Tomando chá com o Brasil
Quatro tempos do chá nos Açores
(proposta de arrumo cronológico)
Introdução
Para explicar as primeiras quatro décadas da indústria do chá nos Açores, propõe-se a sua divisão em quatro tempos.
1.º: Tempo de preparar (1873-1878);
2º: Tempo de Experimentar (1878-82);
3.º: Tempo de Construir (1882-1895):
4.º: Tempo de Desfrutar (1895-1913).
Para propor um fio discursivo e este texto, antecipa-se uma ideia e enunciam-se duas perguntas. Ideia: apesar do cultivo e da produção do chá ser preponderante em São Miguel, o chá não é uma produção exclusiva da Ilha de São Miguel. Houve cultivo e produção em mais ilhas dos Açores: a ilha do Faial é exemplo disso. Primeira pergunta: terá ou não existido uma literatura de apoio aos primeiros quatro tempos do chá nos Açores? Segunda: que literatura e que autores?
Resposta à primeira pergunta: é muito provável que tenha existido. Resposta à segunda: para o primeiro tempo, tomamos em consideração artigos publicados no Almanak Rural e no jornal O Cultivador. Para os restantes três tempos: analisamos nove textos. Estão publicados em seis livros e em dois periódicos. São de sete autores.
Existe um sétimo livro: um trabalho que resulta de uma observação de 1881, publicado em 1882. É de Joaquim M. Araújo Correia de Morais, tem o título de ‘Manual do cultivador do chá do comércio ou resumo de apontamentos que, acerca de tão importante e fácil cultura. ’ Porém, não o consegui ler.
Há um outro, um oitavo livro, de M. Jacobsen, de 1891. Que, apesar de poder ter tido impacto no arranque do chá em Moçambique, tanto quanto se conhece, não terá tido influência nos Açores. É a Sociedade de Geografia de Lisboa quem o manda traduzir e chama-se Tratado sobre a cultura do chá. M. Jacobsen, sócio daquela Sociedade .
I
Os quatro tempos
Primeiro:
‘Tempo de preparar’
(1873-1878)
Textos de divulgação e de incentivo à produção local de chá, dentro do ‘Tempo de preparar (1873-1878)’, começam a aparecer na imprensa logo a seguir à tomada de decisão da SPAM de Novembro de 1873. Revestem-se sob duas formas: uma primeira, publica as decisões da SPAM; uma segunda, avança com traduções para português de autores estrangeiros sobre a história e técnicas do chá. São publicados no O Cultivador ou no Almanaque Rural da SPAM.
De forma explicita ou implícita, verifica-se que tais trabalhos destinam-se a convencer os leitores das vantagens económicas do cultivo e transformação do chá nos Açores. Em Agosto, no número de 15 de Agosto de 1874 do jornal O Cultivador , de Guilherme Read Cabral, sócio activo da SPAM, surge um artigo. É ‘da autoria de C.C. (quem seria?) e intitula-se As virtudes do Chá. ’ No mesmo número, mas mais à frente, publica-se uma informação intitulada Chá. Em pormenor, refere a cultura do chá ‘em França, na região de Toulon.’ Fala de ‘100 000 plantas em 400 ou 500 enxertos de camélias. ’
No Almanach Rural ano de 1875, almanaque que a SPAM publicou, encontramos um texto denominado também O Chá . Trata-se de uma curiosa noticia sobre o chá na Índia. A sua cultura, colheita, preparação e manipulação, variedades. Entre outros temas de interesse. É traduzido por Guilherme Read Cabral.
De novo em O Cultivador, mas em Abril de 1876, um artigo, de Edmond Goeze intitulado o Chá . Goeze narra a origem geográfica do chá, de como se alastrou a outras áreas: Extremo Oriente, Índia e Brasil. Refere o comércio com a Europa. Para advogar, em seguida, o seu cultivo na Ilha de São Miguel. Que tipo de adubo seria necessário para os terrenos? Que terrenos seriam os mais aptos? Que é o chá preto e o verde? Sementes existem na Madeira e em São Miguel. Não põe de parte a possibilidade desta cultura ser introduzida no Minho. Diga-se que Edmond Goeze manteve correspondência epistolar mutuamente vantajosa com José do Canto.
Segundo:
‘Tempo de experimentar’
(1879-1882)
A especificidade deste tempo que o distingue dos dois seguintes, deriva do facto de os conhecimentos técnicos desta fase virem de fora: da China e do Brasil. Procedem de um conhecimento simultaneamente livresco e empírico: dos manuais e das observações directas.
A tecnologia viera de fora e traduz-se no trabalho de Lau-a-Pan, o chinês contratado, e no texto reeditado do livro do brasileiro carmelita Frei Leandro do Sacramento. Sendo a técnica rudimentar, com alunos bons, a aprendizagem dos da terra seria rápida. O progresso, ainda que de modo incipiente, já se revelava, no texto do relatório da comissão da SPAM de finais de 1879. E na observação de Rafael de Almeida (publicada na A Persuasão), secretário da SPAM.
A) Frei Leandro do Sacramento: Botânico brasileiro
Para acompanhar de perto a experiência do técnico chinês, seria útil recorrer a um manual sobre o chá. A escolha da SPAM recaiu na obra de Frei Leandro Sacramento. Escrita em português, fora publicada na cidade do Rio de Janeiro. Cumprindo, no Brasil, com êxito a função a que se destinara, cinquenta e quatro anos depois, pretendia-se, nos Açores, que cumprisse a missão com o mesmo sucesso. Diga-se que no tempo da Fuga da Corte para o Brasil e estadia no Brasil, o chá fora aí introduzido e aproveitado.
Quem foi Frei Leandro do Santíssimo Sacramento? Foi um frade carmelita brasileiro que se dedicou à Botânica. Havendo nascido no ano de 1778, no Recife, faleceu, com pouco menos de 50 anos, no Rio de Janeiro, a 1 de Julho de 1828. Estudou Filosofia na Universidade de Coimbra e regressou ao Brasil em 1806. Mudou-se para o Rio de Janeiro. Naquela cidade foi professor de Botânica na Academia Médico-Cirúrgica. Quando, em 1824, foi nomeado director do Jardim Botânico. Dava aulas de botânica e de agricultura no Passeio Público.
Impõe-se, uma advertência: não se cotejou o original de Frei Leandro, de 1825, com a cópia que originou a reedição, de 1879. E optou-se por esboçar os assuntos tratados. Com o enunciado dos temas, apenas se pretende demonstrar a óbvia utilidade de manual desta reedição no próprio momento do arranque do chá em S. Miguel.
