Reflexões sobre depressão, TDAH, Naruto e o jogo do contente.

Já deve fazer uns 16 anos que eu tenho depressão. Meu psiquiatra atual definiu meu estado como crônico, assim como o psicólogo que eu consultei pra ter certeza, então acho que posso dizer que é um quadro de depressão crônica, ou distimia persistente. Posso estar falando bobagem, mas a maioria das pessoas nesse ponto já não sai mais da cama ou já tentou se matar. Nunca tive acesso a esses luxos, então não sei como é ficar na cama sem energia, porque se eu não levantasse meu pai me arrancava dela no chute e me colocava pra ir trabalhar ou estudar na marra, e nunca consegui me matar, se tivesse não estaria escrevendo isso, mas sim psicografando.

Em um adendo, eu também tenho transtorno de hiperatividade e déficit de atenção, vulgo TDAH, descoberto já muito tarde, então além de achar que a vida não vale nada e já ser propenso a ansiedade, minha cabeça trabalha o triplo e meus pensamentos pensam pensamentos próprios. Sim, essa frase eu tirei do super choque.

Passar uma adolescência e juventude com essas condições não é fácil, ainda mais quando depressão era vista como frescura - se até hoje é, imagina a 10 anos atrás! - e TDAH era doença da moda pra crianças bagunceiras. Só fui descobrir que podia ter essas condições depois de entrar na faculdade de pedagogia, onde uma coisa básica é saber identificar, entender e lidar com alunos especiais, e ai o alerta vermelho quebrou as sirenes, fui num psiquiatra e tá lá, o estrago de uma vida com doenças mentais sem tratamento adequado gerou uma pessoa fria, incapaz de manter amizades, cheia de manias - de limpeza, de perseguição, de organização - e completamente sem apego a vida própria ou dos outros.

Se eu tivesse algum amigo ou alguém que ligasse pra minha condição, talvez essa pessoa tivesse me perguntado “mas Fernando, como você lidou com isso?”, e eu talvez não soubesse responder. Mas hoje, depois de alguns anos de terapia, toneladas de remédios e muita auto-reflexão e meditação (aquela de apagar os pensamentos, não o termo genérico), eu cheguei numa conclusão: Eu encaro a vida como um ninja do anime Naruto.

Pra quem não foi criança entre 2008 a 2013, período em que Naruto passou no SBT, e pra quem não era otaku raiz de baixar um episódio por fim de semana na internet discada - e qualquer pessoa no meio desses extremos - Naruto é um desenho que se passa num mundo fictício onde os ninjas são a tropa de elite dos países, e acompanha a história do protagonista que dá nome ao desenho em sua jornada de ser um pária da vila até se tornar o prefeito, por assim dizer. No desenho, além de muitas lutas, violência, fantasia, nudez insinuada e ocasionalmente gráfica e confrontos de amizade e rivalidades, todos os ninjas têm uma capacidade em comum: Planejar muitos passos a frente. E é essa capacidade que me ajudou a resistir na vida.

Em todo confronto físico ou psicológico de Naruto, ambas as partes que se opõem se enfrentam com ardis, planos b, c e cartas na manga. Ninguém está apenas dando um soco, cada golpe é uma finta; cada ferimento, uma distração; cada plano executado têm uma resposta e uma armadilha preparados. É um tipo difícil de história de se escrever, requer muito planejamento e finesse para que os trunfos usados não pareçam “deus ex machina” - recursos que não foram previamente introduzidos e resolvem situações para as personagens - e Naruto têm muitos momentos mal escritos, mas que você releva pela diversão da cena.

E como eu apliquei isso na minha vida, você pode estar se perguntando; e eu lhe respondo: Planejando a frente para cada problema que possa surgir.

A mente depressiva têm a péssima capacidade de viver focada em pensamentos negativos, problemas reais ou imaginários, ansiedade com coisas bobas, lembranças negativas, etc. Porém, eu fui “forçado” a ler um livrinho besta, chamado Poliana, quando eu era muito novo e estava começando a apresentar os primeiros sintomas da depressão. Levar o filho com problemas no médico pra que? Enfia um livro na frente dele e doutrina ele com a mensagem da história. No presente momento - Setembro de 2019 - o canal SBT está passando uma novela baseada no livro, sei que ler hoje em dia é uma habilidade rara, então assistir a novela pode dar um norte melhor do conceito, mas resumindo: Poliana era uma menina pobre, ficou orfã muito jovem, e a única coisa que trouxe de seu pai foi a doutrina do “jogo do contente”, que consiste em você enxergar o lado bom em TUDO que te acontecer.

