A linguagem é de longe o mais utilizado instrumento de apreensão da realidade. Através da linguagem, o ser humano codifica o mundo a sua volta, nomeando as coisas e classificando-as, e ao fazer isso cria os conceitos. Desse ponto de vista, do ponto de vista da palavra-conceito, os nomes se descolam de seus referentes físicos e se tornam puras abstrações. Quando digo, por exemplo, “cavalo”, em hipótese alguma estou me referindo a um cavalo específico, mas a uma ideia pré-formatada do que seja cavalo, ainda que o animal esteja à minha frente. Essa característica da linguagem, a característica de, a partir da identificação de determinados elementos comuns a todos os cavalos, se reportar a qualquer cavalo em qualquer parte do planeta, fez com que o homem pudesse operar racionalmente com o universo.
                Entretanto, o uso dos sinais linguísticos traz à baila a questão de sua fidedignidade. Quando elaboramos uma situação concreta, detectamos parte de um mundo que julgamos real e tratamos de representar sua suposta realidade na linguagem. Assim uma possível realidade, ao tornar-se consciente através da linguagem, passa a refletir um conceito de verdade. É pertinente perguntar: em que medida conseguimos dizer a verdade com a falsidade e decidir que nossas manifestações linguísticas são verdadeiras?
                Nessa linha de raciocínio, a palavra “cachimbo” não equivale a um cachimbo real, em particular. Essa é uma constatação óbvia, mas relegada, e que foi levantada com muita propriedade por um pintor belga surrealista, René Magritte, numa tela pintada em 1929 - A Traição das Imagens. A tela apresenta uma imagem de um cachimbo, e, abaixo dela, a inscrição "Ceci n'est pas une pipe" ( Isso não é um cachimbo ) [ https://www.culturagenial.com/obras-magritte/]
                 A legenda explicativa, não por acaso escrita com uma letra cursiva, faz o observador questionar não só a fronteira entre a arte e o real, proposta explícita do surrealismo, enquanto movimento artístico questionador dos parâmetros técnicos da academia clássica de pintura, como também denuncia o aspecto falseador da linguagem diante da realidade, colocando o espectador para refletir sobre os limites da representação e do próprio objeto.
                De modo semelhante, a filósofa e poetisa  Viviane Mosé é uma estudiosa de Nietzsche, o filósofo do martelo, e em seu livro Nietzsche e Grande Política da linguagem, fruto de dedicados anos de estudos ao filósofo alemão, analisa as implicações da linguagem no desenvolvimento de toda filosofia ocidental, buscando problematizar a nossa relação com mundo intermediada pela palavra que, desde os primeiros filósofos gregos, tem se pautado sobre os constructos linguísticos, dissociando-se cada vez mais da possibilidade de contato com as individualidades dos seres. Segundo a autora, essa hegemonia da linguagem, enquanto instrumento de apreensão do mundo, e a razão advinda dela, tem divorciado os indivíduos de outras formas de se relacionar com as coisas e as pessoas, num processo de negação da vida real, múltipla e facetada, e em prol de abstrações conceituais imaginadas. No dizer de Nietzsche, em Crepúsculo dos Ídolos:        “Tudo o que os filósofos manusearam há milênios foram múmias conceituais: nenhuma realidade escapou viva das suas mãos. “
                A afirmação de Nietzsche, proferida no século retrasado, ecoou nos versos mais contemporâneos de Otacvio Paz, cheio de sugestões para a reflexão sobre a linguagem poética:
 
A palavra do homem
 é filha da morte.
   Falamos porque somos
mortais: palavras não
  são signos, são séculos.
Ao dizer o que dizem
os nomes que dizemos
    dizem tempo: nos dizem,
   somos nomes do tempo.
 
               Damos nomes às coisas, é fato. Muitos dos mitos da criação apresentam o dar nome às coisas como o primeiro ato humano. “No princípio era o Verbo”, frase inicial do Gênesis, parece revelar que o nomear é o fundamento da narrativa divina da própria Criação. Também parece certo que o desenvolvimento da linguagem humana proporcionou aos humanos arcaicos uma maior coesão social, uma vantagem competitiva sobre as demais espécies, em termos de sobrevivência, perpetuação e domínio. Contudo, fica a pergunta, diante dessas reflexões: em que proporção nos implicamos com o tempo e com a realidade quando nos propomos a traduzir em linguagem nossas experiências existenciais?