Era uma vez um hospício ...

_Mas como assim, querido autor, você vai começar uma história com as características de contos orais para uma criança e irá descrever um hospício? Já não gostei.

_Continue onde está, não dê palpite. Leia somente.

Era uma vez um lugar redondo, bonito até, chamado... Eu morava lá. O lugar fora criado para hospedar pessoas, gente, humanos, sei lá. Você entende essa parte do tipo de habitantes? Hóspedes, melhor dizendo!

_Não vou responder. Lembra que foi ordenado que eu apenas lesse?

_Verdade. Então, foi lá que presenciei alguns episódios intrigantes. Vi gente bacana sofrendo demais. Vi gente tola, despreparada, no comando de alguns setores do planeta. Vi muitos tipos...

Os tolos são os piores. Não aceitam que são tolos. São arrogantes, gritam muito para disfarçarem a burrice. Acho que gritar é um mecanismo de defesa, porque afastam de si os que gostam do diálogo. -Olha, pra te falar a verdade até eu fiquei confuso agora: tolos são os que afastam de si o conhecimento, ou são os que querem adquirir conhecimento? São os que ainda buscam no diálogo, a solução?

Acho que o segundo tipo corre mais risco, porque depois que descobriram a pólvora, dificultaram um pouco as coisas... eles costumam eliminar os que gostam do diálogo.

_ Desculpe interromper, como assim alguns setores?

_O planeta é dividido por continentes, países, estados, municípios, repartições... e por aí vai. Foram repartindo tudo para cada um descuidar um pouco. Dividindo fica mais fácil descuidar melhor.

Se faltar atividades para eles, aí é que ficam atacados de vez nesse hospício. É necessário mantê-los ocupados o tempo todo.

_ O que é ser um ser ocupado?

_ Você me interrompe e eu me esqueço o que estava falando. Eu trouxe de lá essa característica da concentração. Não consigo me livrar dela. Tenho que sempre ordenar as ideias. Tenho que manter a linha. Não posso fugir do assunto. Lá eles têm um teste chamado redação. Caso o candidato fuja do assunto, zerou o teste. Parece que você quer me derrotar, quer que eu zere meu teste.

Vou tentar retornar onde eu estava. Como eu ia dizendo, é imprescindível manter os habitantes ocupados. As tarefas os distrai, daí não ficam iguais a você que não se concentra e ainda dispara questionar tudo. Estando ocupados em fazer tudo certinho, estudar, cuidar (descuidar), porque notei que a única coisa que sabem fazer é desmanchar o que já está pronto. O planeta era tão lindo! Eles chegaram e imaginaram que se tratava de um quebra-cabeças, tiraram as peças do lugar e agora não conseguem montar novamente. Uma loucura está aquilo lá. São como aqueles curiosos que desmontam um motor e depois não conseguem montar novamente. Ficam sem motor, sem motivação, sem força. Parece que estão lá, mas não estão. Um bando de deslocados.

_ Locados, porém deslocados?

_ Sim. Talvez a palavra fosse mais “localizados”, locados é mais para alugados, -nem eu estou sabendo direito. Lá as palavras devem ficar mais detalhadas, eles gostam de complicar. Sei que é difícil pra você entender. Estão hospedados. Uns até bem hospedados, mas não se sentem bem.

_Eles são doidos?

_Você não leu o começo? Era uma vez um hospício? Eu não gosto de conversar com criança, exatamente por isso. São distraídas demais.

Eu preciso continuar de onde parei. Os habitantes de lá precisam fazer tarefas repetitivas. São néscios. Os habitantes “racionais” são os mais divertidos. Digo divertidos, agora, que não estou mais lá. Eles são mais perigosos do que os irracionais, chamados selvagens. Os selvagens não gostam nem de ir onde os racionais estão. Aliás, quero te contar que os selvagens estão perdendo lugar, porque os "racionais", como eu disse anteriormente, depois que descobriram a pólvora, ficaram ainda mais perigosos. Ficaram perigosos porque não usam o raciocínio para utilizarem a pólvora. Sei que pra você é difícil entender, porque aqui não tem como eu te dar um exemplo que do seja uma arma. Acho bom que não tenha como te explicar muito sobre a guerra. Tenho que confessar: Eu sou fraco, tenho medo de arma. Acho que esse é um dos motivos de eu ter saído de lá. Eu sou mesmo fraco para permanecer naquele local. Lá eles diriam que sou sensível demais, mas tudo bem, aqui é bem melhor!

