Viajar nas letras

Em tempos de reclusão, tudo se faz. Confinadas entre quatro paredes, por mais estranho que pareça, o que mais as pessoas fazem é “viajar”, seja nos sonhos, nas músicas, nos filmes, nos livros, ou outros meios não tão recomendados. Passear pelos livros é a forma de viagem a que tenho mais me dedicado nesse isolamento. Isso porque além das escapadas permitidas pelas histórias dos romances, tem ainda as histórias que criamos a partir delas.

Recriar sobre uma obra literária, ter entendimento diverso daquele que a escreveu é comum e até previsto por quem entende do assunto, os próprios escritores. Um deles, Umberto Eco, até criou o conceito de “obra aberta” querendo dizer que toda obra de arte é aberta porque não comporta apenas uma interpretação. Já o filósofo Foucault, tão natural achava essa diversidade de interpretação, que chegou a dizer: “eu não vejo inconvenientes maiores se um livro, sendo lido, é lido de diferentes maneiras”, ou seja, comportando vários entendimentos.

Mas isso não se dá só na literatura. No dizer de Umberto Eco é característico das obras de arte, em geral. O cinema inclusive. O espanhol Luís Buñuel, que por muito tempo viveu na França, diretor de A Bela da Tarde (1967), O Discreto Charme da Burguesia (que lhe rendeu o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1973), para citar alguns, disse em entrevista que uma das suas distrações favoritas era ler o que a crítica comentava sobre os seus filmes, com interpretações que muitas vezes não batiam em nada com as ideias por ele usadas na concepção de suas películas.

O que nos leva a proceder assim recriando esses enredos? Talvez porque “somos feitos de histórias”, como contou um passarinho a Galeano, e que são tantas que se confundem e novelam umas às outras, perdendo a origem, seu fio inicial. Quem sabe não foi o que moveu a napolitana Elena Ferrante a dizer que “escrever – e não apenas ficção – é sempre uma apropriação indevida? Nossa singularidade como autores é uma pequena nota à margem”. Como disse Paulinho da Viola, “as coisas estão no mundo” é só aprender a captá-las.

A magia do bom autor está exatamente em contar histórias, deixando a porta aberta para que o leitor crie também as suas. Livros como A Louca da Casa, de Rosa Montero, A Uruguaia, de Pedro Mairal, O Tribunal da Quinta–Feira, de Michel Laub, só para citar alguns lidos nessa fase de “leituras pandêmicas”, ou mesmo D. Casmurro, leitura mais distante de Machado de Assis, deixam sempre aberto aos leitores a possibilidade de construção de seus próprios roteiros romanescos. Existiu ou não o tal “M.” de Montero? O roubo dos dólares de Lucas foi ou não uma combinação de Guerra com seus parceiros, na trama de Mairal? O resultado do exame de José Victor foi positivo ou negativo, na história de Laub? E, o que nos angustia há mais tempo ainda, Capitu traiu ou não Bentinho? Quantos estudos acadêmicos não já foram produzidos em torno dessa interrogação? Como disse uma querida amiga, essas respostas precisas pouco importam. O que vale mesmo é a elaboração que você dá para a sua criação imaginária, os indícios que só você vê que são jogados pelos personagens, de maneira astuciosa pelo autor, exatamente para nos confundir. Esta é a nossa grande viagem. Mesmo em casa, por circunstâncias que nos são alheias, podemos correr o mundo, dando asas à nossa imaginação, na leitura de bons livros. Esta é a nossa poderosa vacina.

Fleal
Enviado por Fleal em 04/06/2020
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