A informação após a morte

Religião nenhuma, ao que me consta, está preocupada com a informação perdida. Chamo dessa maneira as experiências individuais que um ser humano acumula durante a vida e que não constituem os fatos mais marcantes da sua existência. Por exemplo, o livro que pessoa lê, o filme a que ela assiste, a paisagem que ela um dia vê, e assim por diante – em suma, pequenas coisas que todos nós fazemos geralmente quando queremos nos “entreter”, mas que não parece tão desprezível assim a ponto de merecer o esquecimento eterno.

Penso na questão dos livros que a pessoa lê. Um livro também é uma forma de diversão, mas, seguramente, o conteúdo que ela lê é apreendido de alguma forma. Gera-se conhecimento com a leitura, por mais descompromissado que seja o livro. Se não gera conhecimento para a vida – e frequentemente gera –, no mínimo gera conhecimento sobre o autor. Se a pessoa não se preocupar em deixar registradas as impressões que teve com a sua leitura, virá fatalmente o esquecimento e a informação se perderá, ainda que tenha sido bastante importante para o seu desenvolvimento individual.

A pergunta que faço é: tudo isso, incluindo o que por ventura ainda nos lembramos, deve ser fatalmente esquecido na eventual vida após à morte? Por certo, não é comum que alguém diga que o acontecimento mais marcante da sua vida foi um filme a que assistiu. Fala-se em coisas como casamento, nascimento dos filhos. Do lado de lá, se levarmos em consideração os relatos apresentados por gente que esteve “na fronteira da morte”, eventualmente a pessoa assiste ao que seria uma espécie de revisão de vida (aquela história de um filme passando diante de nossos olhos no momento da morte é realmente reforçada por tais relatos).

Os acontecimentos valorizados nesse filme, ainda segundo as pessoas que tiveram experiências místicas no momento em que pareciam estar morrendo, não são os mesmos que se valoriza aqui, no “mundo dos vivos”. Isso significa que não se dá o mesmo destaque aos eventos sociais que temos como os mais significativos de uma existência. São frequentes os relatos de quem pôde assistir a si mesmo praticando alguma boa ação na infância, por exemplo, algo que a própria pessoa já tinha esquecido, mas que parecia constituir então um dos grandes momentos da sua existência.

É interessante que o fato de só se recordar do evento na hora em que assistiu a ele no “filme” parece sugerir que essas informações não se perdem. Se elas se lembram disso, então podem se lembrar de outras coisas que já haviam esquecido e, quem sabe, são capazes de se lembrar de TUDO o que aconteceu com elas durante a existência.

Evidentemente, ninguém tem a menor ideia de como um mecanismo desses poderia funcionar. Mas é também interessante que essa gente que pôde assistir à sua própria vida também não menciona que se viu lendo um livro ou, sei lá, assistindo televisão, vivendo, enfim, algum tipo de momento de “menor importância” na sua existência. Acaso essas informações são perdidas ou elas apenas não têm uma grande relevância também depois da morte?

As religiões, de maneira geral, enfatizam a necessidade de certas práticas ou gestos, normalmente associados ao amor e à caridade, e que podem, se não definir totalmente o destino da pessoa depois da morte, ao menos contribuir para o seu próprio crescimento e evolução, motivo pelo qual deveríamos concentrar neles os nossos esforços.

Entretanto, durante a maior parte do tempo, a menos que estejamos encerrados em um convento ou em um monastério, nós estamos fazendo coisas que não dizem respeito diretamente à nossa “salvação” pessoal ou ao nosso aperfeiçoamento individual. Gastamos um tempo considerável atendendo às intermináveis exigências do corpo, corremos atrás do dinheiro que permitirá que sobrevivamos, e com tudo isso nos cansamos e queremos nos divertir e relaxar – fazer, enfim, alguma coisa que, supostamente, não teria muito valor prático, seja para si ou seja para o Universo.

Para a maioria das pessoas, talvez isso signifique simplesmente que Deus ou algo semelhante a ele nos concedeu a bênção da diversão ou do relaxamento, mas que, no fim das contas, quando nós estivermos do lado dos mortos, nada disso terá importância, e sim como nos comportamos aqui.

Vejo com resistência essa teoria, porque para mim é muito difícil admitir que tudo aquilo que hoje tenho lido, e que tem feito o meu conhecimento, seja perdido no momento da minha morte. Eu não quero apenas me lembrar que a leitura me fez agir melhor quanto a isso ou aquilo, eu quero, também, me lembrar que o Dostoievski fez um livro desse ou daquele jeito, que uma vez eu li um gibi do Pato Donald que tinha uma história engraçadíssima, e que se eu seguir por aquela rua e depois dobrar à direita encontrarei uma praça que um dia descobri por acaso.

Nada disso, enfim, tem uma relação direta com a minha evolução pessoal, mas é ainda conhecimento, do qual nem com a morte eu gostaria de abrir mão. Evidentemente, falo da perspectiva de alguém que ainda está vivo – pode ser que, depois de morto, tudo o que hoje valorizo como conhecimento perca a sua importância. No entanto, se imaginamos um esquema cósmico que prime pela perfeição, parece crível que também essas informações que eu acumulei durante toda a existência tenham algum tipo de serventia do lado de lá.

Muitas crenças sugerem a existência da vida após a morte, mas muitas também centram o objetivo de todos nós na própria vida. A vida seria o mais importante, a definir o destino após a morte. Pode ser, no entanto, que o mais importante de tudo seja a morte – isto é, a vida que se viveria após a morte. Nesse sentido, nós viríamos para cá a fim de conseguir certos conhecimentos e informações sobre como é viver como ser humanos. Esse conhecimento, então, não teria o objetivo, meramente, de fazer com que voltemos à Terra, em sucessivas encarnações, com mais habilidade, sem cometer os mesmos erros.

O objetivo talvez seja usar tudo o que aprendemos aqui para fazer as coisas que são feitas do lado de lá, enquanto mortos – e que nós não fazemos ideia do que possam ser. Viríamos à Terra para aprender as coisas que serão usadas nesse suposto mundo espiritual. Se for assim, nenhuma informação seria perdida, uma vez que ela seria o próprio objetivo dessa nossa vidinha de carne e osso.

Tudo isso é, também, uma forma de me reconfortar diante do esquecimento a que estaríamos sujeitos se for verdadeira a crença na reencarnação. Tenho lido muitos livros, aprendido muita coisa sobre muita gente do mundo todo. Se eu voltar à Terra, não me lembrarei de nada disso e terei que ler tudo de novo, aprender tudo de novo. Não parece desesperador um desperdício como esse? Tenho, se não fé, ao menos desejo de que o que venho aprendendo com minhas leituras e com todo o resto na minha vida seja aproveitado na minha morte.

Frederico Milkau
Enviado por Frederico Milkau em 14/10/2019
Reeditado em 14/10/2019
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