Sua tia te recebeu com cara fechada? Ao menos você tem um teto sobre a cabeça. Sua tia rica que vive numa mansão têm colocou num quartinho abafado debaixo do telhado? Ao menos a vista da sua janela é fantástica! Você foi atropelada e perdeu o movimento das pernas? Ao menos agora sua tia te permite ficar num quarto no térreo, sem ter de subir aquelas escadas infinitas. Já deu pra entender né?

Junte a doutrina de achar um lado bom em absolutamente tudo e a capacidade de sempre estar pensando no pior que pode acontecer, e você tem uma pessoa no mínimo exótica, capaz de ao mesmo tempo por seu plano por terra citando todos os problemas dele, e ao mesmo tempo fica tentando te consolar falando o que dá pra tirar de bom de cada falha. Não parece uma pessoa muito legal de se ter por perto, mas parece a pessoa ideal para ser seu estrategista, seu “departamento de vai dar merda”, seu conselheiro…

É assim que eu enxergo o mundo hoje. Minha esposa diz algo que quer fazer, a mente depressiva começa a bolar mil problemas e entraves que podem azedar o rolê, e a mente doutrinada começam a analisar tudo que pode ser tirado de bom da situação. É de queimar fusíveis. Além de psicoterapia, que é essencial para qualquer pessoa com depressão de qualquer nível ou TDAH, meditação ajudou bastante. Ser capaz de limpar a mente, desligar as 3 camadas de pensamentos conflitantes e apreciar o zunido do seu ouvido ou aquela música que está grudada numa camada de pensamento que você nem havia percebido que estava lá, até que você silenciou as outras. Meditar ajuda bastante.

E ai entra naquele momento “jabá”, onde não bastou eu te fazer o óbvio e procurar um médico, eu ainda vou puxar sardinha para o que me ajudou. Muita gente têm dificuldade em simplesmente esvaziar a cabeça e silenciar o pensamento, e eu só consegui de fato isso quando conheci a Sahaja yoga. Apesar do nome, não é uma yoga de contorcionismo e elasticidade física, é pesadamente derivada de mitos e práticas hindus, mas ela tem um diferencial que faz toda a diferença: É coletiva. Ter outras pessoas no ambiente torna a prática algo social com o que você pode trocar experiências e dicas posteriormente, e ter alguém orientando, falando frases de incentivo e orientação enquanto você começa a meditar lhe dá a linha guia de como fazer sozinho depois. Uma das frases que podem parecer super piegas mas que fazem toda a diferença tanto na meditação quanto na mente depressiva é : Eu perdoo.

Não que eu perdoe algo ou alguém, mas sim que sempre que vier um pensamento incômodo ou inoportuno, você pega ele pela mão figurativa dele, empurra ele de volta pra fora da sua cabeça e fala “eu te perdoo” e continua sua vida, sua meditação, seu texto, o que você estiver fazendo. Essa prática, de saber separar o joio do trigo e limpar a mente mesmo que parcialmente torna o planejamento prático muito menos trabalhoso. Deixa sua mente um lugar mais claro e aberto para você controlar o que lhe vem na cabeça e se isso é útil ou não.

Então, resumindo, não leia ou assista Naruto, apesar de boas mensagens de amizade, têm péssimos exemplos de como se tratar uma mulher que é afim de você, de busca por vingança e como lidar com rivalidades. Ou se for assistir, faça com um grão de sal e lembre-se que é uma obra japonesa - uma sociedade extremamente machista e preconceituosa - de quase vinte anos atrás, quando o socialmente aceitável era ligeiramente outro. E pratique yoga e meditação, faz bem pro corpo, faz bem pra cabeça. Procure um lugar pra praticar na sua cidade ou comece pela internet, têm o site http://www.sahajayoga.org.br/ onde você pode achar onde acontecem encontros.

No mais, é isso ai, boa sorte na jornada, esforço ai que a vida pode valer a pena, em alguns momentos selecionados. Lembre-se que essa bosta é só uma vez, tente tirar o máximo de proveito dela, como lhe for possível. Como diz a filosofia da theleuma e o saudoso Raul Seixas: Faz o que tu queres, pois é tudo da lei.