CAPÍTULO XVII- A VEZ DE NOGARET
A notícia da morte do Papa Clemente V pegou de surpresa toda a cristandade. Principalmente em Paris, onde o rei, ainda digerindo as conseqüências da supressão da Ordem do Templo, procurava administrar as vozes que se ergueram contra a execução dos seus comandantes, especialmente o Grão-Mestre Jacques de Molay, que, mais não fosse o primeiro mandatário de uma respeitávável Ordem de cavalaria, era um fidalgo, um nobre, um respeitável soldado, que havia prestado importantes serviços á causa da cristandade.
Essas vozes vinham principalmente da Borgonha, onde Jean de Longwy, primo de Jacques de Molay, Grão-Mestre da poderosa compagnnonage,a poderosa confraria dos pedreiros-livres de França, estava organizando uma liga de barões, que segundo as informações que lhe haviam chegado, tinha por objetivo recuperar as prerrogativas dos senhores feudais, que Filipe, o Belo, havia suprimido.
Filipe sabia que muita dor de cabeça poderia advir dali. Se Longwy conseguisse a adesão do baronato á sua causa, esse poder, mais o que ele já detinha como líder dos maçons, tudo começaria novamente. A supressão da Ordem do Templo, pela qual ele lutara durante sete anos, de nada adiantaria, pois uma nova organização, talvez até mais forte que a dos templários, pois que circunscrita apenas á França, e lutando especificamente para a realização de objetivos políticos, seria, talvez, até mais perigosa que o Templo.
A par disso, o Papa lhe escrevera dando conta da sua desaprovação á sentença de morte, prolatada contra os altos digantários do Templo. Não era esse o desfecho que o Papa esperava, dizia a carta. Sua Santidade contava com o fato de, tendo concordado que os bens do Templo fossem adjudicados ao Hospital de São João, e que este se comprometesse a ressarcir o tesouro francês de todas as despesas com o processo e a manutenção dos acusados durante o tempo em que ele durou, o rei tivesse ficado satisfeito e não exigisse as vidas dos mandatários da Ordem. As despesas, segundo o ministro Enguerrand, eram maiores do que os bens confiscados á Ordem. Em conseqüência, o Hospital ainda tivera que devolver á coroa francesa uma grande soma, ao invés de receber alguma coisa.Que mais Filipe queria?
O Papa acreditara que o móvel de Filipe, ao investir contra o Templo era apenas o desejo de apropriar-se de suas riquezas. Mas o objetivo do rei ia bem mais longe. Tratava-se, principalmente, de uma questão política. Ele havia mitigado o poder dos nobres, sufocado o poder do clero, reduzido a quase nada a capacidade de articulação dos prebostes e das organizações da sociedade civil e abafado, com violência, toda e qualquer oposição ao seu projeto de um estado nacional, submetido unicamente ao poder real. A última fortaleza a ser conquistada nessa verdadeira guerra de unificação era exatamente o Templo. Realizado o seu intento, ele não poderia deixar vivos os grandes dignatários da Ordem. Mesmo preso, definhando numa masmorra, a figura de Jacques de Molay ainda era suficientemente poderosa para suscitar idéias que precisavam ser definitivamente seputadas.
Idéias como aquelas que sustentavam os idéais da cavalaria, por exemplo. Ideais que faziam dos nobres, dos cavaleiros, verdadeiros potentados, que só formalmente deviam obediência ao rei. Ideais que levavam qualquer baronete a promover verdadeiras guerras civis por simples questões de divisas, ou suposta honra ofendida, ou por mera cobiça, como era aquela questão que se arrastava, já há mais de dez anos, entre membros de sua própria família, sua prima, a condessa Mafalda de Borgonha e seu sobrinho Roberto, pela posse do condado de Artois.
Filipe sabia que sua decisão em mandar queimar os altos dignatários do Templo não tinha sido aceita com unaminidade nem no seu próprio conselho. Seu irmão Carlos, o poderoso conde de Valois, tinha sido contra todo o processo contra a Ordem e criticara veementemente a decisão que levara Jacques de Molay e o preceptor da Normandia, Geoffroy de Charney á fogueira. No seu próprio Conselho, formado pelos pares de França, havia severas fraturas, especialmente entre Carlos de Valois e seu ministro Enguerrand de Marigny,que não se suportavam, e não fosse o fato de o rei estar entre eles, com certeza acabariam se matando num ordálio.
Vivia-se em uma época de superstições e crendices, onde o medo do inferno era a principal arma dos clérigos para manter na linha o povo ignorante. E o temor das bruxarias e dos sortilégios constituia um terror constante a assombrar o espírito daquela pobre gente. A morte do Papa, dada a forma que ocorrera logo excitou a imaginação popular. Se ele fora envenenado, como muita gente logo se pôs a dizer, por que seu escudeiro, que provara a comida e bebida que lhe fora servida em Roquemaure, não morrera também? Poucos atentaram para o fato de que o escudeiro somente provara o vinho e o Papa efetivamente bebera a jarra inteira. O escudeiro tivera uma pequena dor de barriga, que foi resolvida com um purgante. Nem a imediata prisão do condestável de Roquemaure, e a dolorosa tortura a que foram submetidos todos os empregados do castelo, que cuidaram da preparação da ceia papal, trouxe qualquer esclarecimento para o caso. Messier Jean du Pré, o misterioso vinhateiro havia desaparecido. Ninguém conseguiu encontrá-lo ou dar qualquer notícia de seu paradeiro. Era como se nunca tivesse existido. Além disso, todo o vinho que ele trouxera foi exaustivamente examinado. Nada foi encontrado de estranho na sua composição. Era, efetivamente, uma partida dos melhores vinhos fabricados nas Côtes du Rhone.
