ESSE SOCO TAMBÉM É SEU .... ( Transcrição da Folha de S.Paulo )
 

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Reprodução/Facebook/Marcia Friggi
 
Imagem: Reprodução/Facebook/Marcia Friggi
Flávio Voight* 
 
Colaboração para o UOL
23/08/2017 12h46
Minha avó, filha de índia com branco, foi a primeira professora da sua comunidade. Minha mãe, sua filha, foi diretora de um colégio estadual aos 17 anos, por ninguém mais na região estar disposto a ocupar o cargo.
Por isso me surpreende a repercussão da notícia de uma professora espancada por um aluno em Santa Catarina. Não que a história não mereça atenção –a coragem da professora Márcia Friggi em expôr a violência que sofreu é louvável–, mas pela aparente surpresa de tanta gente ao saber que professores são agredidos.
Foi por ouvir histórias como essa que eu e meu irmão, os próximos na família, passamos a infância jurando que não seguiríamos essa carreira de jeito nenhum. Hoje, mesmo tendo formação em outras áreas, nós dois trabalhamos como professores. "A língua é o chicote da bunda", diria minha avó.
Quem segura a bronca? O professor
Como psicólogos, aprendemos a ignorar, no caso de adolescentes, sintomas que para um adulto garantiriam um diagnóstico tenebroso. Acontece com eles a chamada Síndrome Normal da Adolescência, trazendo extremos violentos e comportamentos imprevisíveis.
Basicamente, na adolescência somos loucos, mesmo. O processo de adolescer é intenso demais para não enlouquecer alguém, ainda que temporariamente.
Por isso, até o amor do adolescente é psicótico: confuso, misturado com ódio e atirando para todo lado. E quem é a única pessoa com que o adolescente é obrigado a conviver todos os dias, alvo de todo seu amor e ódio? O professor.
É para ele que sobra a bronca de ser toda a estrutura que um adolescente precisa, tentando equilibrar o trabalho de lecionar com a função emocional de presenteá-lo com liberdade e com regras na medida exata.
Multiplique isso por quarenta alunos em uma sala, e imagine o caos. Ou melhor, veja as fotos da professora Márcia e conclua por conta própria.
A adolescência é complicada, mas nem tudo é tolerável
Não é por estar em um momento de crise que o adolescente precisa ser tolerado em todas as suas atitudes. Ainda assim, é muito inteligente levar isso em conta ao se planejar como se trata um aluno em uma escola.
Um adolescente precisa ter alguma estrutura familiar para sentir-se seguro; precisa ter perspectiva de uma vida financeira saudável para dedicar-se ao estudo; de carinho e acolhimento para não se render ao caos completo.
É possível que um adolescente que não tenha estrutura, perspectivas e carinho se torne uma pessoa com comportamento exemplar? Sim. É possível que todos os adolescentes sem estrutura, perspectivas e carinho se tornem cidadãos exemplares? Não.
O que não exime um adolescente, mesmo em uma situação vulnerável, da responsabilidade pelos seus atos. Ainda assim, não é saudável ignorar a grande parcela de responsabilidade política em cima da questão.
São anos de uma sociedade desprezando e ignorando as más condições de trabalho de seus professores para depois chocar-se com a história de uma professora que, literalmente, apanha de um aluno.
“A língua é o chicote da bunda”, repetiria minha avó, como boa professora.
Quem ensina e quem educa?
“Escola ensina, quem educa são os pais”, diz o clichê.
Infelizmente, basta passar por qualquer escola pública para perceber que, em muitos casos, os pais não estão disponíveis para educar, pelo motivo que for. Se queremos formar cidadãos, não podemos ignorar isso. Se a educação não começa em casa, precisa começar em algum lugar. Que seja a escola.
Nas redes sociais, a professora Márcia Friggi foi chamada de vitimista, como se fosse culpada pela agressão que sofreu. “Não me surpreende”, ela declarou. A mim também não, professora.
Precisamos de uma escola capaz de escutar e acolher o aluno em todas as suas necessidades. Agora, botar toda essa responsabilidade nas costas dos professores é maldade demais.
Professores também precisam de estrutura, perspectivas e carinho. Se você discorda disso, o soco também é seu.
Os professores não odeiam o aluno-problema
Podem reclamar, podem sofrer muito com eles, mas nunca conheci um professor que não tivesse satisfação ao contar a história de quando "converteu" um aluno difícil.
O que não falta é disposição da parte dos educadores para lidar com as partes pesadas de sua profissão. Eles sempre souberam que seu trabalho é difícil. Isso é verdade desde, literalmente, o tempo da minha avó.
O problema está em quando a estrutura dos sistemas (escolar/ familiar/político) está tão desorganizada e psicótica quanto a cabeça dos adolescentes que deveriam atender. A família está sem estrutura, as escolas estão sem estrutura, os adolescentes estão sem estrutura, a população se sente sem ter para onde ir.
Os professores apanham de tudo isso muito antes de apanhar de um aluno na sala de aula.
A própria professora Márcia, que sofreu a agressão essa semana, fala sobre isso em sua declaração no Facebook: “Estou dilacerada porque me sinto em desamparo, como estão desamparados todos os professores brasileiros. Estamos, há anos, sendo colocados em condição de desamparo pelos governos. A sociedade nos desamparou. A vida.”
Como acabar com esse desamparo? Cuidando dos dois lados ao mesmo tempo. Para apoiar os professores, é preciso dar apoio aos alunos. Para apoiar os alunos, é preciso dar apoio aos professores.
Enquanto isso não acontecer, os professores vão seguir contribuindo com seu próprio sangue. Lamentável que, em casos como o da professora Márcia, isso aconteça literalmente.
*Flávio Voight é psicólogo e atua como professor