Os temas são os que seguem: ‘Colheita do chá’ (pp. 1-2); ‘Primeira preparação, ou fabrico de Chá’ (pp. 3-11); ‘Segunda preparação, ou fabrico de Chá’ (pp. 12-18); ‘Terceira, e ultima operação’ (pp. 18-20); Reflexões sobre a Cultura do Chá (pp. 20-27); Reflexões sobre o processo de preparar o Chá (pp. 27-38; Instrumentos, que constituem uma completa oficina de prepara Chá (pp. 38-41).
Que intenção nortearia a SPAM ao reeditar o livro de Frei Leandro e publicar o relatório da comissão nomeada? Os objectivos da SPAM parecem ser bastante claros e evidentes: por um lado, ao acompanhar com atenção o trabalho do mestre chinês contratado, aprender, por outro, ao assimilar as instruções dos manuais, esclarecer dúvidas e ampliar conhecimentos. Só cruzando a observação prática com a leitura teórica, que por seu turno se escorava na prática, se poderia fornecer elementos úteis e capazes a quem doravante pretendesse cultivar e manipular o chá para fins industriais.
Pelo que se depreende, o texto de Frei Leandro não parece deixar dúvidas: destinava-se a ser usado como manual. Guiaria os primeiros passos no aproveitamento industrial do chá nos Açores.
A publicação fará, pois, parte da estratégia da implantação do chá nos Açores. Outra vertente desta estratégia, foi a de aquilatar o valor do chá produzido, enviando-se amostras a especialistas em Paris e Londres. Ou, sem revelar a origem, dando-o a beber a sócios de diversos clubes sociais: Clube Micaelense, em Ponta Delgada ou Clube Lisbonense, em Lisboa. Provas que, pelo que se conhece, obtiveram êxito. Ainda uma outra linha estratégica adoptada pela SPAM, foi a de obter apoio legislativo do parlamento nacional. Apesar de não ser de leitura tão linear, as medidas de protecção e de incentivo ao cultivo do chá tardaram ou não chegaram ou foram consideradas insuficientes.
B) Relatório da Comissão de acompanhamento nomeada pela SPAM
A SPAM ao promover, em 1879, a segunda edição, do livro de Frei Leandro, de 1825, aproveitou para publicar o relatório da comissão nomeada para assistir à manipulação do chá. O relatório, apresentado na sessão de 5 de Fevereiro de 1879, tratava matéria referente a 1878.
Mais tarde, Gabriel de Almeida, quis relembrar alguns dos protagonistas insuficientemente referidos no relatório: Rafael de Almeida, irmão mais velho de Gabriel, o Barão da Fonte Bela, que promoveu uma subscrição para angariar verbas para financiar o projecto, o Conde da Praia da Vitória, Presidente em exercício da SPAM, e Caetano Albuquerque. Este último, em 1878/79, enquanto Presidente da Comissão para acompanhamento da experiência, ou, em 1881, como representante ao Parlamento.
Retomemos o fio à meada. Segundo o relatório: além de se assimilar a tecnologia do chá, pretendia-se primeiro, saber ‘ (…) se o chá cultivado em São Miguel era susceptível de produzir (…);’ segundo se ‘(…) depois de preparado convenientemente [era] artigo próprio para o comércio (…).’
Do relatório, seleccionamos apenas aspectos técnicos. Aí dá-se conta da chegada dos dois chineses a 5 de Março de 1878, e de que nove dias depois, haviam sido colhidas as primeiras folhas nas propriedades do ‘consocio José do Canto’ (irmão do relator), que foram manipuladas na sede da SPAM, em Ponta Delgada. Numa ‘casa de antemão preparada com a fornalha e outros aprestes indispensáveis.’
Quando tudo parecia estar a correr bem, a SPAM é confrontada com um imprevisto bastante desagradável: os chineses guardavam os segredos que deveriam revelar. Porém, logrou-se dar-se-lhes a volta. Continua o relatório: ‘levados por meios persuasivos (…).’ Quais? Resposta: ‘com a promessa de prémios, ou ainda recordando-lhes as restritas obrigações que tinham contraído, convenceram-se de que só lhes restava a fiel execução do seu contracto, como único meio de não sofrerem nos seus interesses, e desde então prestaram-se de melhor vontade a cumprir o que se lhes ordena.’
Mesmo assim, continuaram a persistir. Recorrendo a estratagemas, evitavam revelar tudo o que se presumia saberem: ora mentindo ora facultando dados imprecisos. Devido ao jogo entre contratadores (que queriam tudo revelado) e contratados (que, por feitio, ou deliberadamente, escondiam o que podiam), compreende-se perfeitamente a oportunidade da reedição do livro de Frei Leandro do Sacramento e do relatório da comissão da SPAM.
Mas não foi só o esconder a tecnologia, outro contratempo igualmente imprevisto, ensombrou o êxito completo da experiência: ‘mestre Lau-a-Pan – ignora[va] quase completamente os processos da manipulação e fabrico do chá verde (…).’ A SPAM não se fiando apenas nos chineses, logo na Primavera seguinte de 1879, agora já sem os chineses, seguindo as instruções de Ball, propunha-se a empreender nova tentativa para obter chá verde.
Quanto aos processos do fabrico do chá, passados apenas meses, dada a pouca complexidade da tecnologia envolvida: ‘as principais operações da manipulação são [eram] já bem conhecidas de alguns membros da comissão, e o nosso empregado da secretaria Rafael de Almeida tem conseguido pôr em prática todo o processo seguido pelos chins.’
Frei Leandro do Sacramento, Memória Económica sobre a preparação do chá escrita por Fr. Leandro do Sacramento, Precedida do relatório feito pela comissão nomeada pela Sociedade Promotora da Agricultura Michaelense, para assistir à manipulação do chá em Ponta Delgada, Typ. – Popular, 1979.
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C – Samuel Ball - Falhada a experiência do chá verde, a SPAM virou-se para Samuel Ball. Ball residiu na China de 1804 a 1826. Aproveitou a estadia oficial para observar a cultura do chá na China. Foi um sucesso a seguir ao fiasco da embaixada britânica à corte Imperial, de 1792, liderada por lord George Macartney, Primeiro Earl Macartney. Segundo acusa Gabriel de Almeida, ao contrário do Brasil, em que o Imperador da China oferecera o segredo do chá ao Rei de Portugal, a embaixada de lord Macartney roubara o segredo aos chineses .
Ball observou como os chineses cultivavam e fabricavam o chá, como confessa, tudo ilustrado pelos melhores especialistas, tanto chineses como europeus. Com observações acerca das experiências levadas a cabo para a introdução da cultura do arbusto do chá em outras partes do mundo. Seria, mais tarde, feito cavaleiro (esquire) e nomeado inspector de chás na United East India Company in China. O livro saiu, em 1848, vinte e dois anos depois da sua estadia oficial na China.