Daí não foram poucos os que acreditaram, desde logo, que a maldição lançada por Jacques de Molay sobre o Papa, o rei, sua famíla e seu ministro Nogaret, começara a ser cumprida imediatamente. Assim começam as lendas.
Não era só a morte do Papa, em circunstâncias misteriosas, que preocupava a mente de Filipe, o Belo, naquele começo do mês de maio de 1314. Nem bem as cinzas do Grão-Mestre e do preceptor da Normandia, Geoffroy de Charney, tinham sido dispersas pelo vento que soprava do Sena sobre a Ilha dos Judeus, onde eles haviam sido queimados, e o rei já estava a braços com um grande problema de família, que viria não só trazer-lhe uma profunda infelicidade como pessoa, mas principalmente acarretaria uma grande dificuldade para a sucessão da sua linhagem, como soberanos do reino de França.
Essas dificuldades provinham do escândalo provocado pelas suas duas noras, Branca de Borgonha, esposa do seu filho caçula, Carlos de França, que mais tarde se tornaria o rei Carlos IV, e Margarida de Borgonha, esposa de seu filho Luís, que se tornaria rei com o título de Luis X. Essas duas princesas, ambas filhas da condessa Mafalda de Borgonha, tinham sido apanhadas em franco adultério com dois irmãos, os senhores de Aunay, Gautier e Felipe, que eram escudeiros de seus respectivos maridos. Julgadas por um tribunal composto pelo rei e seus ministros, elas foram aprisionadas e jogadas em uma masmorra. Assim começaram as desditas do rei Filipe, o Belo. Tudo faria parte da maldição lançada sobre sua família?
Mas as agruras do rei estavam apenas começando. Em fins de maio de 1314, foi a vez do seu fiel ministro Guilherme de Nogaret. Esse homem tinha sido o seu braço direito na disputa contra o Papa Bonifácio VIII e no processo de destruição da Ordem do Templo. Desde os seus primeiros anos de reinado, em 1286, Nogaret fora seu principal aliado na luta que ele travara contra o Papa Bonifácio VIII, e o grande articulador de sua política de estado. Com sua natural competência para manipular leis e gerar fatos políticos que colocavam os adversários do rei em situações incortonáveis, Nogaret havia ajudado Filipe a eliminar, um a um, os inimigos do estado que ele havia se proposto a construir.
Nogaret tinha sido aluno de Pierre Flote, o grande jurista. Fora, antes de ser chamado por Filipe para a chancelaria real, juiz e professor de direito. Era, antes de tudo, anticlericalista por natureza. Ele era exatamente o que Filipe precisava para ajudá-lo na sua luta para reduzir os poderes dos barões do reino e colocar a Igreja sob a sua tutela.
A política praticada por Nogaret levara o rei Filipe a um conflito com o Papa Bonifácio VIII, em 1302, quando este resistiu aos decretos reais que impunham taxações sobre as rendas da Igreja. O conflito evoluiu de tal maneira, que o próprio Nogaret acabou chefiando uma expedição contra o Papa, acabando por fazê-lo prisioneiro em sua residência, em Agnani, no incidente que recebeu o nome dessa cidade. O Papa seria libertado mais tarde pelos próprios habitantes de Agnani, mas desse incidente resultara a excomunhão de Nogaret e dos aliados italianos de Filipe, problema que só seria contornado depois, em 1312, quando da dissolução da Ordem do Templo, em virtude do acordo feito com o Papa Clemente V.
Assim, durante a maior parte do reinado de Filipe, Guilherme de Nogaret tinha sido o seu maior apoio. Seus conhecimentos de jurista e suas habilidades de estadista tinham sido muito bem aproveitadas pelo rei. E muito bem recompensadas também, pois Filipe fizera dele o Chanceler real em 1307, o cargo de maior poder na França.
Odiado por muitos, temido por todos, Nogaret era a verdadeira personalidade por trás do trono. Fora ele que, juntamente com Enguerrand de Marigny, organizara as finanças do reino. Para isso, além de taxar as rendas da Igreja e atraír a ira do Papa, atiçara ainda mais o rei contra os templários, visando, principalmente, o confisco dos bens da Ordem. Com tudo isso, adquiriu muito poder, mas também uma boa dose de inimigos.
Nogaret era um homem forte, beirando os cinqüenta anos, e ninguém, em sã consciência, acreditaria que fosse morrer cedo, de causas naturais. Nem era dado á superstições. Anticlericalista por natureza, odiava a Igreja de Roma e tudo fizera para que o seu poder, em França, fosse reduzido ao mero serviço burocrático que o clero prestava, em razão da sua própria estrutura, mais eficiente e organizada que o próprio aparelho do estado.
Nogaret trabalhara a vida inteira, enquanto jurista, senescal, e depois ministro plenipotenciário do rei, para anular o poder da Igreja e substitui-la pelo poder do Estado. Por isso não poupara esforços para transformar o Papa em um refém do rei, e lutara para que em todas as dioceses do reino, os bispos fossem aliados do rei, ao invés de obedecerem ao Papa. Conseguira isso com a eleição de Clemente V, o Papa francês, que se encastelara em Avignon, tirando a corte papal de Roma, se colocando, praticamente, sob a influência do mrei da França.
