureza e das palavras, imagino que o sentimento melancólico e hermético desperto ao reler meu surrado e amado exemplar, propiciará fugidio e propenso ensaio analítico desse primeiro poema publicado do apanhado de "A rua dos Cataventos":

I

Escrevo diante da janela aberta.

Minha caneta é cor das venezianas:

Verde!... E que leves, lindas filigranas

Desenha o sol na página deserta!

Não sei que paisagista doidivanas

Mistura os tons... acerta... desacerta...

Sempre em busca de nova descoberta,

Vai colorindo as horas quotidianas...

Jogos da luz dançando na folhagem!

Do que eu ia escrever até me esqueço...

Pra que pensar? Também sou da paisagem...

Vago, solúvel no ar, fico sonhando...

E me transmuto... iriso-me... estremeço

Nos leves dedos que me vão pintando!

Após o momento de silêncio necessário da absorção artística, ao empréstimo do próprio dito do escritor, o poema é como "Um gole d'água bebido no escuro". E ao relê-lo por diferentes momentos e situações, conjecturas urdem-se ao passo dos raios coloridos de possibilidades como o entardecer no campo. Um jogo de luzes além da folhagem, se me permite a liberdade poética. Nesse sentido, minha primeira impressão geral de sua totalidade é que criamos e somos seres da imaginação - A gênese do infinito. O soneto, de estrutura clássica e de flerte ou raiz temática modernista/surrealista, retrata os símbolos como invólucro humano do plano das ideias. Por meio de outras leituras do mesmo texto, podemos considerar que a poesia de Quintana pinta a iluminação de que somos imagens dentro de imagens de uma vasta tapeçaria. Lugar onde a psique, a fantasia e a transversalidade do real se fundem.

Adentrando relativa perspectiva, é possível considerar sermos diversas traduções e versões imagéticas conforme o autoconceito e o olhar da imensidade de nossos semelhantes e seres que compõem nosso cosmo de existência. Ao modo do processo criativo que espelha a espiral ironicamente versátil e difusa da visão ora enviesada, ora surrealista da vida, o poema metamorfoseia no mundo gráfico das letras, a junção e continuidade que embaralham, camuflam e igualam criador e criatura.

À vista disso, junto do seu caráter de matéria universal, dialoga e compartilha também expandido rizoma e irmandade com outras criações artísticas, em especial com a música “Paisagem da Janela” composta por Lô Borges e Fernando Brant. A ambientação, estrutura e propagação do conceito introspectivo e epifático da formação textual demasiada semelhante às duas obras, eleva e confere tanto ao soneto de Quintana quanto a canção, graça, sensibilidade e a magia da arte acrônica, que atravessa e unifica noções de tempo e espaço. São fragmentos suspensos do clássico que nunca perdem a contemporaneidade a qualquer datação.

Todavia, e além, o significado das palavras escolhidas, descrição e estado contemplativo do eu lírico - conjuração cristalizada do passageiro - leva-me a outra análise que parece sugerir a viagem das descobertas e o desenvolvimento da ação humana ao longo das fases da vida. Na primeira estrofe, permeia-se o sentido de infância, início e inocência. A palavra “Verde” e a frase “Desenha o sol na página deserta!”, podem aludir e reforçar o período da tenra idade e a apresentação das possibilidades e aprendizado. Na segunda, o passar dos anos, o poder da imaginação, desdobramento da evolução e complexidade cognitiva, a juventude que amoral testa a busca das mais sortidas experiências. Já na terceira e quarta estrofe, chegamos a maturidade, o refinamento, beleza alegórica e certa conformidade, ou melhor dizendo, grau de sentido da mutação infindável do mundo induzida pela consciência, o humano como a fluidez de poemas e a interpretação do outro.

Destarte, a concepção poética apresentada pela narrativa de Quintana, retrátil lampejo que rompe véus, muitas das vezes condensados de uma única focada realidade, desvanece os contornos metafísicos do abstrato, mesclando o princípio visível simples à multiversos antes impensavelmente conectados, sem bordas definitivas e sim esfumadas e até inexistentes de começo e fim, o limiar entre mundo e sonho.

Laura Mancini
Enviado por Laura Mancini em 15/04/2024
Reeditado em 16/04/2024
Código do texto: T8042442
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