Parece-nos evidente que os membros da SPAM pretenderam confrontar duas experiências bem sucedidas fora da China: a do Brasil, logo o livro de Frei Leandro, a do Assam britânico, na Índia, logo, Ball. A experiência do Brasil fora anterior à de Assam e obtivera a colaboração voluntária do Imperador da China; ao invés a de Assam foi, pelo menos duas décadas mais tarde, e resultara, como se diria hoje, de um caso espionagem comercial.
José do Canto possuía um exemplar do livro de Ball na sua biblioteca. Está dividido em 13 capítulos. Ball e Frei Leandro, as narrativas das duas experiências bem sucedidas de fabrico de chá fora da China, foram, neste impasse, úteis à SPAM.
O primeiro capítulo narra a descoberta do chá. O segundo, trata, especificamente, do chá preto; o terceiro, do cultivo do chá; o quarto, do tempo da recolha; o quinto, da manipulação que antecede o roasting; o sétimo, é sobre o roasting e secagem final das folhas; o oitavo, da manipulação do Pekoe e outros chás; o nono, do chá verde (que é o que interessava na altura os membros da SPAM); o décimo, o calor usado na manipulação do chá na China; o décimo primeiro, descreve algumas experiências; o décimo segundo, de observações botânicas e diferenças específicas de chá; finalmente, o décimo terceiro, cuida da introdução e do cultivo do chá na Índia, Java e Brasil. Inclui ainda um apêndice.
Samuel Ball, Cultivation and manufacture of tea in China: derived from personal observations during an official residence in that country from 1804 to 1826; And illustrated by the best authorities, chinese as well as European: with remarks on the experiments now making for the introduction of the culture of the tea tree in other parts of the world (…), London, Printed for Longman, Brown, Green, and Longmans, Paternoster Now, 1848
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Terceiro:
‘Tempo de construir’:
(1883-1895)
Provada a viabilidade económica do chá nos Açores, assimilada a técnica básica, era tempo de se passar ao ‘tempo de construir’ os alicerces da futura indústria. Os conhecimentos técnicos para este segundo período, são locais. São de alguém que conhece seguramente os trabalhos e as observações precedentes. São de Gabriel de Almeida, irmão de Rafael de Almeida. Será que quis aproveitar os conhecimentos adquiridos pelo irmão para ganhar com isso? Provavelmente. Antigo aluno do mestre, a sua acção mercantil também terá sido pedagógica, influência do magistério de António Feliciano de Castilho.
Transporta a fase associativa da SPAM, já também na esfera da iniciativa individual, deparamos com três obras que obtiveram sucesso editorial. São de cariz publicitário. Foram publicadas entre 1883 e 1893. A primeira das três saiu em 1883, e chamava-se: Breve Notícia sobre a Cultura e Plantação do Chá; a segunda, em 1892, Manual do Cultivador e manipulador do chá; e; a terceira, em 1893, Guia do Cultivador e manipulador do Chá.
Gabriel é um publicista auto-didacta, apostado na divulgação de novas tecnologias. Não o fez só para o chá, pois, entre outras, também divulgou as culturas do tabaco e do ananás. É um bom divulgador. O seu primeiro trabalho sobre o chá é quase um folheto de publicidade, enquanto o segundo e o terceiro, mais minuciosos, são já guias para o cultivo e manipulação.
Quem era Gabriel de Almeida? Indo às genealogias de Rodrigo Rodrigues, ficamos a saber que Gabriel nasceu a 29 de Setembro de 1866. Confirma-se que na freguesia de São José. Casou a 28 de Novembro de 1891. E, o que nos interessa, era, como dissemos, irmão de Rafael de Almeida. Rafael era nove anos mais velho (31 de Outubro de 1857) Eram todos filhos naturais de Luís António Máximo Pereira, mas perfilhados, conhecido por Miguel de Almeida.
Segundo Urbano Mendonça Dias, nossa outra fonte, terá morrido ‘bastante novo.’ Escritor prolixo, sem formação académica, ‘sem grandes títulos literários, soube no entanto apresentar-se no Mundo das letras, sendo recebido com simpatia por todos. Foi redactor do jornal O Civilizador. Colaborador de diversos jornais (Açoriano Oriental, A Caridade, Diário de Anúncios e Novo Diário dos Açores). Autor de muitas obras, abordando vária temática: o chá, o tabaco, a estadia de Castilho na Ilha de São Miguel, a vinha, o açúcar, o ananás, a laranja, a pesca, o turismo.
A) Folheto publicitário a incentivar ao consumo e à produção do chá
É um folheto claramente classificável de publicitário. Gabriel de Almeida, neste pequeno opúsculo, dado à estampa cinco anos após a reedição da obra de Frei Sacramento, incentiva os açorianos a produzirem e a consumirem chá da terra. A obra está dividida num só capítulo, a que intitulou Cultura da Planta do Chá. Neste, na primeira e terceira partes e no primeiro parágrafo da quarta, escreveu o que já se sabia pelo relatório da comissão da SPAM de 1879.
No que diz respeito à História do chá, refere-se à introdução do chá no Brasil (página 4). Aborda as propriedades dos chás (página 5), o tipo de terrenos que a planta parece preferir, o modo como as plantas devem ser cultivadas, a monda e as primeiras folhas (páginas 6 e 7). Existiriam, informa-nos, colhendo a informação em segunda mão, cremos, de um manuscrito chinês, não se sabe como, ‘pelo menos cinquenta e seis variedades de chá.’ Tendo origem na mesma planta, a diferença residia ‘na preparação.’ (página 7) Conclui o trabalho, enumerando dez variedades de chá. (páginas 9-11).
A haver diferenças, que diferenças haverá, de novidade entre a reedição do livro de Frei do Sacramento e a de Gabriel de Almeida de 1883 que justifique a publicação de Gabriel de Almeida? À primeira vista, o livro de Gabriel de Almeida apenas apresenta diferenças formais: é mais pequeno. Todavia, para além desta diferença, existem outras. Em primeiro lugar, sendo em formato mais pequeno e escrito em linguagem comum, é mais acessível ao público. Acaba por ser mais barato e menos denso. Segundo, porque ao pretender demonstrar as qualidades do chá local, é também um folheto publicitário.
Uma circunstância não despicienda: Gabriel de Almeida, na ocasião em que publica o seu livro, não se sabe se o faz pouco ou muito tempo depois de o escrever, era um jovem de dezassete anos de idade. Além do mais, repare-se mais uma vez na feliz coincidência, era nem mais nem menos que o irmão mais novo de Rafael de Almeida, o secretário da SPAM que fora incumbido, observando o que faziam os dois chineses, de aprender a manipular o chá. Rafael teria já vinte e cinco anos ou ia a caminho de os fazer.