Seu ódio pela Igreja e pelo clero era uma coisa entranhada. Diziam que ele tinha raízes históricas. Pois segundo seus inimigos, Nogaret, oriundo da região do Languedoc, era descendente de uma família de cátaros, e seus antepassados, na pessoa do seu avô e provavelmente seus pais, haviam sido queimados como hereges. Nunca se comprovou se isso era um fato verdadeiro, ou se eram coisas inventadas pelos seus inimigos, mas o caso é que Nogaret tinha tão pouco respeito pela Igreja quanto por suas instituições. Por isso, o mesmo ódio que votava ao Papa e seus bispos, ele também o dedicava ás Ordens monacais, entre elas a Ordem do Templo. Justificava-se, dessa forma, o empenho com que ele havia trabalhado para extingui-la e mandar seus membros para a fogueira.
Jacques de Molay, em sua pira de morte, também havia se referido expressamente a ele, Guilherme de Nogaret. A maldição que o moribundo ancião, em meios ás chamas que o consumia, havia lançado, foram explicitamente contra o rei, sua família, o Papa e a ele próprio. Nogaret era um homem que se acreditava livre de superstições. Não obstante, não conseguia evitar o mal estar que o atingia quando passava em frente à catedral de Notre Dame e olhava para aquelas estranhas figuras de gárgulas, vampiros e carrancas que ornavam o frontispício do majestoso templo. E sempre que o fazia não conseguia evitar a palavra que lhe vinha á cabeça: Baphomet! Que diabos significava esse nome? Nogaret, um jurista respeitado, tinha uma mente científica, que só se ocupava de assuntos pragmáticos. Embora em suas articulalões para causar a perda dos templários ele tenha se valido dos próprios venenos que a Igreja aplicava contra seus inimigos, ou seja, acusações relacionadas com bruxaria, feitiçaria, heresia e outras baboseiras, como as colocava, ele mesmo não acreditava em nada disso. Ah! como ele sonhava libertar a França de tudo isso, dessa Igreja corrupta, desse clero ignorante, dessa estrutura de medo, intolerância, superstição e miséria, que a Igreja de Roma espalhara pelo mundo cristão. Nem que tivesse que usar contra ela os mesmos métodos que a Igreja usava para manter o seu poder sobre o povo. O poder do medo, o terror do inferno, as tenases da Inquisição.
No entanto, aquelas carrancas no fronstispício da Igreja de Notre Dame o incomodavam. Por que será que os mestres maçons, os chamados “pedreiros do Bom Deus” teriam colocado ali aquelas figuras demoníacas, que tinham muito mais a ver com a fauna do inferno do que com a visão do paraíso? Onde estaria a lógica daquela estranha perversão, que parecia estar mais de acordo com uma mente alinhada com o mundo das trevas, do que com o território da luz, para onde a Igreja deveria conduzir seus fiéis?
Ah! Os templários. Seriam mesmos adoradores do demônio, como ele fez tanta força para fazer a opinião pública acreditar que fossem? Teriam eles dominado aquela estranha ciência, que se chamava alquimia, cujos praticantes afirmavam serem capazes de fabricar ouro e produzir filtros e elixires que podiam causar a morte de uma forma imperceptível ao melhor dos médicos? E que também podiam prolongar a vida de uma pessoa indefinidamente? Teriam envenenado o Papa Clemente V de uma forma imperceptível, misteriosa, subreptícia, que nem mesmo os médicos do Sumo Pontífice, sabidamente, os mais competentes do reino, não conseguiam detectar?
Ah! Fabricar ouro até que seria bom, pensava Nogaret, enquanto sua carruagem se afastava da praça de Notre Dame e se aproximava do palácio real. Poderia, com isso, encher as burras do tesouro real sem ser obrigado a recorrer a medidas impopulares, como aumentar as taxas sobre as licenças de comércio, as rendas dos cidadãos, a moagem de trigo, a venda de produtos horti-fruti-granjeiros, como tinha sido feito recentemente e provocara a revolta dos cidadãos. Aumentar as imposições tributárias sobre as servidões feudais e sobre as rendas da Igreja sim, isso lhe dava até prazer em encontrar cada vez mais motivos para fazê-lo, mas o povo, se pudesse, ele o aliviaria, pois o povo não tinha culpa de viver nesse tempo de ignorância,, maldade e violência. Nogaret era homem do povo e nascera do povo. Tornara-se grande por seus próprios méritos. Não corria em suas veias uma única gota de sangue nobre. Tinha nascido burguês e continuava burguês, apesar dos títulos de nobreza conquistados. Se não existisse o direito feudal. Se não existisse o direito canônico. Fabricar ouro. Se isso fosse possível...
Essa, precisamente tinha sido, até então, a ocupação de mestre Everardo de Evreux. Alquimista praticante, sua fama de bruxo já o acompanhava desde que saira do condado que lhe emprestava o nome, para evitar ser envolvido em um processo por bruxaria, que lhe havia sido movido pelo bispo local. Ingressara na Ordem do Templo, onde a sua condição de letrado logo lhe granjeara facilidades numa organização onde a maioria de seus líderes era analfabeta. Na sua condição de alquimista, trabalhava para a Ordem do Templo, decifrando pergaminhos, fabricando elixires e remédios que os monges guerreiros geralmente precisavam, ao mesmo tempo em que perseguia o sonho de todo adepto, que era a obtenção da pedra filosofal.