_Aqui é melhor?

_Sim. Vou te explicar como eu consegui me escapar: uma vez eu fiz uma leitura de um livro que falava de um ser que saiu procurando um meio de cuidar de algo que ele gostava muito e que queria proteger. Ele saiu “andando-voando-visitando”, sei lá. Ele saiu. Isso é o que importa para esse momento. Eu agora estou assim: mais resumido, conciso.

_Você conhece o Pequeno P?

_ Olha o nosso (Meu) combinado de você ficar caladinho! -Visitando alguns lugares, esse personagem da minha leitura, fora apresentado para alguns personagens de um planeta. Somos todos personagens, essa parte você entende né? A apresentação foi até muito aliviada por parte do apresentador. A sorte do Pequeno P é que ele fora apenas “apresentado” para os personagens do Hospício, já eu, morei lá. Eu sou considerado sensível, imagina se o personagem que saiu “visitando”, tivesse que passar uma temporada no hotel muito louco, talvez não resistisse. Ele é mais sensível do que eu.

_Você conhece o Pequeno P ?

_ Nossa! Você interrompe a gente! Acho que não consigo mesmo conversar com criança. De onde eu vim eu era muito atarefado. Tive contato com crianças, mas na correria não pude escutá-las, daí vem a minha falta de experiência nessa situação em que estamos agora. Reconheço que devo lhe pedir desculpas. Trago, em mim, resquícios da guerra. De onde eu venho é uma verdadeira guerra. Guerra mesmo. Guerra sangrenta. Algumas sangram só por dentro.

_Nunca estive numa guerra!

_Que bom! Acho que não sobreviveria às que sangram só por dentro. Eu custei escapar. As que sangram por fora costumam ter conserto, existem profissionais do ramo. Eles têm agulhas, panos, aparelhos de metal, algumas ferramentas que auxiliam no reparo. As que sangram por dentro, ninguém consegue arrumar. Essas são mais complicadas. Alguns até tentam indicar alívio, mas a solução mesmo, nenhum conseguiu.

Lá tem uns mais doidos que os outros. Tem uns doidos perigosos de verdade e tem uns doidos do bem. O que é difícil lá, é saber distinguir. Corre-se muito perigo naquele hospício. Eu, mesmo tendo sensibilidade, fui enganado várias vezes. Acreditei em alguns doidos do mal, eles são muito espertos. É necessário mais que sensibilidade, é preciso astúcia, às vezes até maldade. Acho que foi nessa parte da maldade que eu não consegui!

_Mas...

_ Desculpe-me não te ouvir! Peço mil desculpas. Preciso falar agora. Eu me esforcei tanto pra te encontrar. Eu te procurei muito. Quero que saiba que eu realmente te procurei. Agora que tive a sorte de te encontrar, eu preciso me expressar.

Eu comecei a me expressar lá no lugar de onde eu vim e tentaram me prender.

_Prender? Eles conseguem?

_ Sim. Não. Não sei. Eu aqui aflito para falar e você me interrompe. Perco a linha do raciocínio. Perco a linha de tudo. Perco tudo. Eles conseguem prender pela metade.

_ Prender pela metade?

_ Sim. Prendem o corpo do doido, a outra parte doida, que é a mente, não conseguem. Aí é que começa a guerra sangrenta. Aquela guerra terrível que eu mencionei lá atrás.

_ Estou com medo.

