Ribeira & Mar
Pode parecer irónico, no entanto, à excepção das ligações com o exterior e de alguma actividade piscatória, a Ilha só terá começado a voltar-se para o mar (e ainda assim timidamente) a partir da segunda metade do século XIX. Essa é a razão (principal) que me leva a (tentar) ver (de forma mais clara a) longa e larga evolução do uso do litoral no Concelho da Ribeira Grande. Vou (começar por) concentrar-me no litoral da sua sede de Concelho. Mais precisamente, na área que vai do Largo de Santo André ao Miradouro de Santa Iria. Porquê aí? Porque (desconfio) terá sido aí que se deu uma (notória) segunda mudança (mental e urbanística) da Ribeira Grande (sede). E onde encaixo aqui as Calhetas? Se seguir (e comparar) a evolução do litoral da sede do Concelho (antes de 1867) ao das Calhetas (a partir de finais de 1969), presumo poder perceber como (apesar das derrocadas) o litoral das Calhetas foi ganhando (entretanto) alguma importância. Quanto ao caso da Ribeira Grande (sede), a situação (poderá) resumir-se (grosso modo) assim: 1- Após a destruição de 1563-64, causada sobretudo pela ribeira, as principais casas afastaram-se das suas margens; 2- Pelo (profundo) receio que o mar inspirava, além do forte da Estrela, de calhauzareiros e de pobres casebres, a terra viveu de costas voltadas para o mar. Só a partir da década de trinta do século XX (muito provavelmente) indo atrás do que já se fazia na ilha e fora dela, a terra quer uma avenida litoral, miradouros sobre o mar e melhorar (substancialmente) as poças de banhos de água salgada. Enquanto isso, as margens da ribeira (onde se haviam reconstruído no século XIX alguns moinhos) começavam (sobretudo depois da construção da hidroelectrica e da inauguração da MOAÇOR em Ponta Delgada) a perder (lenta mas inexoravelmente) importância. Pelo contrário, o litoral (começava aos poucos) a ganhar (maior) importância. Não só na sede do Concelho, mas (também) em Rabo de Peixe. José Fraga, vogal da vereação, em Julho de 1931, pedia que se limpasse e construísse acesso à praia de banhos de Rabo de Peixe.
Em 1900, a Câmara melhora a Poça/Poças. Que eram frequentadas (não o esquecer) já em 1867. Em Junho foram ‘aprovados os projectos e orçamentos para a construção de barracas de banhos do mar nesta Vila [Ribeira Grande] (…).’ Em Agosto, já se achavam ‘quase concluídas as barracas junto à poça de banhos desta vila (…).’ Por que se lançou a Câmara nesse projecto? Esperava aumentar ‘o (seu) rendimento.’ Ou seja, receitas de ingressos e aluguel de espaços. Como? Oferecendo melhores barracas (sólidas), a autarquia oferecia novas ‘comodidades aos frequentadores de banhos.’ Daí (a razão) da proposta (unanimemente) aprovada pela ‘vereação’ para ‘ mandar edificar sobre a referida plataforma algumas [barracas] de pedra (…).’ A vereação - que tal decidiu -, era formada pelo Presidente José de Melo Nunes e pelos vereadores Francisco Tibúrcio de Oliveira, Manuel Tavares do Canto e António Tavares Torres. Quanto iria custar à Câmara a obra? ‘setecentos e vinte dois mil reis insulanos, equivalentes a quinhentos setenta e sete mil e seiscentos reis fortes.’ Como se fez o projecto? Ou dado ideias para ele? Não nos é dito, porém, é (muito) provável (arrisco a dizer) que tal - como era (então) habitual -, tenha resultado de ideias de algum (ou de vários) dos vereadores ao de alguém (habilidoso seu) conhecido. Ou (até) do (próprio) mestre-de-obras? Terá nascido de coisas que tenham visto em outros lados ou visto em revistas? Onde foram construídas as barracas? Na ‘plataforma quadrangular (…).’ Que havia sido construída (como se disse no trabalho anterior) - salvo erro – diz o autor da memória, em 1886. Quem foi o mestre-de-obras? António de Sousa Calouro. Que não sabia assinar. Na Quaresma de 1900, este pedreiro, casado, de 44 anos, morava com a família na rua do Vale na freguesia de Nossa Senhora da Conceição, a segunda da então Vila. Jacinta Amélia, a esposa, tinha 36 anos. À altura, o casal já tinha as filhas Maria das Mercês, de 10anos e Maria da Ressurreição, de 3 anos e o filho João de 8 anos, que ‘em tendo corpo e tino’ poderia (além de levar o almoço ao pai) tê-lo ajudado (de alguma forma) na obra. Por quê investir em banhos de mar se havia banhos termais? Porque a apetência pelos banhos de mar ultrapassara (já na Ribeira Grande) o das termas. Um ano antes da construção das barracas nas Poças, José de Melo Nunes (o Presidente) é claro a esse respeito: eram (as termas, quase só) frequentadas por gente de fora do Concelho e (muito pior) davam prejuízo aos cofres da autarquia. De facto, entre 1915 e 1934, tirando dois casos de posse partilhada de uma casa, as catorze casas das Caldeiras pertenciam a moradores de Ponta Delgada. Razão mais do que suficiente para a Câmara da Ribeira Grande propor a cedência das termas das Caldeiras à Junta Geral do Distrito. Ainda em finais de 1899, a Junta aceitou a proposta. Um ano antes da visita Régia á Ilha, o Governo de sua Majestade deu ‘luz verde’ à troca.