Amigo pessoal de Jacques de Molay e dos principais dignatários da Ordem do Templo, para mestre Everardo, a prisão e condenação dos seus protetores, juntamente com a extinção da Ordem trouxera, novamente, o problema da clandestinidade. Até então, sob a proteção do Templo, pudera praticar a sua arte sem empecilhos. Sob uma capa de mistério, a Ordem mantinha laboratórios de prática alquímica, onde os iniciados nessa estranha ciência, organizados sob um rígido sistema iniciático, trabalhavam religiosamente na procura da pedra filosofal. Esse tinha sido mais um dos segredos que os templários tinham trazido do Oriente, adquirido na sua interação com árabes. Com a prática da alquimia, os templários haviam evoluído na arte de fabricar armamentos, pois o aço obtido em seus laboratórios era mais duro do que o comumente fabricado nas forjas européias. Tinham obtido também consideráveis avanços na arte da tanoaria, pois a descoberta de novos ácidos permitia a curtição de couros com mais qualidade e produtividade. Além disso, o estudo da geometria, da matemática e das artes antigas, especialmente dos caldeus e dos egípcios, que lhes foram transmitidas através dos mestres sarracenos, fizera avançar de tal maneira a ciência da metalurgia, arquitetura e das indústrias em geral, que os chamados “homens dos templários” estavam entre os mais hábeis artesãos e profissionais da Europa. Fora essa habilidade, aplicada á indústria, paralelamente á extraordinária capacidade que seus monges desenvolveram para administrar bens e dinheiro, que fizeram da Ordem do Templo a potência econômica, política e militar que tanto incomodava Filipe, em sua luta para assumir o poder absoluto em França.
Mestre Everardo tivera a sorte de não ser implicado, de maneira fatal, nas acusações de heresia e outros crimes que foram imputados aos templários. Não obstante, fora brutalmente torturado e tivera uma perna irremediavelmente mutilada no cavalete de tortura. Por isso coxeava de uma forma estranha, provocando comentários maldosos por onde passava. Todo coxo era bruxo, diziam. Isso o irritava de tal forma, que seu ódio pelas pessoas que fizeram aquilo com ele era o único sentimento de que ainda era capaz. Mas conseguira convencer aos inquisidores que não tinha nada a ver com as acusações que estavam sendo feitas aos Irmãos do Templo, pois ele era um dos “homens dos templários”, ou seja, um profissional a serviço da Ordem e não um cavaleiro templário, que participava dos “segredos” atribuídos aos iniciados. Era exatamente o contrário, mas os ignorantes prelados que faziam a inquisição não tinham a menor idéia das coisas com as quais estavam lidando. Se soubessem, não seria os cavaleiros do Templo que eles teriam que mandar para a fogueira. Ah! Se soubessem dos segredos que existiam naquelas estranhas garatujas dos livros que ele lia. Se soubessem dos poderes que continham aqueles pós que eles manipulavam...
A quem mestre Everardo de Evrex odiava mais? Certamente que o rei Filipe e o Papa Clemente, os responsáveis por tudo aquilo. Mas ele sabia que seu ódio, dirigido áquelas figuras, era ambicioso demais. Nunca conseguiria chegar próximo o bastante do rei para “temperar” o seu vinho com um pouco de “ serpente de Faraó, como mestre Jean du Pré fizera com o Papa. Sabia, no entanto, que Messier Nogaret se abastecia de tintas com um fornecedor da rua Boudornnais, que por sinal comprava do seu laboratório a matéria prima com a qual fabricava as tintas. Tinha conhecimento de que certas matérias primas, como o orpimento, o sulfato de chumbo e o nitrato de prata, o cinábrio, o fel do fígado do boi, a cola de peixe, etc. eram ingredientes usados naquelas tintas que Nogaret, em seu ofício de Ministro e principal redator dos decretos e comunicados do rei, usava. Esses materiais eram extremamente tóxicos e um pouquinho mais disso do que daquilo, uma dose a mais de sulfato de chumbo, uma pitada a mais de cinábrio, ou de ácido tânico, e eis um veneno que, posto diariamente sob o nariz de alguém, levaria a sua miserável alma para o inferno em poucos dias.
Guilherme de Nogaret morreu em fins do mês de maio de 1314, exatamente trinta e três dias depois da morte do Papa Clemente V, que sua vez morrera também exatamente trinta e três dias depois da morte de Jacques de Molay, consumido pelas chamas purificadoras que Filipe mandara acender na Ilha dos Judeus para queimar os altos dignatários do Templo.
Sua morte não tinha sido muito diferente da do Papa, disseram as pessoas que o assistiram em seu leito de morte. Primeiro ele sentiu uma vertigem enquanto participava de uma reunião dos pares de França, que tratava de aspectos relativos à sucessão do Papa Clemente V. Suas pernas travaram, como se ele tivesse sido acometido de uma crise de câimbras. Levado imediatamente para um aposento no castelo real, começou a vomitar as tripas. Logo o vômito começou a trazer um sangue pisado e de cheiro nauseabundo, que não deixava dúvidas que de que algum veneno muito poderoso estava agindo nas entranhas do ministro. Os médicos tentaram de tudo. Sangraram-no o quanto puderam, para tirar aquilo que pensavam ser o sangue contaminado, e tentaram todos os elixires possíveis e conhecidos. Fizeram-no até engulir pó de esmeraldas moídas. Mas nada adiantou. Nogaret morreu ao cabo de dois dias, depois de escarrar todo o sangue que tinha no corpo. Enquanto se transformava numa múmia em vida, delirava e gritava como um possesso:
– A fogueira não! Por favor, Majestade! Eu fiz o que fiz para servir-vos! - - Jacques de Molay, eu vos amaldiçôo... Foram as últimas palavras de Guilherme de Nogaret, o homem que tornara possível a Filipe a extinção da Ordem do Templo. Todos, naquele quarto, que assistiram a agonia do poderoso Chanceler real e seu último suspiro tinham suas testas franzidas e uma pergunta nos olhos. Será?
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Da obra " Os Filhos da Viúva"- A Conspiração dos Templários, no prelo.
