HUMOR, CRÍTICA SOCIAL E INTERTEXTUALIDADE NOS JOGOS DE PALAVRAS EM “PESCADOS DO MUNDO” DE DAMIÃO CORDEIRO

RESUMO: O presente trabalho tece uma crítica acerca da obra “Pescados do Mundo” do poeta norte mineiro Damião Cordeiro, natural de Serranópolis de Minas. Nesse sentido, visou-se aqui uma percepção sobre o humor que jaz presente nos poemas do livro, bem como a intertextualidade e a crítica social. Porquanto, tomou-se como base argumentativa alguns pressupostos de Lélia Duarte, Roland Barthes e Gérard Genette, no sentido de verificar como a obra trabalha e revela os elementos citados, criando uma literatura de singular valor contemporâneo, tendo em vista a região Norte Mineira e a poesia que se constrói rotineiramente em torno dela.

“O bom humor é a única qualidade divina do homem” (SCHOPENHAUER, 2019). Com esse aforismo do bom e velho amigo Arthur Schopenhauer é que começo a falar de “Pescados do Mundo”. Sim, o que há de mais presente nesta digníssima obra publicada em 2020 pelo autor Damião Cordeiro é, sem dúvida, o bom humor presente nos jogos de palavras e nas subjetividades a que os poemas nos levam. Assim, de acordo com a praxe de um bom ensaio (se é que tal paradigma existe mesmo), me delimito aqui a tecer uma percepção sobre a obra desse poeta norte mineiro que, diga-se de passagem, escreveu um livro cheio de ironias literárias que não se vê todo dia. Logo, para início de conversa, vamos ao que se define, segundo os intelectuais do meu tempo, o que seria o humor e, nesse sentido, também a ironia, quando se fala em literatura.

De acordo com Lélia Duarte “o humor consiste exatamente numa ironia em que o objeto é o próprio eu que enuncia ou a ele se refere (…) valoriza mais o significante que o significado, explora mais a enunciação que o enunciado” (DUARTE, 1994, p. 66). Assim, entende-se que o humor está intimamente relacionado à maneira como é realizado e como é percebido pelo público-alvo, proporcionando a este – no nosso caso, o leitor – uma espécie de jubilo e gozo relacionados ao texto em que se percebe o cômico. De outro modo, pode-se dizer também que a provocação do riso está muito ligada à subjetividade, haja vista que as boas piadas sempre guardam um sentido a mais e que é justamente essa ambiguidade que dá o tom da graça, do divertimento e do humor presente nos textos. Nesse sentido, cito aqui como exemplo um dos poemas que mais cativam por causa do humor em “Pescados do Mundo”:

tem um circo no sol;

vai chover ou é palhaçada?! (CORDEIRO, 2020, p. 86)

Perceba-se como a palavra ‘circo’, associada com o sol, provoca o efeito humorístico ao estender o seu sentido com a ideia de “palhaçada”, entendida como atividade circense ou uma coisa ridícula. O que acontece aqui é que não se sabe se choverá ou não, e já que há um circo no sol, pode muito bem ser a chuva uma coisa real ou verdadeiramente uma palhaçada. Eis uma poética relativamente presente em “Pescados do Mundo”, o humor e a subjetividade através dos jogos de palavras. Voltando agora à nossa intelectual de referência até então, vamos ao que pode-se entender como ironia dentro do texto literário, tendo em mente ainda que, como a própria Lélia afirmara, o humor é um tipo de ironia. “Tradicionalmente, define-se a ironia como a figura de retórica em que se diz o contrário do que se diz (…) E embora varie conforme à época (…) a estratégia da ironia será basicamente falar por antífrases” (DUARTE, 1994, p. 55), assim, a ironia se caracteriza muito mais pela intenção de quem diz do que pela da maneira como se diz – diferentemente do humor –, porém, ainda permanece que nas duas noções há sempre a presença da subjetividade que, consequentemente, leva ao riso, ao cômico. Seguindo essa lógica, vale a leitura do poema “Revisão Orgasmática” em que existe essa presença da ironia, ainda que não seja percebida totalmente pelo estratagema da antífrase:

nunca mais

trema

na linguiça. (CORDEIRO, 2020, p. 43)

