Quem cuida dos médicos?
Quem cuida dos médicos?
Para Mirtes Colombera ( in memoriam)
A relação medico- paciente inicia-se muito antes do primeiro contato entre as partes, quando o paciente pensa em procurar o médico escolhido .Antes do primeiro encontro , o paciente imagina quem vai lhe atender , projeta nessas imagens seu desejo de ser cuidado baseado em experiências pessoais prévias com figuras parentais significativas em seu desenvolvimento psíquico, e leva ao consultório seus medos, suas esperanças , sua confiança que pode ser confirmada se houver um verdadeiro encontro terapêutico baseado na empatia e no acolhimento .
Do outro lado da mesa está o médico, esse que na etimologia da palavra significa " aquele que media forças de cura entre o céu e a Terra", o que lhe confere simbolicamente um " poder" quase divino .Uns não se apercebem e entram nesse papel divino , a ponto de serem totalmente onipotentes, vivenciando no seu cotidiano o mito do herói .Um professor meu de medicina intensiva, depois de tentar reanimar exaustivamente uma paciente pós parada cardio- respiratória ,sem sucesso , trancafiou-se dentro do quarto pelo resto do plantão .Não aceitava sua limitação humana pois acreditava ter poderes infindáveis .
E quem cuida dos médicos? Como cuidamos de nosso psiquismo para que evitemos passar aos pacientes nossos dramas pessoais e nossos conflitos existenciais? Quem cuida de nossa natural onipotência? Lidar com ela é o diferencial entre um médico que abraça sua humanidade e outro que não reconhece seus limites, não se reconhece humano .
Carregamos para casa todas as angústias e problemas de nossos pacientes? Não exatamente dessa forma simplista.Quando fecho a porta do meu consultório , deixo para trás os conteúdos e vivências porém é como se eu carregasse uma pedra imensa, como Atlas carregava a sua pelas encostas .Isso num movimento psíquico que se repete na minha prática por mais de 42 anos , a pedra me acompanha e me define .Sem ela , sem essa reunião de partículas das subjetividades de nossos pacientes, não se completa a função de " mediare" .E sem ela não nos definimos médicos .
Como aliviamos o peso? Lidamos diariamente com nossa própria morte na morte do outro , seja ela psíquica ou física .Na verdade , estamos cuidando da saúde do outro evitando a morte deste e visualizando a nossa .Nós médicos somos os piores pacientes, assim dizem outros médicos, pois sabemos as complicações possíveis de nossas doenças e queremos de forma onipotente cuidar de nós mesmos .Lidamos com nossa morte no outro para talvez aceitarmos a nossa .Assim talvez tenhamos escolhido nossa profissão .
Quando perdemos um paciente , nossa onipotência é desafiada .Se temos algum cuidado com nossa saúde mental através de psicoterapia pessoal , temos maiores condições de aceitarmos que a morte era inevitável e que fizemos tudo que estava ao nosso alcance para evitar lá.Ao contrário , quando não tratamos nosso emocional , a perda de um paciente nos mata por algum tempo .
Por fim , ocorre me que quem cuida de nós médicos é a repetição do encontro terapêutico , onde cuidando do doente , imaginariamente controlamos a angústia maior de todo ser humano que é sua finitude .
Marcia Tigani Machado ( médica, psiquiatra)