A notícia da morte do Papa Clemente V pegou de surpresa toda a cristandade. Principalmente em Paris, onde o rei, ainda digerindo as conseqüências da supressão da Ordem do Templo, procurava administrar as vozes que se ergueram contra a execução dos seus comandantes, especialmente o Grão-Mestre Jacques de Molay, que, mais não fosse o primeiro mandatário de uma respeitávável Ordem de cavalaria, era um fidalgo, um nobre, um respeitável soldado, que havia prestado importantes serviços á causa da cristandade.
Essas vozes vinham principalmente da Borgonha, onde Jean de Longwy, primo de Jacques de Molay, Grão-Mestre da poderosa compagnnonage,a poderosa confraria dos pedreiros-livres de França, estava organizando uma liga de barões, que segundo as informações que lhe haviam chegado, tinha por objetivo recuperar as prerrogativas dos senhores feudais, que Filipe, o Belo, havia suprimido.
Filipe sabia que muita dor de cabeça poderia advir dali. Se Longwy conseguisse a adesão do baronato á sua causa, esse poder, mais o que ele já detinha como líder dos maçons, tudo começaria novamente. A supressão da Ordem do Templo, pela qual ele lutara durante sete anos, de nada adiantaria, pois uma nova organização, talvez até mais forte que a dos templários, pois que circunscrita apenas á França, e lutando especificamente para a realização de objetivos políticos, seria, talvez, até mais perigosa que o Templo.
A par disso, o Papa lhe escrevera dando conta da sua desaprovação á sentença de morte, prolatada contra os altos digantários do Templo. Não era esse o desfecho que o Papa esperava, dizia a carta. Sua Santidade contava com o fato de, tendo concordado que os bens do Templo fossem adjudicados ao Hospital de São João, e que este se comprometesse a ressarcir o tesouro francês de todas as despesas com o processo e a manutenção dos acusados durante o tempo em que ele durou, o rei tivesse ficado satisfeito e não exigisse as vidas dos mandatários da Ordem. As despesas, segundo o ministro Enguerrand, eram maiores do que os bens confiscados á Ordem. Em conseqüência, o Hospital ainda tivera que devolver á coroa francesa uma grande soma, ao invés de receber alguma coisa.Que mais Filipe queria?
O Papa acreditara que o móvel de Filipe, ao investir contra o Templo era apenas o desejo de apropriar-se de suas riquezas. Mas o objetivo do rei ia bem mais longe. Tratava-se, principalmente, de uma questão política. Ele havia mitigado o poder dos nobres, sufocado o poder do clero, reduzido a quase nada a capacidade de articulação dos prebostes e das organizações da sociedade civil e abafado, com violência, toda e qualquer oposição ao seu projeto de um estado nacional, submetido unicamente ao poder real. A última fortaleza a ser conquistada nessa verdadeira guerra de unificação era exatamente o Templo. Realizado o seu intento, ele não poderia deixar vivos os grandes dignatários da Ordem. Mesmo preso, definhando numa masmorra, a figura de Jacques de Molay ainda era suficientemente poderosa para suscitar idéias que precisavam ser definitivamente seputadas.
Idéias como aquelas que sustentavam os idéais da cavalaria, por exemplo. Ideais que faziam dos nobres, dos cavaleiros, verdadeiros potentados, que só formalmente deviam obediência ao rei. Ideais que levavam qualquer baronete a promover verdadeiras guerras civis por simples questões de divisas, ou suposta honra ofendida, ou por mera cobiça, como era aquela questão que se arrastava, já há mais de dez anos, entre membros de sua própria família, sua prima, a condessa Mafalda de Borgonha e seu sobrinho Roberto, pela posse do condado de Artois.
Filipe sabia que sua decisão em mandar queimar os altos dignatários do Templo não tinha sido aceita com unaminidade nem no seu próprio conselho. Seu irmão Carlos, o poderoso conde de Valois, tinha sido contra todo o processo contra a Ordem e criticara veementemente a decisão que levara Jacques de Molay e o preceptor da Normandia, Geoffroy de Charney á fogueira. No seu próprio Conselho, formado pelos pares de França, havia severas fraturas, especialmente entre Carlos de Valois e seu ministro Enguerrand de Marigny,que não se suportavam, e não fosse o fato de o rei estar entre eles, com certeza acabariam se matando num ordálio.
Vivia-se em uma época de superstições e crendices, onde o medo do inferno era a principal arma dos clérigos para manter na linha o povo ignorante. E o temor das bruxarias e dos sortilégios constituia um terror constante a assombrar o espírito daquela pobre gente. A morte do Papa, dada a forma que ocorrera logo excitou a imaginação popular. Se ele fora envenenado, como muita gente logo se pôs a dizer, por que seu escudeiro, que provara a comida e bebida que lhe fora servida em Roquemaure, não morrera também? Poucos atentaram para o fato de que o escudeiro somente provara o vinho e o Papa efetivamente bebera a jarra inteira. O escudeiro tivera uma pequena dor de barriga, que foi resolvida com um purgante. Nem a imediata prisão do condestável de Roquemaure, e a dolorosa tortura a que foram submetidos todos os empregados do castelo, que cuidaram da preparação da ceia papal, trouxe qualquer esclarecimento para o caso. Messier Jean du Pré, o misterioso vinhateiro havia desaparecido. Ninguém conseguiu encontrá-lo ou dar qualquer notícia de seu paradeiro. Era como se nunca tivesse existido. Além disso, todo o vinho que ele trouxera foi exaustivamente examinado. Nada foi encontrado de estranho na sua composição. Era, efetivamente, uma partida dos melhores vinhos fabricados nas Côtes du Rhone.
