O preço da normalização do absurdo

Como é difícil acordar calado

Se na calada da noite eu me dano

Quero lançar um grito desumano

Que é uma maneira de ser escutado" - Chico Buarque

Recentemente, eu estava lendo o livro Racismo Estrutural, do Silvio Almeida, e me deparei com um conceito que sempre me deixa intrigado desde que eu comecei a estudar marxismo - o de ideologia. Bem, há muitos conceitos de ideologia, seja fora do campo marxista, seja dentro dessa vertente. Aqui ele defende a ideologia como sendo uma das facetas do racismo. No livro, ideologia é definido não como a representação de uma realidade concreta, mas sim como expressão da nossa relação com a realidade material; sendo, portanto, uma prática concreta. O racismo, na forma de ideologia, é uma forma de adaptar subjetividades ao sistema capitalista racista, de adormecer a pele que recebe o chicote, de transformar o choro do oprimido em um som cotidiano como pneus de carros rodando pelas ruas. É um processo modular não apenas da consciência - fornecendo sentido para dada relação concreta -, mas também de afetos, do inconsciente. A ideologia normaliza tudo, inclusive o absurdo. Assim, é comum não ficarmos abatidos ao ver pessoas morrendo de fome todos os anos, da polícia massacrando a população negra em periferias - ao contrário, muito de nós nos sujeitamos a discursos pregados em meios de comunicação que cooperam com esse tipo de genocídio. Somos, ao poucos, desde o nosso nascimento, conectados a um mundo que tenta a todo momento adormecer nossas consciências e matar nossos afetos diante das mazelas sociais. Somos violados até virarmos máquinas frias e sem coração. Porém, o que acontece quando o absurdo vai além, é normalizado além do próprio normal (que não deveria ser). Trocando em miúdos, o que acontece quando ocorre uma pandemia descontrolada em um governo liberal-fascista que não dá o menor valor da vida - o contrário - faz piada com a questão?

O resultado são mais de 200 mil mortos, isto é, mais de 200 mil corpos, almas, seres humanos - visto como meros números -, que amavam, que choravam, que sofriam, que pensavam, que se indignavam a sua maneira - e que agora não fazem nada mais, só existindo apenas na memória daqueles que ficaram. O que éramos para estar fazendo? O que éramos para estar sentindo? Não quero culpabilizar a população aqui, quero apenas desabafar, quero apenas me indignar, questionar. Será que a ideologia não nos drenou o suficiente? Falando por mim, é tão difícil imaginar mais de 200 mil corpos, ao passo em que me entristeço em não sentir realmente, concretamente, essa realidade mórbida. Eu creio - sim, falemos em especulações e discursos guardados no peito -, que se realmente fossemos capazes de sentirem toda essa violência em sua concretude, esse senso de responsabilidade real que perdemos (ou nem sequer tivemos a chance de desenvolver) em algum lugar no meio desse sistema que lucra com a exploração; estaríamos todos envergonhados, com raiva, com lágrimas eternas, incapazes de olharmos novamente nos olhos uns dos outros - ao mesmo tempo& - estaríamos com indignação eterna, com ódio no olhar, capazes de destronar os mais poderosos de todos os reis. E eu não digo que toda a essa indignação, tristeza, pensamentos deveriam ser apenas nesse momentos. Eu quero dizer que isso foi fruto de um longo processo de internalizações e naturalizações, que estão tendo seu ápice em uma pandemia, em uma crise econômica durante o neoliberalismo, indo além de corpos negros marcados para morte nas periferias. Aqui eu quero dizer que o Silvio está completamente certo quando interpretou o termo necropolítica sob neoliberalismo como um ensaio para morte, uma preparação para que todos, algum dia, tenham seu dia de negro - e esse dia, essa época, é agora. Além disso, não é de se surpreender que os mais afetados durante a pandemia são mulheres e negros - essas vítimas que são açoitadas diariamente - os pobres negados o direito de auxílio emergencial, bancos recebendo investimentos e agronegócio resistindo - sim, esses que possuem o chicote não mão e se silenciam diante do desastre. Desastre não, projeto.

E é completamente triste ainda estarmos em casa, discutindo se deve haver ou não passeatas contra o presidente, se devemos ir ou não para a rua. É estrondoso o nosso silêncio, é fatal o corte da nossa atitude lacônico. E, além de tudo, é desesperador esse sequestro de afetos realizado pela normalização do normal, essa urgência de novas sensibilizações, de aquecimento em nossos corações e indignações reais e concretas em nossos olhos.