ÊTA, AGONIA! iv

IV

Alfredo tinha vindo a pé do Campo Grande. Não usou o último pernoitão de Orla, buzu que encerrava sua viagem no Centro Histórico. Faltava-lhe a paciência de esperar ouvindo um esquisito mendigo erudito no ponto de ônibus da Avenida Sete. Contudo demorou chegar no cortiço de madrugada por causa daqueles insuportáveis murmurinhos daquele infeliz parasita. Martelava na sua cabeça, mas, pouco importou a princípio. Ele até comeu cachaça nalguns lugares próximos de seu destino final; e se perdeu no horário segundo as câmeras de monitoramento da cidade. Aliás, relógios digitais de que Alfredo cismava ser da Inteligência... Embora, guinasse pelas ruas e becos devido a um periódico literário que trazia no rosto com um doido, Alfredo mantinha um sentimento cauteloso para não vacilar, pensava: Praça Castro Alves, casa e pronto!

Quando chegou na Praça da Piedade não contemplou o Gabinete de Leitura Português; parecia desfazer da estátua de Camões, seria mais adequado a posição de Cabral para nossa realidade cultural elitista, ironizava — eram duas estátuas na creme fachada manuelina da imponente biblioteca no Centro de Salvador. Já a outra represeria melhor nossa memória histórica um negro, índio um nativo qualquer, sei lá menos Pero Vaz de Caminha. E, desse jeito chamou a atenção dos maloqueiros da Praça da Piedade; acreditavam-no ser um farsante tirado a nada; mesmo super ocupados no estalar das pedras de crack não tiravam os olhos cozidos de Alfredo concentrado na biblioteca. Lembrava um idiota. E apesar daquelas feições duras de cada um deles pareciam ouvir música quando o óleo derretia na lata! Alfredo não ligava pra eles, miseráveis tragados pelo sistema; e o jovem se virou olhando o busto imundo de Manuel Faustino, seu verdadeiro Herói ali esquecido. Ele continuava na Piedade — Êta, agonia! Se cada um de nós parassêmos diante de cada um busto daquele ali da Praça, qualquer um mesmo! E não falassêmos nada, somente dando a honrosa importância a cada um deles com a nossa presença; escolhesse somente um dos nossos hérois Republicanos e chorasse de vergonha e covardia histórica já valeria a pena tal ato nobre! Pois, cantariam no íntimo de cada um uma verdade: morreram porque eram negros e não européus. E que vá para o inferno essa maldita terra de ninguém!

- Aqui é Brasil branquelo, calma. Esqueça a Bahia! Disse baixinho despreocupado um elemento. O tal mendigo do ponto. E o maloqueiro inconfidente que vestia um roupão de milico azul e branco encardido, acariciou a barba e não desfez do pernoitado — , Reclama sozinho, distante e não surgirá efeito — Concluíaram desconexos cada um enlouquecido pela mais pura realidade atemporal. Destraíram-se em desígnios diferentes sem história, tempo e existência ou qualquer que seja nossa verdade!... Uma desolação de claustro se fez dinâmica desde o início do Brasil. Desconversaram uns; outro no canto lamentava e desapareceram todos numa só mente conectadando-se... Alfredo saiu dali também sem que ninguém o notasse. Logo, fez-se presente no Porto do Moreira** para tomar uma cevada e lavar a boca — ninguém se abriu por causa do horário, achavam-no esquisito. Podia ser ladrão apesar de branco — e se contentou com alguns trocados perdidos que tinha ainda nos bolsos. Amargurou-se então numa quitandinha no beco da forca virando doses de licor feito de gengibre, beliscando tira-gosto barato dando forma a um monólogo enjoativo, porém agora tolerável se erudito do inconviniente mendigo. Empolgara-se, logo a cachaça lhe fez efeito novamente... Foi até notado seu estado vacilante que, apesar de insuportável perdera a direção, insistia e variava folheando o tal jornal não mais desfarsou - estava embriagado... E, volta e meia, quando oscilava alguma saudade que lhe fazia delirar lembrava da desigualdade social que sofria! — E partiu completamente alucinado na Bahia, no Estado mais racista do mundo, porque velado e sistêmico, não repetia tal pensamento o cachaceiro por causa da nossa moral cristã.

E quando Alfredo chegou ao antigo jornal A Tarde, lembrou de um tal escritor Carlos Anísio Melhor*** — e das façanhas dessa personalidade. Sem embargo, fixou-se próximo da estátua de Castro Alves tentando homenageá-lo; mas, por outro lado, quando constataram o seu vexame, Alfredo se sentiu ridículo desistiu do espetáculo raivoso. Pra que serve ser poeta?Então, quis recompor-se a qualquer custo dobrando algumas páginas do jornal e guardando nos bolsos. Disfarçava dos poucos transeuntes que vinham apressados para irem trabalhar. Porém, notou o arzinho hipócrita daqueles que não perdiam o horário do buzu por nada que passavam a criticar o desocupado que morava na maloca chamada "dezenove", cortiço na mira do governo já algum tempo. Questão de tempo tirar àquela negrada dali do Maciel e limpar toda sujeira.

claudio maia

claudio maia
Enviado por claudio maia em 30/07/2019
Reeditado em 19/11/2022
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