Daí não foram poucos os que acreditaram, desde logo, que a maldição lançada por Jacques de Molay sobre o Papa, o rei, sua famíla e seu ministro Nogaret, começara a ser cumprida imediatamente. Assim começam as lendas.
Não era só a morte do Papa, em circunstâncias misteriosas, que preocupava a mente de Filipe, o Belo, naquele começo do mês de maio de 1314. Nem bem as cinzas do Grão-Mestre e do preceptor da Normandia, Geoffroy de Charney, tinham sido dispersas pelo vento que soprava do Sena sobre a Ilha dos Judeus, onde eles haviam sido queimados, e o rei já estava a braços com um grande problema de família, que viria não só trazer-lhe uma profunda infelicidade como pessoa, mas principalmente acarretaria uma grande dificuldade para a sucessão da sua linhagem, como soberanos do reino de França.
Essas dificuldades provinham do escândalo provocado pelas suas duas noras, Branca de Borgonha, esposa do seu filho caçula, Carlos de França, que mais tarde se tornaria o rei Carlos IV, e Margarida de Borgonha, esposa de seu filho Luís, que se tornaria rei com o título de Luis X. Essas duas princesas, ambas filhas da condessa Mafalda de Borgonha, tinham sido apanhadas em franco adultério com dois irmãos, os senhores de Aunay, Gautier e Felipe, que eram escudeiros de seus respectivos maridos. Julgadas por um tribunal composto pelo rei e seus ministros, elas foram aprisionadas e jogadas em uma masmorra. Assim começaram as desditas do rei Filipe, o Belo. Tudo faria parte da maldição lançada sobre sua família?
Mas as agruras do rei estavam apenas começando. Em fins de maio de 1314, foi a vez do seu fiel ministro Guilherme de Nogaret. Esse homem tinha sido o seu braço direito na disputa contra o Papa Bonifácio VIII e no processo de destruição da Ordem do Templo. Desde os seus primeiros anos de reinado, em 1286, Nogaret fora seu principal aliado na luta que ele travara contra o Papa Bonifácio VIII, e o grande articulador de sua política de estado. Com sua natural competência para manipular leis e gerar fatos políticos que colocavam os adversários do rei em situações incortonáveis, Nogaret havia ajudado Filipe a eliminar, um a um, os inimigos do estado que ele havia se proposto a construir.
Nogaret tinha sido aluno de Pierre Flote, o grande jurista. Fora, antes de ser chamado por Filipe para a chancelaria real, juiz e professor de direito. Era, antes de tudo, anticlericalista por natureza. Ele era exatamente o que Filipe precisava para ajudá-lo na sua luta para reduzir os poderes dos barões do reino e colocar a Igreja sob a sua tutela.
A política praticada por Nogaret levara o rei Filipe a um conflito com o Papa Bonifácio VIII, em 1302, quando este resistiu aos decretos reais que impunham taxações sobre as rendas da Igreja. O conflito evoluiu de tal maneira, que o próprio Nogaret acabou chefiando uma expedição contra o Papa, acabando por fazê-lo prisioneiro em sua residência, em Agnani, no incidente que recebeu o nome dessa cidade. O Papa seria libertado mais tarde pelos próprios habitantes de Agnani, mas desse incidente resultara a excomunhão de Nogaret e dos aliados italianos de Filipe, problema que só seria contornado depois, em 1312, quando da dissolução da Ordem do Templo, em virtude do acordo feito com o Papa Clemente V.
Assim, durante a maior parte do reinado de Filipe, Guilherme de Nogaret tinha sido o seu maior apoio. Seus conhecimentos de jurista e suas habilidades de estadista tinham sido muito bem aproveitadas pelo rei. E muito bem recompensadas também, pois Filipe fizera dele o Chanceler real em 1307, o cargo de maior poder na França.
Odiado por muitos, temido por todos, Nogaret era a verdadeira personalidade por trás do trono. Fora ele que, juntamente com Enguerrand de Marigny, organizara as finanças do reino. Para isso, além de taxar as rendas da Igreja e atraír a ira do Papa, atiçara ainda mais o rei contra os templários, visando, principalmente, o confisco dos bens da Ordem. Com tudo isso, adquiriu muito poder, mas também uma boa dose de inimigos.
Nogaret era um homem forte, beirando os cinqüenta anos, e ninguém, em sã consciência, acreditaria que fosse morrer cedo, de causas naturais. Nem era dado á superstições. Anticlericalista por natureza, odiava a Igreja de Roma e tudo fizera para que o seu poder, em França, fosse reduzido ao mero serviço burocrático que o clero prestava, em razão da sua própria estrutura, mais eficiente e organizada que o próprio aparelho do estado.
Nogaret trabalhara a vida inteira, enquanto jurista, senescal, e depois ministro plenipotenciário do rei, para anular o poder da Igreja e substitui-la pelo poder do Estado. Por isso não poupara esforços para transformar o Papa em um refém do rei, e lutara para que em todas as dioceses do reino, os bispos fossem aliados do rei, ao invés de obedecerem ao Papa. Conseguira isso com a eleição de Clemente V, o Papa francês, que se encastelara em Avignon, tirando a corte papal de Roma, se colocando, praticamente, sob a influência do mrei da França.