A nova atenção dedicada ao litoral da Ribeira Grande (sede), explicará (também) o cuidado da vereação em mantê-lo limpo. O que se torna (bem) evidente, na decisão que toma em Setembro. As barracas haviam sido construídas há escassos meses, e o Presidente José de Melo Nunes pedia (exigia?) ‘um subsídio às Companhias de pesca da baleia para ajuda do custeio com enterramentos de resíduos daqueles cetáceos arrojados às praias deste Concelho.’ O que seria (pelos vistos) um ‘acidente’ com episódios anteriores, já que, aí se diz: ‘No ano findo gastou-se com isso cerca de 1000 mil reis (Saneamento do Concelho).’ Diga-se que (nessa altura) se praticava (com regularidade) a caça à baleia (com base) no porto de Santa Iria. Não conheço a resposta das Companhias visadas, porém, o pedido só em, já é um (claro) indicativo de que se pretendia manter (impecável) o litoral. Quem foi Melo Nunes? Numa rápida pincelada, digo que era natural da Vila da Ribeira Grande. Que ‘fez (o) curso do Liceu de Ponta Delgada, com boas notas.’ Na Ribeira Grande, foi professor, tendo substituído Teófilo Ferreira, ‘fixou-se na Freguesia da Maia,’ onde casou, ‘sendo-lhe entregue a administração da Fábrica [de Tabaco] dali, que geriu muitos anos.’ Quem seriam os frequentadores (então) das Poças? Seriam (também) (de certeza) frequentadores da Recreativa (fundada em 1849) e do Grémio (fundado em 1903). Alguns deles, um ano antes da construção das barracas, haviam participado no primeiro ‘match de apresentação de foot-ball’ que pôs frente a frente, na Ribeira Grande, um ‘team’ (estreante) da Ribeira Grande a outro (mais experiente) de Ponta Delgada. Alguns, até, foram pioneiros da fotografia. Colaboravam ou tinham jornais. Uns estudavam em Lisboa.