- Não tenha medo. Eu não trouxe arma. Nunca tive arma. Tenho medo também. Estou feliz em encontrar alguém que sinta medo. Eu me identifico com você. Tentei achar alguém que tivesse medo lá no meu planeta. Eles disseram não temer nada, a partir daí é que o meu medo aumentou. Fiquei com muito medo de quem não tem medo. Percebi, então, que são inconsequentes. Acho que aqueles não têm medo, não entenderam bem a situação perigosa em que estão. Eu fugi de lá – isso é segredo. Tenho que te pedir segredo. Lá é assim, quando se desabava, tem que implorar segredo. Eles adoram dar notícias de tudo. Eu estava correndo risco lá, exatamente porque queria conversar.

_ Então estou correndo risco também, você é um fugitivo. Deve ser perigoso.

_ Não, não. Por favor não tome conclusões precipitadas. Eu te imploro, apenas me escute! Eu não sou exatamente um fugitivo. Estou apenas fugindo de mim mesmo.

_ Hã?

_ Sei que é difícil entender um doido fugitivo. Eu vim aqui te encontrar porque sabia de sua existência. Lá eles não acreditam que você existe. Acham que são personagens da imaginação. Eu não, eu tenho certeza de sua existência. Demorei, mas te encontrei.

_Entendo...

_NOSSA! Que alívio. Sonhei escutar: eu te entendo. Foi exatamente quando eu estava falando que conversar com você seria a minha solução, que eu me senti perseguido. Os doidos, aqueles que tentam entender a guerra sangrenta, fizeram um plano para me capturar. Sim, capturar. Lá, quem desejar conversar, entender ... esses são enjaulados. Eles são muito loucos, acho que já mencionei essa parte.

_Continue humano.

_ Que bom que vai me escutar: _ Eu acordei bem cedo e saí de casa. Não me despedi, porque eles sempre perguntam aonde a gente vai. Eu não iria mentir, não gosto de mentir. Aí também está outro problema meu. Eu não gosto de mentir. A mentira lá, parece que faz parte do quite de sobrevivência. Eles mentem para estar bem com todos. É preciso estar bem com todos, ou pelo menos disfarçar. Eles têm arma, lembra? Eles não gostam de ser contrariados, são tiranos. Sempre todos sorrindo...

_ Então eles estão felizes?

_ Meu Deus! Você precisa ir ao hospício! Só explicando, acho que não vai dar certo. Eles não estão felizes, é necessário apenas demonstrar que estão. Quem consegue representar melhor, ganha pontos. São bem classificados, os que fazem melhor o papel de satisfeito, e que demonstram ter entendido tudo, mesmo não entendendo nada. Você conhece a história: A roupa nova do rei? -Ia ajudar demais para demonstrar o que eu quero te explicar. Você já assistiu ao filme: O bicho de sete cabeças? -Também seria bom para que você me auxiliasse no meu tratamento. Ai... preciso me fazer entender.

_Eu estou entendo você perfeitamente.

-_Que bom. E ainda tem gente que acha que você não existe. Preciso falar um pouco mais. Ainda dá tempo?

_Aqui não existe tempo, lembra?

_É verdade. É que trago memórias ainda recentes. Devo apagá-las?

_Melhor não. São fundamentais para não enlouquecer de vez. Apesar de você ter vindo do hospício, você não é doido. Por isso fugiu.

_Há! Isso é um diagnóstico?

_Não! Sou apenas uma criança, lembra? Quando eu penso que você esta melhorando, você vem e me faz uma pergunta dessa. A propósito, você me ordenou que eu apenas lesse o texto, lembra? Eu era apenas um simples leitor. Agora já sou personagem? Ouvi dizer que os humanos são perigosos. Aliás, foi você mesmo que me disse. Não quero fazer parte desse jogo. Vou apenas escutar você. Estou fazendo uma gentileza, que pelo que me parece, vocês não fazem por lá!

_Nossa! Quanta arrogância! Daqui a pouco vai cobrar a consulta.

_ Até que não seria uma má ideia. Mas aqui não se vende e nem se compra. Portanto....

_ Você parece humano. Gosta de retrucar.

(Gostarias de ler o segundo capítulo?)

Cátia Moura
Enviado por Cátia Moura em 08/12/2019
Reeditado em 09/12/2019
Código do texto: T6813786
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