Quando os chineses estão a experimentar o chá colhido em S. Miguel, Gabriel, com doze para treze anos, pode ter sido companhia do irmão mais velho. Ou teria ouvido os seus comentários. Ou até, vamos supor, por ter mais jeito para a escrita do que o irmão Rafael, ter sido encorajado ou desafiado por ele a escrever.
Em 1879, Rafael era um jovem de 21 ou de 22 anos. Este primeiro trabalho de Gabriel, é, naturalmente, incipiente, mas, nem por isso, raro. Recorde-se, por exemplo, que, em 1849, José de Torres, com apenas dezasseis anos, publicou Viagens ao Interior da Ilha de S. Miguel . A publicação deste trabalho de Gabriel, pode especular-se, talvez tenha ainda resultado, para além do propósito didáctico, de uma vontade de rendibilizar conhecimentos. Portanto, estaremos perante uma oportunidade comercial. O que pode ser corroborado, se tivermos em conta o que publicou ao longo da vida, por outros trabalhos.
Gabriel de Almeida, Breve Notícia sobre a Cultura e Plantação do Chá, Ponta Delgada, Typ. Imparcial, 1883.
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B) História e Manual de cultivo e de apoio à produção local de chá
Este novo trabalho de Gabriel de Almeida, saído em 1892, é um misto de História e de Manual de Cultivo e Produção do chá. Persiste a mesma característica: acessível na linguagem e no formato. É, novamente, um evidente incentivo à produção local. O que levaria este autor, nove anos depois do primeiro trabalho, a publicar outro sobre o chá? Comparando os dois trabalhos, este de 1892, patenteia uma maior maturidade na forma e no conteúdo. Outra coisa não seria de esperar, já que, Gabriel tinha 25 ou perto de 25 anos, tendo, entretanto, acumulado experiência mercê da publicação de outros trabalhos de divulgação. E o chá, entretanto, desenvolvera-se nas ilhas. Este é o segundo de três livros que dedicou a esta planta agro-industrial: o primeiro fora em 1883, agora, este de 1892, e o terceiro e último, seria publicado no ano seguinte, em 1893. Até pelo título já vemos a entre ambos: Manual do Cultivador do Chá. Por tudo o que sabe, ‘a exploração do chá não é muito dispendiosa (…).’
Gabriel organizou-o em três partes: ‘na primeira (diz ele) compendiamos as notícias mais curiosas sobre o chá; na segunda historiamos os ensaios feitos na ilha de São Miguel (…) para o estabelecimento desta indústria; e na terceira (…) apresentamos as regras praticas e os necessários detalhes sobre a sua cultura, fabrico e exploração.’
Analise-se a terceira parte. Em relação à obra de Frei do Sacramento, é bem visível, que a de Almeida é mais resumida. Será mais fácil de se usar no dia a dia: um verdadeiro manual. Inclui modelos de folha de despesa. Encontra-se ainda subdividida. Passo a enumerá-la, pelo seu evidente interesse: Cultura do chá (p. 29); Sementeira (pp. 29-30); Transplantação (p.30); Plantação (pp. 30-31); Cuidados no Cultivo (pp. 31-32); A poda (pp. 32-34); Manipulação do chá (p.35); Colheita da folha (pp. 35-37); Preparação do Chá (pp. 37-38); Chá preto (pp. 38-46); chá verde (pp. 46-51); Notas da manipulação (pp. 51-62); Oficina para a manipulação do chá (pp. 63-65); Contabilidade (pp. 67-68), Modelo n. 1: Despesa com a cultura da planta do chá / 2.º ano/ 3.º ano (p.69); Modelo n.º 2 Despesa geral com a exploração da industria do chá no ano de 189…/ Cultura/ Manipulação (p. 70); Modelo n.º 3 / Notas da apanha e manipulação do chá no ano de 189… e do resultado da produção. (p. 71).
Bastará uma leitura na diagonal, para nos convencermos da natureza de manual da obra.
Gabriel de Almeida, Manual do Cultivador do Chá, Ponta Delgada, Typo-lytographia Minerva, 1892.
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D) Manual de cultivo de apoio à produção local de chá
Em 1893, Gabriel edita novo trabalho. Nele, deixa de lado os aspectos históricos, talvez por se tratar de um guia, talvez por já os ter anteriormente tratado. A parte polémica publicada na obra anterior, foi liminarmente eliminada: a que tratava de relativizar a exclusividade e preeminência do clã Canto na introdução do chá. O que é que estava em jogo? Os louros pertenceriam apenas a Ernesto do Canto ou deveriam ser distribuídos por mais gente? Gabriel achava que Ernesto do Canto não era o único. Porém, cedo terá percebido que era melhor passar ao lado do assunto: o seu objectivo era divulgar não polemizar. Interessava-lhe mais ganhar dinheiro e divulgar o assunto do que alimentar querelas inúteis.
Talvez por isso, um ano depois de publicar a última obra sobre o chá, Gabriel de Almeida, espírito prático, organizado e minucioso, com faro para o negócio, publica a sua terceira obra em dez anos dedicada ao chá. Desta vez não a denomina de manual, mas de guia. Era dirigida não apenas ao cultivador mas igualmente ao manipulador. Logo na capa, talvez a defender-se, sofrera ataques pela posição que defendera contra a hegemonia de Ernesto do Canto, declara com orgulho o seu currículo. Era: ‘membro de diversas sociedades cientificas do estrangeiro.’
Uma simples vista de olhos, indica-nos que, esta obra de 1893 será, fundamentalmente, a obra de 1892, despojada das suas duas primeiras partes. Será por isso que a intitula de guia e não manual? Aparece em formato mais pequeno e é impressa em letra mais miúda. O primeiro livro fora impresso em Ponta Delgada, este, na cidade de Lisboa. Este exemplar (o que manuseio) tem assinatura de pertença de Eugénio do Canto. Esta obra, parece ser ainda mais de uso diário: talvez por ser mais abreviada. Mantém toda a estrutura da antecedente. Inclui os mesmos modelos de folha de despesa.
Tal como na anterior, esta nova está igualmente subdividida. Para confirmar uma e outra, passo a enumerar: Cultura do chá (p. 3); Sementeira (pp. 3-4); Transplantação (p.4); Plantação (pp. 4-5); Cuidados no Cultivo (p. 5); A poda (pp. 5-7); Manipulação do chá (p.8); Colheita da folha (pp. 8-9); Preparação do Chá (pp. 9-11); Chá preto (pp. 11-16); Chá verde ( pp. 17-21); Notas da manipulação (pp. 21-30); Oficina para a manipulação do chá (pp. 31-33); Contabilidade (pp. 34-35), Modelo n. 1: Despesa com a cultura da planta do chá / 2.º ano/ 3.º ano (p.36); Modelo n.º 2 Despesa geral com a exploração da industria do chá no ano de 189…/ Cultura/ Manipulação (p.37); Modelo n.º 3 / Notas da apanha e manipulação do chá no anno de 189… e do resultado da produção. (pp.38-39). É basicamente o mesmo.
