Pequeno Compêndio do Fazer Criativo
Ao raiar e crepúsculos contínuos, surgia eventualmente a urgência nauseante de esconder-se. Sensação torpe do estranhamento sobre a pele e o ambiente. E nestes instantes, as frestas da verdade cegante da percepção quase palpável, o saber e considerar sem filtros da tradução unilateral da linguagem e preceitos humanos, este aperceber-se da própria existência crua e de cada mínimo detalhe intrincado girando à volta — quais penetram e justificam relativamente cada versão improvisada e íntima do caos, vivências e as múltiplas sequências aleatórias do deus destino, espelhadas como a rotação ora suave, ora violenta da própria vida espontânea ao passo semelhante do rodar indiferente de detritos e corpos entre as estrelas — lhe dera o pensamento sarcástico de comprovar agir pareado e a partir do mais primitivo extinto intrínseco da maioria dos seres: lutar ou fugir.
Mas longe de total desespero, treinando o olhar sobre tais frestas, parece existir sob trabalho infausto e tortuoso, ralos lampejos de néctar e ambrosia na travessia do caminho. Um trunfo delicado no sutil detalhe artístico e motriz em qualquer escolha ou desistência, para aqueles que conseguem enxergar além das obviedades trágicas. Paira a pouca, mas sucinta possibilidade de o que fazer e como manejar as consequências do efeito borboleta, semelhante à forma de tentar urdir fios em busca do mais primoroso ou novo formato de padrão de tecido. Ora, apesar dos desastres e primeira surpresa, viver o que se é, sem o peso obtuso e pressão das futilidades das máscaras burlescas tão bem posicionadas nos atos da vida cotidiana, não deveria ser prova de fogo e sujeição sacrificial que se aparenta, é absorvida e vivida. Mas sem essa carga de sentimentos, sensações e divagações, do infinitivo dos meandros labirínticos do pensamento, da ótica multifacetada de traduzir e transver o mundo e estar ao meio involuntário das diferenças, a que se sujeitará e se apoiará o crivo criativo dos poetas? Decerto, o relativo gotejamento incômodo do sentir visceral — recriado para alguns como pingo incessante de um vazamento qualquer ou o correr plácido dos pequenos córregos, que desconforta e também acalenta — proporciona o florescer da beleza em cada luz e sombra dos recônditos abstratos e materiais dispersos em multiversos de uma mesma experiência.
Nesse sentido, a ausência do drama clichê ocasional, incompatibilidades, desavenças ou agruras dantescas, em virtude da evidência dessa frivolidade positiva uniforme, poderia embrutecer as possíveis variedades da criação. Como crescer sem a sustentação do rizoma? Por outro lado, não romantizando o sofrimento, levo este pensar mais a borda da ideia de que para trazer à luz a materialização das musas, é preciso capturar o momento em algum viés ou noção própria antes impensável e improvisadamente emergido. Tanto a vista de equilíbrio, submersão pequena do “mal ou bem” e até maior desproporção entre ambos, relativo caso, certamente pode configurar-se como o ponto de ignição do impulso que provê a diferença entre sobreviver e viver. Este impulso é o que caustifica a ociosidade improdutiva e a torna autora do produzir e ser artístico.
Adverso a como senti-lo, é preciso estar atento e espirituoso para aproveitá-lo. Pois, frágil e intenso como as tonalidades oníricas refratadas a curto período no véu celeste do anoitecer, o tempo de êxtase divino do pensar se desvanece sem alarde e duração estendida, diluindo-se irremediavelmente na escuridão da normalidade estável e previsível.
Mas o que fazer? Como obter ou até instigar este sentir e permanecer sem luta ou fuga em meio a possível insensibilidade provocada pelos mesmos sacrilégios? Parafraseando Manoel de Barros, “Eu só não queria significar. Porque significar limita a imaginação.” e “O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo”. Eis aqui talvez uma das infinitivas medidas para remediar ou ao menos acender uma mísera faísca da conjuração mágica da Musa. Nas espirais e vácuos dos paradoxos, como essa pluralidade de unir e reinventar premissas, fundir e expandir novos olhares por concepções singulares e versáteis pode ser o ectoplasma e energia da passagem egéria. E da sinônima força da invenção psíquica que nos classifica humanos, ou qualquer sujeição que a isso se aproxime e seja.