Seu ódio pela Igreja e pelo clero era uma coisa entranhada. Diziam que ele tinha raízes históricas. Pois segundo seus inimigos, Nogaret, oriundo da região do Languedoc, era descendente de uma família de cátaros, e seus antepassados, na pessoa do seu avô e provavelmente seus pais, haviam sido queimados como hereges. Nunca se comprovou se isso era um fato verdadeiro, ou se eram coisas inventadas pelos seus inimigos, mas o caso é que Nogaret tinha tão pouco respeito pela Igreja quanto por suas instituições. Por isso, o mesmo ódio que votava ao Papa e seus bispos, ele também o dedicava ás Ordens monacais, entre elas a Ordem do Templo. Justificava-se, dessa forma, o empenho com que ele havia trabalhado para extingui-la e mandar seus membros para a fogueira.
Jacques de Molay, em sua pira de morte, também havia se referido expressamente a ele, Guilherme de Nogaret. A maldição que o moribundo ancião, em meios ás chamas que o consumia, havia lançado, foram explicitamente contra o rei, sua família, o Papa e a ele próprio. Nogaret era um homem que se acreditava livre de superstições. Não obstante, não conseguia evitar o mal estar que o atingia quando passava em frente à catedral de Notre Dame e olhava para aquelas estranhas figuras de gárgulas, vampiros e carrancas que ornavam o frontispício do majestoso templo. E sempre que o fazia não conseguia evitar a palavra que lhe vinha á cabeça: Baphomet! Que diabos significava esse nome? Nogaret, um jurista respeitado, tinha uma mente científica, que só se ocupava de assuntos pragmáticos. Embora em suas articulalões para causar a perda dos templários ele tenha se valido dos próprios venenos que a Igreja aplicava contra seus inimigos, ou seja, acusações relacionadas com bruxaria, feitiçaria, heresia e outras baboseiras, como as colocava, ele mesmo não acreditava em nada disso. Ah! como ele sonhava libertar a França de tudo isso, dessa Igreja corrupta, desse clero ignorante, dessa estrutura de medo, intolerância, superstição e miséria, que a Igreja de Roma espalhara pelo mundo cristão. Nem que tivesse que usar contra ela os mesmos métodos que a Igreja usava para manter o seu poder sobre o povo. O poder do medo, o terror do inferno, as tenases da Inquisição.
No entanto, aquelas carrancas no fronstispício da Igreja de Notre Dame o incomodavam. Por que será que os mestres maçons, os chamados “pedreiros do Bom Deus” teriam colocado ali aquelas figuras demoníacas, que tinham muito mais a ver com a fauna do inferno do que com a visão do paraíso? Onde estaria a lógica daquela estranha perversão, que parecia estar mais de acordo com uma mente alinhada com o mundo das trevas, do que com o território da luz, para onde a Igreja deveria conduzir seus fiéis?
Ah! Os templários. Seriam mesmos adoradores do demônio, como ele fez tanta força para fazer a opinião pública acreditar que fossem? Teriam eles dominado aquela estranha ciência, que se chamava alquimia, cujos praticantes afirmavam serem capazes de fabricar ouro e produzir filtros e elixires que podiam causar a morte de uma forma imperceptível ao melhor dos médicos? E que também podiam prolongar a vida de uma pessoa indefinidamente? Teriam envenenado o Papa Clemente V de uma forma imperceptível, misteriosa, subreptícia, que nem mesmo os médicos do Sumo Pontífice, sabidamente, os mais competentes do reino, não conseguiam detectar?
Ah! Fabricar ouro até que seria bom, pensava Nogaret, enquanto sua carruagem se afastava da praça de Notre Dame e se aproximava do palácio real. Poderia, com isso, encher as burras do tesouro real sem ser obrigado a recorrer a medidas impopulares, como aumentar as taxas sobre as licenças de comércio, as rendas dos cidadãos, a moagem de trigo, a venda de produtos horti-fruti-granjeiros, como tinha sido feito recentemente e provocara a revolta dos cidadãos. Aumentar as imposições tributárias sobre as servidões feudais e sobre as rendas da Igreja sim, isso lhe dava até prazer em encontrar cada vez mais motivos para fazê-lo, mas o povo, se pudesse, ele o aliviaria, pois o povo não tinha culpa de viver nesse tempo de ignorância,, maldade e violência. Nogaret era homem do povo e nascera do povo. Tornara-se grande por seus próprios méritos. Não corria em suas veias uma única gota de sangue nobre. Tinha nascido burguês e continuava burguês, apesar dos títulos de nobreza conquistados. Se não existisse o direito feudal. Se não existisse o direito canônico. Fabricar ouro. Se isso fosse possível...
Essa, precisamente tinha sido, até então, a ocupação de mestre Everardo de Evreux. Alquimista praticante, sua fama de bruxo já o acompanhava desde que saira do condado que lhe emprestava o nome, para evitar ser envolvido em um processo por bruxaria, que lhe havia sido movido pelo bispo local. Ingressara na Ordem do Templo, onde a sua condição de letrado logo lhe granjeara facilidades numa organização onde a maioria de seus líderes era analfabeta. Na sua condição de alquimista, trabalhava para a Ordem do Templo, decifrando pergaminhos, fabricando elixires e remédios que os monges guerreiros geralmente precisavam, ao mesmo tempo em que perseguia o sonho de todo adepto, que era a obtenção da pedra filosofal.