Em suma, este livro de 1893, é exclusivamente dedicado à orientação do cultivador e do manipulador. Entre 1892 e 1893, ocorreram diversas experiências particulares. Daí este novo livro? É bem provável. Havia mercado para eles.
Gabriel de Almeida, Guia do Cultivador e Manipulador do Chá, Ponta Delgada, Typo-da Revista Industrial, Commercial e Agrícola, Lisboa, 1893
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Quarto:
‘Tempo de desfrutar.’
(1895-1913)
Para este terceiro período, socorro-me de Cristóvão Moniz e de Aníbal Cabido. Partindo ambos autores, muito certamente, de observações anteriores e do conhecimento dos trabalhos já publicados, Cristóvão Moniz e Aníbal Cabido propõem mudanças. Não deixam de ser divulgadores, e bons, apesar de serem, acima de tudo, técnicos formados. Porém, a primeira História, com um incipiente levantamento das fábricas do chá existentes em 1903, é de Francisco Maria Supico.
Dois anos após a última obra de Gabriel de Almeida sair, em 1895, sai a de Cristóvão Moniz. A quinta obra, saída em 1895, intitula-se, A Cultura do Chá na Ilha de São Miguel. Naquele ano de 1895, existiam já sete fábricas, das quais, quatro ficavam na Ribeira Grande. E, dentro da Ribeira Grande, já se destacava a freguesia da Ribeira Seca, com duas, e a Conceição, com uma. No total, aquela zona do Concelho, possuía três das quatro fábricas do Concelho. Sabemo-lo por causa de uma exposição promovida pela SPAM, realizada a 18 de Maio de 1895. Entre outras indústrias, o chá. Inclusive, prováveis novas fábricas de chá, já que, sendo o chá de fácil produção, quem o cultivava em querendo produzi-lo, produzia-o . Moniz narra a vitória local do cultivo e da transformação do chá.
Em 1903, oito anos depois de Moniz, das sete fábricas que haviam iniciado a laboração entre 1878 e 1895, quantas mais abriram entre 1895 e 1903? Recorremos a Francisco Maria Supico. Proprietário e editor do jornal A Persuasão, é dele o primeiro embrião de uma História local do chá. Num inquérito informal que empreendeu, avança com dez fábricas. Mas, desde logo, adverte-nos para o facto de existirem outras de menor importância. Destas menores, porém, não nos adianta qualquer pormenor. Omitindo, ao contrário do que fará Cabido, mais tarde, o número das fábricas menores. Portanto, o número total de fábricas referido, é claramente um número que fica aquém da realidade. Até agora, temos apenas as mais importantes e as que o inquérito informal apurou. Para o mesmo ano de 1903, há, ainda, o que se poderá ser considerado um catálogo, muito sumário, circunscrito à Ribeira Grande, de Cristiano de Jesus Borges (1903) .
E quantas mais fábricas, entre 1903 e 1913? O texto é de 1913, vem num periódico, tem por título A Indústria do Chá nos Açores, e é da autoria de Aníbal Gomes Ferreira Cabido. Aníbal Cabido, faz o balanço presente e indica possíveis tendências futuro. Cabido, referindo mais de duas dezenas de pequenas fábricas, detém-se no inquérito específico de dez fábricas com alguma maquinaria, sendo uma da Ilha do Faial. Pretende aí, partindo da realidade, abrir perspectivas de melhor aproveitamento da indústria.
A) A palavra do agrónomo divulgador
Em 1895, a tecnologia do chá, pelo menos a introduzida pelos chineses, não oferecia quaisquer segredos aos locais. Comecemos pelas palavras finais, vindos na página 107, do livro de Cristóvão Moniz: ‘(…) se [o Minho ou outra qualquer parte do nosso país] intentar tão vantajosa empresa, não haverá já precisão de recorrer para tanto aos filhos do celeste Império, porque, à voz de Portugal, acudirão os – Micaelenses.’ Era, não restam dúvidas, o brioso atestado da maioridade no domínio da tecnologia do chá pelos açorianos. Cristóvão Moniz é, nas suas próprias palavras, ‘agrónomo, director da escola de viticultura Ferreira Lapa.’ Quando publica este trabalho, está a residir no continente, porém, no ano seguinte, regressaria à Ilha de São Miguel. Para saber mais sobre ele, consultámos a entrada biográfica na obra sobre os parlamentares da I República. Confirmámos: é natural da Ribeira Grande, onde nasceu a 10 de Dezembro de 1861. A parte que se segue, é nossa: era um de vários irmãos célebres na terra. Alberto Ferreira Moniz, após regressar à Ilha, estabeleceu-se como comerciante de ferragens. Ainda hoje a Loja Evaristo Lima é conhecida pelos mais antigos da terra como a loja do Sr. Alberto Moniz. O irmão Alberto, era um desses dramaturgos amadores muito aclamados localmente. Existem, nas mãos de um particular, algumas das suas obras manuscritas. Outro irmão, o padre Egas Moniz, foi Ouvidor do Eclesiástico e autor de vários trabalhos (publicados em jornais) sobre a história local. Correspondia-se com Ernesto do Canto. Conheço um interessante trabalho, a que já dei à estampa, sobre a origem toponímica das ruas da freguesia da Conceição, da Ribeira Grande .
Regressemos à entrada biográfica: Cristóvão estudou no liceu em Ponta Delgada, formando-se em Agronomia em Lisboa. Foi como agrónomo ‘subalterno’ que foi colocado, em 1887, na cidade da Horta. Dois anos depois, em 1889, viajou da Horta para Santarém, onde exerceu as funções de professor na Escola Prática de Agricultura. Foi igualmente director da Escola Prática de Viticultura de Torres Vedras e da Estação Anti-Filoxérica do Sul. Em 1896, dezassete anos após ter ido dos Açores para o continente português, vem do continente para os Açores para assumir a gerência de uma fábrica de álcool industrial. A entrada é muda a este respeito, porém, é crível que tenha exercido funções na fábrica do Álcool da sua terra natal. Estrutura, hoje a ser adaptada a Centro de Artes dos Açores. A experiência não terá durado mais do que três anos. Devido à crise da indústria regional provocada pelo proteccionismo nacional à indústria continental. Em 1899, dez anos depois, regressa de novo à função pública, agora como chefe de secção da Repartição de Serviços Agronómicos.
