O POEMA E O ATO DE LEITURA

“Em verdade, o leitor pega o poema inanimado e lhe dá vida própria através do ato de leitura.” AGK, via Facebook, em data de 03/04/2020.

Venho insistindo, há vários anos, que o poema é matéria sem anima, quando recém-criado e/ou ainda na gaveta (sem haver sido ainda descoberto), enfim, percebido pela sensibilidade do leitor. Fico feliz e estimulado por também pensares no mesmo sentido. Mas são poucas as pessoas ligadas à Poesia, especialmente os poetas-autores, que conseguem reconhecer a importância do leitor quanto ao seu poema. Parece-me que isto se dá por possessão do autor sobre a sua obra e a uma errônea concepção do que se constitui juridicamente o plágio. Em verdade, a possessiva psique do poeta-leitor tem medo de que o outro polo lhe tome a autoria e ele perca os seus direitos autorais. E naturalmente resiste a esta proposta – hoje tão bem aceita pelos estudiosos – fazendo com que se instaure uma absurda confusão em seu processo criativo, ao desconsiderar a figura do receptor de sua proposta poética, porque ele a entende como somente sua e “nela ninguém tasca”, como é normal e/ou plausível ocorrer entre os neófitos desavisados, em vários aspectos da atividade gregária. Não se dá conta de que, sem a figura do leitor, não se consubstancia o processo estético e de comunicação verbal, que se inaugurara quase que de imediato, com a recepção do poema. A rigor, e em todos os idiomas, são poucos os criadores poéticos que se apresentam ao leitor com versos em que a Poesia comparece. E é exatamente esta constatação que faz a diferença entre o poeta e o poeta-menor. O que ocorre usualmente é a interferência nos domínios do jogo lírico-amoroso, e, a título de materialidade poética, estes últimos apresentam meros e/ou insossos recados de amor (conjunto verbal em que é possível perceber a exclusão da poética), porque estes, devido à inexperiência ou falta de trato diário com a arte real da Palavra, viajam em via de mão única, diferentemente do relevante e bem urdido poema lírico-amoroso, que é sempre uma proposta-sugestão que necessariamente exige mão dupla, por instalar-se entre autor e leitor um projeto de recriação do mundo (por seus guetos pessoais, seus entornos, desafios, vazios e soluções) através de um novo território estético-finalístico que a Poesia propõe à humanidade, para que o humano ser possa sentir-se, no mínimo, conivente com a felicidade pessoal. Ainda que, por transfiguração da matéria da vida, assentada em valores de criação estética em que preponderam a farsa, a fantasia e o sonho, todavia é tão fundo o desejo de alteração de valores em favor do visionário mudancista, que a Poética forja, por si própria, uma fortaleza de propósitos que, estranhamente, adquirem aura de veracidade, tanto no poeta-leitor quanto no poeta-autor, que primeiramente a fizera existir, por intuição ou catarse circunstancial. E essa sensação boa, e, por vezes, utilitária – no plano dos fatos – trespassa os seus fetiches e o próprio tempo de viver do inquieto e criativo ante visor, fundindo-se, mais tarde, na sua imortalidade literária.

– Do livro inédito OFICINA DO VERSO: O Exercício do Sentir Poético, vol. 03; 2017/20.

https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/6905942