Cecília Meireles: o silêncio do Mistério enunciado na frágil renda das imagens
Uma celebração da chegada da menina, quando o ano de 1901 entardecia...
Um aceno de ternura para a mulher, em partida , com passos de quem se liberta da precariedade humana, quando 1964 chegava ao crepúsculo...
Rio de Janeiro, 07 de novembro de 1901. Uma menina nasceu para a Poesia. Seu nome: Cecília. Descendente de açorianos pelo lado materno, trouxe, das cantigas e histórias que lhe embalaram o berço, o marulho das ondas, a tomar conta de sua alma, de seus abismos mais essenciais, de vozes antigas recordando tempos e espaços de origem:
“Agora recordo que falavam
da revolta dos ventos,
de linhas, de cordas, de ferros,
de sereias dadas à costa.
E o rosto de meus avós estava caído
pelos mares do Oriente,
com seus corais e pérolas,
pelos mares do Norte,
duros de gelo.” (Mar absoluto)
É nascida dessas vozes antigas que Cecília vem se encaminhando à vida: menina e mulher, oscilante entre a terra firme, a areia, a espuma, as águas, os abismos do mar, absoluto mar de sua existência:
“ E assim como água fala-me.
Atira-me búzios como lembrança de sua voz,
E estrelas eriçadas, como convite ao meu
[destino.
.................................................................
Aceita-me apenas convertida em sua
[natureza
plástica, fluida, disponível
igual a ele, em constante solilóquio,
sem exigências de princípio e fim,
desprendida de terra e céu.” (Mar absoluto )
Porque “a solidez da terra, monótona/parece-nos fraca ilusão”, Cecília deseja “a ilusão do grande mar/multiplicada em suas malhas de perigo”, uma “solidão robusta”, um rochedo, em meio a águas e espumas, esquecido de sua solidez, como se as águas o convertessem na fragilidade do espelho.
É neste espelho que Cecília se contempla, multifacetada em rostos às vezes tão estranhos, desconhecidos, em liberdade:
“Se me contemplo,
tantas me vejo,
que não entendo
quem sou, no tempo
do pensamento.
Vou desprendendo
Elos que tenho,
Alças, enredos...
E é tudo imenso...(Autorretrato)
Tão absoluto mar da existência de Cecília que, entretanto, sem elos, sem alças que a aprisionem, seja à terra, seja ao mar, sugere, a si mesma e a quem abrir a alma para acolher seus versos, uma compreensão da vida em voo rasante sobre a pequenez das coisas:
como “ flor que se cumpre, sem pergunta” ;
como “nuvem leve e bela vivendo de nunca chegar a ser”;
como “cigarra queimando-se em música”;
como “camelo que mastiga sua longa solidão”;
como “pássaro que procura o fim do mundo.” (Reinvenção)
Então Cecília é assim, não só entre terra e mar, mas também entre terra e céu, nas paragens do infinito, como se define:
“Eu, PASTORA, que apascento
estrelas da madrugada
pelas campinas do vento...”(Pastora descrida)
E, se pastoreia estrelas, ao mesmo tempo, canta a terra firme e as coisas tão precárias que aqui estão, mas que se eternizam pelo instante de beleza e de ternura, em cada casa que se faz um ninho, uma agradável morada do ser. E nos convida à canção:
“Cantemos também os frescos lençóis
[e as colchas brancas,
estes campos de malmequeres engomados.
Cantemos os flocos das cortinas,
................................................................
as dálias com seus colares de orvalho.
..........................................................................
Cantemos a faiança lisa, os guardanapos
[ofuscantes,
e o perfumado arroz-doce, e o leite,
e a nata e o sal e o açúcar...”(Alvura)
Cecília... a vida se fez de sal, de águas de lágrimas acrisoladas nas conchas da alma, transformadas em versos preciosos como pérolas, no mar absoluto do mistério que recolhia vidas: o pai, três meses antes de Cecília nascer; a mãe, quando Cecília tinha apenas três anos, o marido, bem depois.
O “perfumado arroz-doce”, o “açúcar” , a ternura vieram da avó-quase-mãe da menina-órfã... A mãe se fizera etérea, quem sabe esquecida de que era seu dever cantar acalantos e contar histórias para sua pequena Cecília.
A avó cantará cantigas, contará histórias, como a dar lições de como de transfigurar as tristezas em coragem para a vida. E Cecília, como as aprendeu!!! . Mas, um dia a avó também se esquece desses deveres de mãe-avó, desinteressada das estações que caminham, da primavera que chega, mesmo quando Cecília insiste em avisar que,
“Neste mês, abrem-se cravos de perfume
[profundo e obscuro;
a areia queima, branca e seca,
junto ao mar lampejante.” (Elegia)
A avó também ingressava no imponderável, no absoluto. Ser-lhe-á dado, ainda, ouvir a juventude da neta, quase filha, a lembrar-lhe a vida, a dizer-lhe:
“Minha tristeza é não poder mostrar-te as
[nuvens brancas
e as flores novas, como aroma em brasa,
com suas coroas crepitantes de abelhas”. (Elegia)
É aos dezoito anos, em 1919, que Cecília publica “Espectros”, o primeiro livro de versos, inaugurando a criação de uma poesia que não irá afastá-la de seu povo. E disto fomos avisados:
“Rama das minhas árvores mais altas,
Deixa ir a flor! que o tempo, ao
[desprendê-la,
roda-a no molde de noites e de albas,
onde gira e suspira cada estrela.”(Renúncia)
Na roca dos anos, fez-se a ramagem da vida de Cecília, de onde um dia o tempo veio desprender a flor, imortalizada em versos: “Tem sangue eterno a asa ritmada.”
Era 09 de novembro de 1964, Cecília caminha na direção do absoluto e às nossas despedidas, antecipou estes versos:
“A flor que atiraste agora,
quisera trazê-la ao peito;
mas não há tempo nem jeito...
Adeus, que eu me vou embora”. (A flor e o ar)
Cecília, irmã mais velha, que aprendizagens de uma existência entre o efêmero e o eterno tua palavra poética nos deixa, anulando fronteiras entre o tempo e o infinito, diluindo a ausência de quantos um dia também foram chamados a pastorear estrelas. Então, a ti e a cada um deles, a um etéreo pastor quase menino, quero dizer o que um dia me ensinaste, para que não haja adeus:
“...longe vai teu vulto amado.
Porém resiste ao meu lado
O espaço que ocuparias.
.......................................
Guardo por altas varandas
tua fala em meus ouvidos.” (Amor em Leonoreta)
E mais ainda nos deixaste, como uma canção, uma voz em anseio incansável de fazer-se ouvir, lá, onde tudo é mistério:
“ Naquela nuvem, naquela,
mando-te meu pensamento:
que Deus se ocupe do vento.
Os sonhos foram sonhados,
e o padecimento aceito.
e onde estás, Amor-Perfeito?
Imensos jardins de insônia
de um olhar de despedida
deram flor por toda a vida.
Ai de mim, que sobrevivo
sem o coração no peito.
E onde estás, Amor-Perfeito?
Longe, longe... atrás do oceano
que nos meus olhos se alteia
entre pálpebras de areia...
Longe, longe... Deus te guarde
sobre o seu lado direito,
como eu te guardava do outro,
noite e dia, Amor-Perfeito.”(Improviso do amor-perfeito)
Esclarecimento: Os versos de Cecília Meireles que se fizeram objeto da tessitura deste ensaio foram transcritos da coletânea MEIRELES, Cecília. Flor de poemas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1972.
Maria Felomena Souza Espíndola
Setembro / 24 / 2013