Em 1910, no ano da implantação da República, foi nomeado director de Patologia Vegetal. Desempenhou funções de secretário-geral do Ministro da Agricultura. Em 1911, foi eleito pelo Círculo de Ponta Delgada à Assembleia Constituinte. Fez parte do Senado nas legislaturas de 1911, 1919 (como candidato da União Republicana) e 1921, ainda em representação do Círculo de Ponta Delgada. Foi colaborador do Portugal Agrícola e de A Vinha Portuguesa.
Cristóvão Moniz subdivide o livro em cinco capítulos. Em relação às obras anteriores, é notória a introdução de uma notável inovação: ilustra a obra com gravuras. São seis gravuras, todas úteis: 1- planta do chá (p.39); 2- Poy long (p.95); 3 - Grade de bambu para a murcha das folhas (p.98); 4- Mesa para a manipulação do Chá (p. 100); 5- Posição das mãos do manipulador para formar bolo com as folhas do chá (p. 101); 6- Posição das mãos do manipulador para despegar as folhas do chá (p. 102). O impacto visual das figuras, ajudaria a perceber as descrições.
Quanto aos cinco capítulos propriamente ditos: Preliminar – Bosquejo histórico do chá e ensaio da sua cultura fora da China e do Japão (p. 5); Capítulo I – Origem, descrição botânica e climas próprios da Camellia thea: Origem, descrição botânica, climas (pp. 35-41); Cap. II – Terreno, plantio e reprodução da Camellia thea: terreno, plantio, reprodução (pp. 57-69); Cap. III – Amanhos da Camellia thea: estrumação, campinação, poda (pp. 73-81); Cap. IV – Colheita e preparação geral das folhas da Camellia thea: colheita, preparação das folhas (pp. 85-93); Cap. V – Manipulação especial do chá: Chá preto, murchidão, Torcedura, Fermentação, Exsicação, chá verde (pp.85-105).
Comparando os dois últimos trabalhos de Gabriel de Almeida com o de Cristóvão Moniz, descobre-se logo uma diferença: enquanto as obras de Gabriel registam uma técnica e uma indústria ainda algo rudimentar, a de Cristóvão, distanciada apenas dois ou três anos daquelas, regista uma técnica avançada e retrata uma indústria em plena maturidade. Que domina perfeitamente a tecnologia essencial, mas que, segundo o autor, precisaria de generalizar a modernização. A obra de Cristóvão Moniz introduz novidades técnicas: as máquinas.
Cristóvão Moniz, A Cultura do Chá na ilha de S. Miguel, Administração do Portugal Agrícola, Lisboa, 1895.
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B) A palavra a Supico: ao primeiro historiador do chá local: 1903
Como o que nasce forçosamente terá uma História para contar, o chá começou a ter História, com o seu primeiro historiador, o homem que ia recolhendo notícias e curiosidades acerca do chá na ilha e nos Açores. Não era técnico, nem industrial era um artista da palavra. Era o continental fixado há muito na Ilha, Francisco Maria Supico. Supico, segundo, Carlos Riley, seu biógrafo, nasceu na Lousã, em 1830 e faleceu em Ponta Delgada em 1911. Chegou à ilha aos 22 anos. Após ter praticado farmácia em Montemor-o-Novo e Coimbra, na década de 40, submeteu-se em Dezembro de 1851 a um exame de Farmácia na Universidade de Coimbra. Já em Abril de 1852, era admitido na Farmácia da Santa Casa da Misericórdia de Ponta Delgada. O seu primeiro trabalho conhecido foi publicado no jornal A Estrela Oriental da Ribeira Grande . Inicia as Escavações em 1895. Em 1903 publica o resultado do seu inquérito informal sobre as fábricas de chá locais: 10 fábricas maiores.
C) A palavra do engenheiro Cabido
A tecnologia fora assimilada. Em menos de trinta anos, do 2.º para o 3.º tempo, multiplicara-se o número de fábricas, aumentara a produção; havendo mesmo algumas que usavam maquinaria. Era chegado o tempo de colher os frutos.
Em 1913, já no período da primeira República, pela voz de outro autor natural da Ribeira Grande, Aníbal Gomes Ferreira Cabido, sai um novo trabalho tendo como tema o chá. Passara trinta anos sobre a primeira experiência bem sucedida da manipulação do chá. O título da obra denuncia nitidamente, para além de qualquer possível dúvida, que a indústria já não era um sonho, nem tão-pouco uma promessa, era uma realidade bem concreta.
Na linguagem seca e taxativa de alguma genealogista, Rodrigo Rodrigues diz-nos de Aníbal Cabido: ‘engenheiro, que nasceu na freguesia da Conceição da Ribeira Grande a 27.2.1856.’ Mais tarde, aos vinte oito anos de idade ‘casou a 1.7.1885.’ Fora da terra natal, ‘em S. José de Ponta Delgada (…) com Helena de Melo Manuel da Câmara (…).’ A mãe era irmã de ilustres homens da benemerência da Ilha de São Miguel: César Augusto Ferreira Cabido e Augusto César Ferreira Cabido.
O trabalho de Aníbal Cabido vem arrumado em quatro capítulos. Capítulo I: notícia histórica, origem da planta do chá em S. Miguel (pp.3-13); Capítulo II: Cultura da planta do chá, colheita e manipulação (pp. 14-23); capítulo III: Notícia sobre as principais fábricas do chá e descrição de maquinismos (pp. 23-34); Capítulo IV: Produção e seu valor, exportação (pp. 34-38).
Se os dois primeiros capítulos, poucas ou nenhumas novidades trazem, ao que já havia escrito Cristóvão Moniz ou mesmo Gabriel de Almeida, os dois últimos trazem algumas interessantes. Abre-se uma excepção para chamar a atenção para a página 21 do II capítulo, onde o autor refere a fundação em 1891 da fábrica de José do Canto, na Caldeira Velha, na Ribeira Grande. Algo que Gabriel de Almeida não fizera, mas que, se calhar, se quisesse, já poderia ter feito.
E talvez ainda mais importante, porventura mais importante para quem queira avançar nestes estudos, na mesma página, vem, em nota, uma lista bibliográfica das obras consultadas pelo autor. Entre as conhecidas, uma desconhecida, a que já nos referimos, que se encontra na Biblioteca Nacional: Morais, Joaquim M. Araújo Correia de, Manual do cultivador do chá do comércio ou resumo de apontamentos que, acerca de tão importante e fácil cultura, foram publicados no pretérito ano de 1881 por Joaquim M. Araújo Correia de Morais, 1882, Lisboa.