Amigo pessoal de Jacques de Molay e dos principais dignatários da Ordem do Templo, para mestre Everardo, a prisão e condenação dos seus protetores, juntamente com a extinção da Ordem trouxera, novamente, o problema da clandestinidade. Até então, sob a proteção do Templo, pudera praticar a sua arte sem empecilhos. Sob uma capa de mistério, a Ordem mantinha laboratórios de prática alquímica, onde os iniciados nessa estranha ciência, organizados sob um rígido sistema iniciático, trabalhavam religiosamente na procura da pedra filosofal. Esse tinha sido mais um dos segredos que os templários tinham trazido do Oriente, adquirido na sua interação com árabes. Com a prática da alquimia, os templários haviam evoluído na arte de fabricar armamentos, pois o aço obtido em seus laboratórios era mais duro do que o comumente fabricado nas forjas européias. Tinham obtido também consideráveis avanços na arte da tanoaria, pois a descoberta de novos ácidos permitia a curtição de couros com mais qualidade e produtividade. Além disso, o estudo da geometria, da matemática e das artes antigas, especialmente dos caldeus e dos egípcios, que lhes foram transmitidas através dos mestres sarracenos, fizera avançar de tal maneira a ciência da metalurgia, arquitetura e das indústrias em geral, que os chamados “homens dos templários” estavam entre os mais hábeis artesãos e profissionais da Europa. Fora essa habilidade, aplicada á indústria, paralelamente á extraordinária capacidade que seus monges desenvolveram para administrar bens e dinheiro, que fizeram da Ordem do Templo a potência econômica, política e militar que tanto incomodava Filipe, em sua luta para assumir o poder absoluto em França.
Mestre Everardo tivera a sorte de não ser implicado, de maneira fatal, nas acusações de heresia e outros crimes que foram imputados aos templários. Não obstante, fora brutalmente torturado e tivera uma perna irremediavelmente mutilada no cavalete de tortura. Por isso coxeava de uma forma estranha, provocando comentários maldosos por onde passava. Todo coxo era bruxo, diziam. Isso o irritava de tal forma, que seu ódio pelas pessoas que fizeram aquilo com ele era o único sentimento de que ainda era capaz. Mas conseguira convencer aos inquisidores que não tinha nada a ver com as acusações que estavam sendo feitas aos Irmãos do Templo, pois ele era um dos “homens dos templários”, ou seja, um profissional a serviço da Ordem e não um cavaleiro templário, que participava dos “segredos” atribuídos aos iniciados. Era exatamente o contrário, mas os ignorantes prelados que faziam a inquisição não tinham a menor idéia das coisas com as quais estavam lidando. Se soubessem, não seria os cavaleiros do Templo que eles teriam que mandar para a fogueira. Ah! Se soubessem dos segredos que existiam naquelas estranhas garatujas dos livros que ele lia. Se soubessem dos poderes que continham aqueles pós que eles manipulavam...
A quem mestre Everardo de Evrex odiava mais? Certamente que o rei Filipe e o Papa Clemente, os responsáveis por tudo aquilo. Mas ele sabia que seu ódio, dirigido áquelas figuras, era ambicioso demais. Nunca conseguiria chegar próximo o bastante do rei para “temperar” o seu vinho com um pouco de “ serpente de Faraó, como mestre Jean du Pré fizera com o Papa. Sabia, no entanto, que Messier Nogaret se abastecia de tintas com um fornecedor da rua Boudornnais, que por sinal comprava do seu laboratório a matéria prima com a qual fabricava as tintas. Tinha conhecimento de que certas matérias primas, como o orpimento, o sulfato de chumbo e o nitrato de prata, o cinábrio, o fel do fígado do boi, a cola de peixe, etc. eram ingredientes usados naquelas tintas que Nogaret, em seu ofício de Ministro e principal redator dos decretos e comunicados do rei, usava. Esses materiais eram extremamente tóxicos e um pouquinho mais disso do que daquilo, uma dose a mais de sulfato de chumbo, uma pitada a mais de cinábrio, ou de ácido tânico, e eis um veneno que, posto diariamente sob o nariz de alguém, levaria a sua miserável alma para o inferno em poucos dias.
Guilherme de Nogaret morreu em fins do mês de maio de 1314, exatamente trinta e três dias depois da morte do Papa Clemente V, que sua vez morrera também exatamente trinta e três dias depois da morte de Jacques de Molay, consumido pelas chamas purificadoras que Filipe mandara acender na Ilha dos Judeus para queimar os altos dignatários do Templo.
Sua morte não tinha sido muito diferente da do Papa, disseram as pessoas que o assistiram em seu leito de morte. Primeiro ele sentiu uma vertigem enquanto participava de uma reunião dos pares de França, que tratava de aspectos relativos à sucessão do Papa Clemente V. Suas pernas travaram, como se ele tivesse sido acometido de uma crise de câimbras. Levado imediatamente para um aposento no castelo real, começou a vomitar as tripas. Logo o vômito começou a trazer um sangue pisado e de cheiro nauseabundo, que não deixava dúvidas que de que algum veneno muito poderoso estava agindo nas entranhas do ministro. Os médicos tentaram de tudo. Sangraram-no o quanto puderam, para tirar aquilo que pensavam ser o sangue contaminado, e tentaram todos os elixires possíveis e conhecidos. Fizeram-no até engulir pó de esmeraldas moídas. Mas nada adiantou. Nogaret morreu ao cabo de dois dias, depois de escarrar todo o sangue que tinha no corpo. Enquanto se transformava numa múmia em vida, delirava e gritava como um possesso:
– A fogueira não! Por favor, Majestade! Eu fiz o que fiz para servir-vos! - - Jacques de Molay, eu vos amaldiçôo... Foram as últimas palavras de Guilherme de Nogaret, o homem que tornara possível a Filipe a extinção da Ordem do Templo. Todos, naquele quarto, que assistiram a agonia do poderoso Chanceler real e seu último suspiro tinham suas testas franzidas e uma pergunta nos olhos. Será?
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Da obra " Os Filhos da Viúva"- A Conspiração dos Templários, no prelo.