Depois das iniciativas de Melo Nunes em 1900, teriam de decorrer três décadas antes de surgir uma administração autárquica que desse um novo (e decisivo) impulso na viragem da Ribeira Grande para o mar. Por que terá sido assim? Entre outras possíveis causas, talvez o facto se possa explicar pela proximidade aos projectos turísticos da Sociedade Terra Nostra. De facto, em 1934 abrira o Bureau de Turismo (em Ponta Delgada), estava eminente a abertura do Hotel nas Furnas (1935), seguir-se-ia (aí) o campo de golfe (1939) e a antecessora da SATA (1941). A Ribeira Grande não queria (de modo algum) ficar de fora. A suspeita torna-se (quase) certeza ao ler dois artigos publicados no Correio dos Açores em Maio e Junho de 1935. No de Junho, o seu autor que assina X, mas será alguém próximo da Câmara da Ribeira Grande, revelam-se os projectos (em curso) da autarquia. O articulista X (com muito orgulho bairrista, passa então) a enumerar (comentando) o programa da autarquia: ‘A [Câmara] vem lançando há tempos [Desde quando? Não diz] as suas vistas para a beira-mar e tem entre mãos um vasto plano de aformoseamento daquele interessante local.’ Qual é o programa? ‘Uma avenida marginal, que partindo do Largo de Santo André vai até à esplanada do antigo Castelo.’ ‘e ainda a construção dum terraço junto à praia de banhos que, pela sua piscina natural e pelas magníficas barracas para uso dos banhistas, é ainda talvez, o que há de melhor no género por estas ilhas.’ Porém, para tal era necessário ‘a expropriação duns quintais de forma a pôr a descoberto e a fazer realçar toda a beleza característica da penedia (…).’ A provar a importância do que se pretendia, adiantava a opinião (abalizada) de gente de fora: ‘A ilustre direcção de Terra Nostra conhece já a beleza destes sítios e achou tão interessante a vista do miradouro que o indicou como um dos pontos a visitar pelo turismo, estando assente que o Sr. Engenheiro Manuel António de Vasconcelos [com raízes familiares na Ribeira Grande. Autor, entre outros, do projecto do Hotel Terra Nostra das Furnas], faça o traçado de um quiosque a construir ali destinado à venda de postais, refrescos e produtos da indústria regional.’ Para captar o turismo que ia (e vinha) de Ponta Delgada às Furnas, era preciso algo mais: ‘Como complemento [acrescenta X] deste interessante plano, impõe-se o alargamento da canada das Feiticeiras [rua Mestre José Dâmaso], afim de dar saída ao caminho da beira mar para o lado da Ribeirinha, de forma a entroncar na estrada que segue para as Furnas. Derivaria por ali a passagem de turistas para as Furnas, proporcionando-se-lhes assim e sem lhes alongar o caminho, o mais belo trecho da estrada entre Ponta Delgada e aquele vale. (…).’
Quem seria aquele ‘grupo de rapazes de raro tacto administrativo e acendrado amor à sua terra’ que segundo X, na ‘(…) nossa Camara Municipal,’ estava ‘ desenvolvendo uma acção inteligente?’ Uma acta da Comissão Administrativa da Câmara Municipal da Vila da Ribeira Grande de Junho, mês em que sai o artigo, revela-nos os seus nomes: Presidente, Dr. Artur Soares Arruda (um mariense que esteve à frente da Comissão de 1932 a 1940) e os vogais, Dr. Artur de Almeida Lima, Hermano da Mota Faria (Presidente de 1950-1955), Dr. José de Medeiros Tavares (os três últimos antigos alunos do Instituto Gaspar Frutuoso de Ezequiel Moreira da Silva) e Faustino Teixeira de Lima (comerciante da rua Direita, o operacional). Alguns faziam parte de uma geração que estudara no Instituto Gaspar Frutuoso, que havia sido fundado em 1914. Ao exemplo da geração anterior, também tinham (alguns) ido estudar para o Continente Português. Onde terão ido buscar essas ideias? Ao que viam em postais, revistas e nas visitas que faziam fora da terra? Quem construiu (o que chegou a ser construído)? Talvez alguns dos mestres que estiveram nas obras da Sala Nobre e da remodelação dos Paços do Concelho.
Um mês antes de sair o artigo de X, José Bruno Carreiro havia publicado no Correio dos Açores, com destaque de primeira página, uma carta que (de Coimbra) lhe endereçara Clemente de Mendonça. Micaelense, vivendo naquela cidade, por sugestão de Amadeu de Frias Coutinho visitara a Ribeira Grande. Fascinado com o que lá vira, de volta a Coimbra, em Abril de 1935, traduz em palavras o seu (genuíno) ‘entusiasmo.’ ‘A Praia, que os ribeira Grandenses inventaram é muito interessante, com as suas bonitas e cómodas barracas, e até com água doce encanada, o que não é vulgar. Dominando a praia, há um quiosque-miradouro, que, nas horas de maior clama, atrai a fina-flor da Ribeira Grande, que ali se entretem e distrai em amena conservação, e regalando-se na contemplação do buliçoso mar (…).’ Não sem prestar ‘homenagem aos Ribeira Grandenses que têm tido artes de fazer da sua vila uma cidadezinha que parece mais cidade de que algumas cidades do Continente.’ Apesar de o projecto (completo) só se ter concluído muito mais tarde, ainda assim, estou (até prova em contrário) (razoavelmente) convicto de que datará da década de trinta o início da viragem da Ribeira Grande para o mar.
Arquivo Municipal da Ribeira Grande (Cidade da Ribeira Grande) (continua) (Correio dos Açores, 11 de Agosto de 2023)