É incontornável consultar com vagar este trabalho de 1913 de Aníbal Cabido. É um retrato da indústria surpreendida em plena actividade. Do seu esforço de introdução de máquinas. Em três décadas, longe haviam ficado para trás (para algumas das fábricas, não todas) as técnicas introduzidas por um dos chineses ou pelas leituras dos livros de Gabriel de Almeida e de Cristóvão Moniz.
Aníbal Gomes Ferreira Cabido, A Indústria do Chá nos Açores, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1913.
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II
Aspectos gerais e contexto dos quatro tempos
O primeiro e segundo tempos (1.º 1873-1878; 2.º 1878-82), derivam quase em exclusivo do esforço associativo da SPAM. O terceiro e quarto (3.º1882-1895 e 4.º 1895-1913), derivam, com contributos diversos e pesos diferenciados, de um esforço, nem sempre concertado, entre a iniciativa privada, associativa e pública. No terceiro, de modo claro, regista-se um esforço dos privados. Aliás, já no primeiro e no segundo, se notava algum esforço isolado mas decisivo. No terceiro, nota-se ainda o esforço continuado da SPAM. No quarto, já sem a SPAM, assistência à intervenção da Junta Geral.
No quarto tempo, além do continuado esforço individual, podemos perceber dois esforços distintos. Um que se prolonga até à morte de José do Canto (1898), de Ernesto do Canto (1900) e José Maria Raposo do Amaral (em 1901), em que a SPAM desempenhou papel de relevo; outro, após o desaparecimento daquelas personagens fulcrais, em que a SPAM deixou de ter qualquer protagonismo. A partir desta altura, o Governo Civil, que, até então, actuava com a SPAM, ocupa-se da matéria. Em 1913, o trabalho de Aníbal Cabido já o reflecte. Em certa medida, mas ainda em vida da SPAM; no caso de Cristóvão Moniz.
Sem uma prova concludente, mas sendo bastante evidente, afirma-se como hipótese que a publicação dos trabalhos em apreço parece obedecer se não a uma acção concertada a uma feliz coincidência. A primeira, parte de uma iniciativa da própria SPAM, as demais, partem de iniciativas individuais. Da primeira, fazem claramente parte a reedição de Frei Leandro, o Apêndice contendo o Relatório, e o livro de Samuel Ball.
Algumas das publicações seguintes, editadas, fora do âmbito associativo da SPAM, já na esfera da iniciativa privada, parecem obedecer a um propósito de disponibilizar manuais a preços acessíveis. Comparando com as obras de Frei Leandro ou de Ball, os trabalhos de Gabriel de Almeida, em linguagem simples e escritos em português, eram bem mais fáceis e mais baratos.
A situação vista em 1843 pelo jovem José do Canto
Impõe-se explicar a razão da introdução do chá nos Açores. Começa-se por José, irmão de Ernesto do Canto. José do Canto traçou um quadro da situação agrícola da ilha de São Miguel. Em parte, o que daí resulta é devedor das análises das décadas de 80 e de 90 do século XVIII. Devedor, pois, das de José Medeiros da Costa Albuquerque, da de Francisco Borges da Silva, da de Luís Mousinho de Albuquerque, da do Morgado João de Arruda Botelho e das do próprio pai de José do Canto, o Morgado José Caetano. Porque a introdução do chá e de outras plantas agro-industriais muito devem à acção da Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense, recue-se a 1843, ano da sua fundação.
José do Canto, um dos sócios fundadores, pensava que era preciso melhorar as culturas existentes: modernizá-las. Mas tudo deveria ser feito de um modo racional. Acerca dos campos da ilha de São Miguel, escreveu em 1843: ‘(...) carecem de ser melhor adubados (...).’ E acrescentou: ‘(...) faltam-lhes convenientes abrigos contra as ventanias do inverno (...).’ Além do mais ‘(...) os utensílios da lavoura são incómodos, desperdiçam e estragam a força dos animais (...).’ Voltando-se para os gados, afirmou que ‘(...) são escassos, - mesquinhamente tratados, - desaproveitados os seus estrumes (...).’ Por isso, concluía que ‘(...) nem bastam ao consumo (...).’ As razões do desperdício dos pastos abundavam: ‘(...) são desamparados ao que a natureza quer fazer por eles (...).’ Os lavradores ignoravam ‘(...) as vantagens dos prados artificiais (…). E ignoravam igualmente os ‘(…) proveitos que das arribanas, e currais (…) se deriva (...).’ Deixavam ‘(...) degenerar as raças (...).’ Dando atenção às sementes, afirmava peremptório: ‘não [as] apuramos (…).’ Concluía: ‘dirigimo-nos enfim na difícil arte dos campos quase sempre pelo acaso (...) por antigas rotinas, raramente por mal calculadas inovações (….).’
Os culpados pelo atraso, segundo ainda José do Canto, eram dois: a escassa instrução dos lavradores e a preferência dos jovens por cursos de Direito em detrimento de cursos práticos .
José do Canto considerava que poderia ser produzido na terra muito do que a terra importava: azeite, vinho, carne, lacticínios, artefactos de linho, anil, algodão, seda, cochinilha, barrilha.
Analisando-se o retrato traçado por José do Canto, destaca-se um aspecto: os seus traços resultavam contraditórios. Por um lado, traçavam uma imagem desoladora da situação, por outro, afirmavam o seu imenso potencial.
A evolução em 1879
Avançando-se, entretanto, no tempo, o que mudara, entre Outubro de 1843, data em que José do Canto apresenta o relatório à SPAM e 1879, altura em que o chá já ocupava um lugar primordial nos projectos de desenvolvimento da SPAM (Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense)? Por uma mera coincidência, logo em 1843, a laranja começava a dar sinais alarmantes. Já não se tratava apenas da falta de um porto de abrigo ou da desmesurada concorrência entre produtores locais ou ainda da concorrência da laranja oriunda de outras paragens nos mercados britânicos, por esta altura, surgia uma das várias doenças que fustigariam os laranjais.
A laranja não era a única planta agro-industrial a ser cultivada, era uma das que mais rendimento produzia. Tenta-se melhorar a qualidade do trigo, do milho e do gado. Este último, já não apenas destinado a auxiliar nos trabalhos agrícolas, mas já também como fonte de produção de carne e de lacticínios. Regista-se, ainda, uma constante tentativa em introduzir novas espécies agro-industriais. Em 1879, quando se prova o interesse industrial do chá na ilha, já anteriormente se havia apostado fortemente no cultivo e na transformação do linho, do tabaco, do ananás, das carnes, e da florestação. O chá é, por conseguinte, uma das apostas, não a única aposta.