Muito duvido que os bons estudiosos da língua portuguesa não tenham caído na gargalhada ao ler tamanha perspicácia do poeta, afinal, o que há no trecho é uma clara alusão à retirada do trema de palavras como “bilíngue”, “consequência” e, ironicamente, “linguiça” pelo novo Acordo Ortográfico ratificado no Brasil em 2008. Assim, novamente Damião brinca com os jogos de palavras de maneira a levar o leitor a uma experiência prazerosa e irônica ao mesmo tempo, pois essa “Revisão Orgasmática” é um problema que atinge mais da metade da população masculina no Brasil, segundo revelam pesquisas atuais da Sociedade Brasileira de Urologia (SBU) reportadas através do G1.com. Por conseguinte, ao se encontrar poemas como este pelas vias literárias, possivelmente quem já teve e tem o problema, descobre, através do riso, uma forma de encará-lo de maneira mais leve e até sensata. E é Nessa lógica que vale ir a Roland Barthes e sua noção de prazer do textual, a qual denota que

O prazer da leitura vem evidentemente de certas rupturas (ou de certas colisões): códigos antipáticos (o nobre e o trivial, por exemplo) entram em contato; neologismos pomposos e derrisórios são criados; mensagens pornográficas vêm moldar-se em frases tão puras que poderiam ser tomadas por exemplos de gramática. (BARTHES, 1987, p. 10)

Assim, numa experiência de fruição textual como a proposta mais acima, há esse gozo entre a colisão dos sentidos a que o poema nos leva, sendo ele duas coisas ao mesmo tempo (uma alusão à ortografia e uma boa piada de aviso), ou mesmo uma só coisa com duas faces, semelhante à cara e à coroa de uma moeda. Por esse ângulo, me atrevo a dizer que este foi, à minha visão, um dos melhores poemas que já vi e já li na minha tão jovem vida de leitor, não pela gargalhada que dei ao ler e reler o poema, mas por tamanha “sacada” por parte do poeta, que se utilizou da linguagem de forma a realmente trazer a ideia do literário, isto é, a “linguagem que "coloca em primeiro plano" a própria linguagem” (CULLER, 1999, p.35) e, por isso mesmo, dou tal crédito ao poeta Damião Cordeiro.

Seguindo, há ainda em “Pescados do Mundo” o humor atrelado à critica social, como no poema “Hot Dog”

não tenho

pedigree

lato sensu

viro lata (CORDEIRO, 2020, p. 35)

Veja-se como o poeta brinca com a concepção de termos estrangeiros como “pedigree” e “lato sensu” no sentido de dizer que, apesar de não ter nascido em uma família abastada ou em berço de ouro, ele “late” o senso, isto é, está em busca do mestrado, pois possui graduação em Letras pela (PUC) São Paulo; mas observe-se que ainda assim Damião “vira lata”, ou seja, não perdeu a humildade dos bons companheiros do homem, no caso, da poesia. Logo, o humor no poema jaz no sentido da crítica à ideia de se possuir pedigree, dito em outras palavras, de possuir raça; um termo da esfera animal (mais precisamente da canina) que, quando trazido para o contexto social brasileiro e do mundo, revela um certo preconceito em relação às minorias da população pelas elites, pois estas consideram aquelas inferiores por não possuírem pele branca, por não terem o carro do ano, por gostarem de pessoas do mesmo sexo, enfim, por não possuírem “pedigree”, quero dizer, por não pertencerem às “camadas padrão” ou por não serem seres sociais moldados e convencionados ao gosto de pessoas que impõem determinadas ideologias como verdades absolutas – se é que é admissível a existência de uma noção como essa nos dias de hoje, a meu ver.

Por fim, devo me atrever ainda a falar da intertextualidade muito presente na obra e que revela, além do poeta, o bom leitor que é Damião Cordeiro. Mas antes de ir ao encontro da poesia, vejamos rapidamente a noção de intertextualidade para que não fiquemos tão perdidos quanto a certos conceitos. Segundo G. Genette, a intertextualidade é “uma relação de co-presença entre dois ou vários textos, isto é, essencialmente, e o mais frequentemente, como a presença efetiva de um texto em outro” (GENETTE, 2005, p. 14), assim, pode-se conceber que um texto é intertextual toda vez que dialoga com outro ou faz algum tipo de referência a esse, consciente ou inconsciente disso. Logo, tome-se o poema “Pênsil” como exemplo da ideia abordada:

pênsil,

logo

caio. (CORDEIRO, 2020, p. 35)

