O fardo do soldado
Já lutei tantas batalhas na fronteira que perdi a conta.
Não sinto nem um pouco de saudade do chamado da luta que começava lá no fundinho da cabeça quando acordava, baixo, mas certo. A sensação de que não há escapatória: ou vai à guerra, ou a guerra vem até você. As tentativas desesperadas de adiar o recrutamento através do sono, dormindo, dormindo, dormindo, sabendo que acordaria em plena trincheira. O tédio beirando o nojo de quem se propõe a ajudar, como idiotas dos Direitos Humanos com palavras bonitas sobre soldados na guerra quando o mais próximo que chegaram de uma é pelo Call of Duty (antes de estabelecerem que jogos violentos incitam a truculência).
“Eu não quero ajuda”
Eu destruía quem me amava e era destruída por quem amava. E nunca eram as mesmas pessoas. Separava as pessoas em dispensáveis e necessárias – e estas eram literalmente necessárias, como se não fosse conseguir sobreviver sem elas, meu ar, meu fogo. E para ser indispensável, teria de ser narcisista, problemático e me fazer mal.
Alternava momentos de vazio em câmera lenta ajoelhada no chão do banheiro com o chuveiro ligado ou encolhida na cama no escuro com a glória de me sentir a protagonista suprema do maior espetáculo da Terra, a melhor, a mais inteligente, mais rápida, mais forte, mais bonita, mais honesta, mais abençoada. A quem todos perdoariam porque todos amavam.
Por um bom tempo, todos me perdoavam, pois realmente era muito amada. Mas aos poucos eu os apaguei com minha carabina, um a um, e logo só os razoavelmente leais continuaram correndo ao meu lado. Os mais fiéis, sendo mais próximos, foram muito feridos e precisaram tomar a decisão dolorosa de partir ou morrer. Quem não se importava nem um pouco – os tais indispensáveis – conseguia escapar ileso.
Não se vence uma guerra sem baixas.
“As coisas só parecem estúpidas pra mim”
As coisas não mudaram, o mundo continua o mesmo, mas antes eu o via com olhos entediados cheios de vontade de mudar. Hoje eu faço parte do sistema. Hoje eu sou uma das coisas estúpidas, uma na multidão, só mais uma jovem-adulta-com-futuro-promissor que dorme cedo e acorda cedo, vai pra academia pra perder a barriga que ganhou com o sedentarismo e a rotina medíocre, assiste o jornal e a novela antes de deitar e tem preguiça de fazer algo que não esteja nos planos e ri amarga de quem resgatou os beagles ou do rei do camarote junto com o resto do país. Uma adultinha.
Os remédios deram certo, a terapia me fez bem, sou um milagre da psicologia. De limítrofe psicótica a um robozinho em apenas dois meses. Comprem drogas controladas de tarja preta, eu recomendo!
“Pra mim seria ótimo me isolar e viver num paraíso”
Uma vez soldado, para sempre soldado.
Não se tem borderline ou está borderline ou era borderline. Eu sou borderline. E o fardo do soldado é a nostalgia de dias difíceis, infernais, que ele preferiria não ter vivido, logicamente – mas, já que viveu, não pode apagar as lembranças que surgem e gritam e chamam.
Só se pode esperar voltar à guerra, e a esperança de retornar vem a cada estalo, a cada grito, a cada sinal que seja o gatilho de uma recordação dos tempos da guerra – a guerra que eu venci, que eu amaldiçôo, mas de que sinto tanta falta.
A guerra faz uma pessoa sentir-se útil. E deixa veteranos traumatizados e sequelados para lidarem sozinhos com o vazio e a falta do que fazer na paz. Gente que ninguém quer perto, gente julgada pelos padrões de quem não lutou, gente considerada atrasada e preguiçosa, gente estranha.
Talvez eu volte para a marcha. Talvez esse seja um período de trégua temporária. Talvez amanhã mesmo eu volte a fazer pontaria e correr e berrar, e rezar para acabar logo, quem sabe?
Eu tenho o coração de soldado.