Para ser
Interrompi as tarefas tão banais dessa rotina pobre de novidade, parei, nem sei por que, só sei que senti a escrita a chamar-me. O mais interessante é que não sei o que ela quer que eu diga. Talvez tenha sentido piedade da minha alma, do meu corpo estafado, do meu espírito sôfrego, desanimado. Deve ser a melancolia desses dias últimos do ano. Daqui a dois dias é natal. O ano se aproxima do fim, é mais um ciclo que se encerrará e dentro de mim essa sensação de: mais um ano acabou e não consegui ser eu. Todos os dias da minha vida, tenho a impressão de que estive a postos para performar a minha melhor versão, mas todos os dias, minha vontade se esconde atrás de qualquer intervenção. É como se tudo ao meu redor fosse motivo para eu recolher a insignificância de querer ser eu. Acho que não me fiz entender. Vou tentar explicar melhor. Todos os dias eu penso: hoje vou falar o que eu penso, vou vestir o que quero, andar olhando o horizonte, mas ao menor gesto de reprovação de alguém, me encolho, recolho todas as pretensões, sob qualquer pretexto. Acho que é covardia o nome que se dá. No dia seguinte, o ensaio recomeça e tem sido assim... são oito e três da noite, e essas linhas foram o máximo de mim que eu pude ser hoje.