Para se ver melhor de 1873 por diante, recuemos ao tempo do início da aposta do chá: 1873. Em 1873, mediante proposta de Ernesto do Canto, a SPAM decidiu testar o potencial económico da cultura do chá em São Miguel. Para avaliar a proposta com justeza, refira-se que a ideia do chá não é exclusiva ou sequer prioritária nos projectos de Ernesto do Canto. Posto isto, acrescente-se que, a Assembleia-Geral daquela sociedade agrícola, votou na mesma assembleia uma verba para a realização de experiências e a contratação de quem viesse de fora ensinar a sua manipulação.
Apesar de já existirem plantas de chá na ilha, em 1874 ou em 1875, a SPAM, directamente ou através de sócios, mandou cultivar campos experimentais de chá. Três ou quatro anos depois, em 1878, como se aconselhava (entre três a quatro anos após o seu cultivo) as folhas foram colhidas e os chineses contratados manipularam a sua transformação. Para ‘assistir’ aos trabalhos, a SPAM nomeou uma comissão. E encarregou o seu secretário, Rafael de Almeida, irmão mais velho de Gabriel de Almeida, de seguir atentamente tudo o que se passava. Era uma maneira de aprender.
Da comissão faziam parte, Caetano de Andrade Albuquerque, Luís do Canto Falcão, José Maria da Câmara Coutinho Carreiro de Castro, Manuel Botelho de Gusmão, José Maria Raposo do Amaral Júnior e Ernesto do Canto. Ernesto do Canto foi nomeado relator da comissão.
Graças à sua idade, a esmagadora maioria não pudera fazer parte do núcleo fundador da SPAM. No entanto, era claramente influenciada pelos ensinamentos dos pioneiros. Caetano teria trinta e três ou trinta e quatro anos em 1878, mas em 1843, quando a SPAM foi fundada, ainda nem era vivo; Luís muito menos ainda, pois, em 1878, tinha vinte seis ou vinte e sete anos, José Maria da Câmara Coutinho Carreiro de Castro, se se trata do filho e não do pai, teria no máximo cinco anos, de Manuel Gusmão ainda nada sei, José Maria Raposo do Amaral Júnior, teria uns vinte e dois anos, mas não era nascido quando se funda a SPAM. O relator, Ernesto do Canto, era o mais velho dos membros da comissão, tendo à data da fundação da SPAM, onze para doze anos.
A década em que se lança os alicerces da indústria do chá, é também uma década de grave crise económica e social: o colapso da vinha e da laranja eram realidades nuas e cruas. A este propósito, registe-se que no mesmo ano em que se iniciava a experiência do chá, saiu do porto de Ponta Delgada, com destino às ilhas Sandwich (hoje Hawai), um navio com gente que procura melhorar a sua sorte. De uma maneira ou de outra, a crise foi usada como oportunidade.
Alguns dos que ficaram na terra, procuraram alternativas. Ao lermos as páginas dos dois periódicos da SPAM, O Agricultor Michaelense e O Almanach Rural, reconhece-se um propósito. O mesmo se reconhece ao consultarmos O Cultivador. Pretendia-se promover a melhoria de culturas existentes e a introdução de novas. O chá entra nesta desejo.
III
Súmula final
Aos que desconhecem a História do chá nos Açores, pode parecer exagero, mas é correcto afirmar-se que a tecnologia essencial do chá foi dominada pelos locais logo em 1879. Dos autores aqui tratados, um era brasileiro, outro era britânico, outro era continental mas radicara-se há muito na ilha, quatro eram naturais da ilha de São Miguel, dos quais, dois eram filhos da Ribeira Grande e dois de Ponta Delgada. Destes, quatro haviam recebido formação superior. Frei Leandro estudara Filosofia em Coimbra, mas especializara-se interessara-se pela botânica. É a partir do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, onde trabalha, e do que lá vê e faz, que escreve o seu manual. Ernesto do Canto formou-se também em Filosofia em Coimbra, mas interessou-se pelos assuntos da terra. Ball residiu na China de 1804 a 1826, aproveitou a estadia oficial para observar a cultura do chá na China. O livro saiu em 1848, vinte e dois anos depois de ter terminado a sua estadia oficial na China. Gabriel de Almeida era um diletante auto-didacta com faro para o negócio. Que escrevia bem. É um bom divulgador. Parece proceder do grupo influenciado directamente por Castilho. Escreve sobre a estadia de Castilho em S. Miguel. Talvez ainda devedor do que aprendeu com o irmão Rafael Almeida e com outros ligados à SPAM. As suas obras parecem ter desempenhado um importante papel no arranque da indústria do chá. Quando Lau-a-Pau empreende as primeiras experiências bem sucedidas de manipulação de chá preto na ilha, Gabriel tem doze ou treze anos. E tem apenas dezassete quando escreve o seu primeiro trabalho sobre o chá. No tempo de Lau-a-Pau, Cristóvão Moniz, nascido em 1861, é ainda um adolescente de dezasseis ou dezassete anos. Todavia, quando escreve o seu trabalho, aos trinta e três para trinta e quatro anos, havia adquirido vastos conhecimentos e bastante experiência. Poderá ter, eventualmente, conhecido localmente as iniciativas do chá. Sendo micaelense, da Ribeira Grande, onde se concentrava ou viria a concentrar a maior parte da indústria, nada mais natural querer aprofundar e transmitir os seus conhecimentos? Pode ser que sim. Aníbal, em 1879, teria 23 anos, idade para se interessar ou até não pelo que se passava na sua terra. Pode ter adquirido mais tarde o gosto. Escreve o seu livro aos cinquenta e seis, cinquenta e sete anos, no fim da sua curta vida. O que diferencia Aníbal e Cristóvão, dos anteriores? José do Canto em 1843 no ‘Para que serve uma Sociedade de Agricultura’ lamentava o facto de os jovens não escolherem agronomia. Em 1852, com novos estabelecimentos de ensino superior, abria-se a porta a quem desejasse seguir carreira em agronomia . E Aníbal e Cristóvão aproveitaram. Convém não esquecer ainda quatro figuras: António Feliciano de Castilho, foi quem primeiro lançou a hipótese nas páginas de O Agricultor Micaelense do cultivo do chá; Guilherme Read Cabral foi, sobretudo nas páginas de O Cultivador, o primeiro grande publicista do chá na fase da preparação da vinda dos práticos. Francisco Maria Supico foi o seu grande e primeiro historiador. E, por último mas não o último em importância, Edmond Goeze, com quem José do Canto se correspondia, e cujos trabalhos foram usados em várias fases da História do chá.
A terminar: como a querer sublinhar a importância, repetindo o que já foi dito: a tecnologia fora assimilada, era tempo de colher os frutos.
Mário Moura
Ribeira Grande
17 de Dezembro de 2013