Para quem tem uma boa bagagem literária e não fugiu das aulas de filosofia, tal poema se reverte facilmente a um dos maiores intelectuais e positivistas do séc. XVII René Descartes, o famoso autor da máxima “Penso, logo existo”. Paralelamente, Damião Cordeiro brinca no poema com o pensamento de Descartes ao construir algo muito parecido com a frase do pensador, seja por causa da estrutura sintática ou pelo próprio ritmo do texto. A diferença é que “pênsil” é algo bambo, dependurado, que logo cairá, como nós é mostrado no poema e, nesse sentido, a intertextualidade ainda se dá pela lógica das duas afirmações, ou seja, se alguma coisa está dependurada, provavelmente irá cair; e, se eu penso, provavelmente, existo. Mas não quero aqui entrar em questões existenciais para não prolongar o texto, portanto, partamos para a vista de um último poema “À Barca do Homem”:

Pescai-me, Pedro,

lançai-me

à rede do amor;

meu umbigo

cicatriz de Adão. (CORDEIRO, 2020, p. 15)

No excerto, já de fácil assimilação intertextual pelo leitor, Damião chama um dos apóstolos bíblicos, no caso, Simão Pedro (o pescador) a lançar ele sobre a rede do amor, o que denota o eu-lírico como um peixe perdido, por assim dizer, devido ao pecado de Adão, que jaz cicatrizado, segundo o poeta, no umbigo, como forma de lembramos que pecamos. Assim, se faz um diálogo interessante do ponto de vista literário, já que bíblia é um dos livros mais lidos no mundo e, por conseguinte, acaba sendo quase sempre referência de diversos autores, principalmente aqueles do cânone literário (inter)nacional, como Jorge de Lima ou José Saramago.

Por fim, posso concluir da obra “Pescados do Mundo” que é um livro para quem gosta de dar boas risadas no melhor e mais amplo sentido da palavra, e também para quem já leu bastante Fernando Pessoa, Carlos Drummond De Andrade, Manoel De Barros, etc., pois é trabalho de um homem da casta linguística, das letras. Porquanto, vi nele ainda o tom de uma poética construída através da subjetividade e do bom humor, da crítica e da intertextualidade, e apesar de os poemas em maioria serem curtos do ponto de vista da estética textual, eles carregam em si um enorme condensado de significados em maior ou menor grau, a depender de quem o lê. Ademais, Damião Cordeiro, como bom estudioso das ciências da linguagem, soube criar uma poesia que cativa, seja pela inocência disfarçada nos versos ou pela criatividade quase maliciosa que corre nas estrofes, porque vejo nele a alma de um modernista, de alguém livre das amarras gramaticais e da velha poética clássica, sendo ele, assim, um poeta que vive o seu tempo, e, diga-se de passagem, são tempos sombrios, mas não que impeçam um sorriso no ar de quem lê e na alma de quem escreve.

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. O Prazer do Texto. São Paulo: Perspectiva, 1987.

CORDEIRO, Damião. Pescados do Mundo. Porteirinha: Sempre-Viva Editorial, 2020.

CULLER, Jonathan. Teoria Literária: uma introdução. São Paulo: Beca, 1999.

DUARTE, Lélia Parreira. Ironia e Humor na Literatura. Belo Horizonte: UFMG, 1994.

GENETTE, Gérard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Trad. Luciene Guimarães e Maria Antônia R. Coutinho. Ed. bilíngue. Belo Horizonte: FALE/UFMG, (Viva voz), 2005.

LENHARO, Mariana. 59% dos brasileiros entre 40 e 69 já tiveram problemas de ereção. G1.com. Disponível em <http://g1.globo.com/bemestar/noticia/2015/03/59-dos-brasileiros-entre-40-e-69-anos-ja-tiveram-problemas-de-erecao.html>. Acesso em 03 de Fev. de 2020.

SCHOPENHAUER, Arthur. Citações e Frases Famosas. Disponível em <https://citacoes.in/citacoes/107014-arthur-schopenhauer-o-bom-humor-e-a-unica-qualidade-divina-do-homem/>. Acesso em 02 de Fev.de 2020.