O ENCONTRO
Parte I
Um telefonema inesperado.
Véspera de Domingo de Ramos, uma noite calma como muitas outras, sopra uma suave brisa acalentadora sobre a quente cidade, cuja notoriedade é conhecida como Portal da Chapada Diamantina, aqui na Bahia. A suavidade da brisa fresca apazígua a sensação acumulada de inevitável calor, a bem-vinda brisa trás consigo outros ares, carrega em si os anseios vindos de um passado longínquo. Sobressaltando por sua vez o profícuo estado de paz e de espirito de meditação do velho Reverendo anglicano Padre Arthorius Godfriend, seus olhos azulados, trazem os traços de quem desgastou por anos á fio por noites á dentro mergulhado em leituras e mais leituras, estudos por sobre estudos, sempre com uma leveza em seu semblante, deixava escapar constantemente breves sorrisos, próprios de quem vislumbra em seu imaginário as silhuetas de seu objeto meditativo. Em sua sala, Oficium, como costumava chamar, dizia sempre que este lugar era para si mesmo a Oficina onde ele trabalhava seu Eu interior, realizando em seus secretos e íntimos momentos sua alquimia pessoal. Dizia sempre aos mais próximos: “a maior de todas as tarefas que um humano pode fazer é conhecer a si mesmo, e conhecendo a si mesmo, se condicionando a si espantar com a perfeita igualdade para com Aquelo que nos criou, feito a Sua imagem e Sua semelhança”. Mergulhado em seu espaço sagrado, em seu canto preferido, em seu Oficium doméstico, mobiliado apenas por duas grandes estantes repletas de livros raros sobre alquimia, hermetismo, teologia, filosofia, psicologia, história e lindas versões clássicas de Bíblias em vernáculo local e traduções consagradas entre os biblistas, como a versão dos setenta, conhecida como Septuaginta, emblemada pela insígnia romana LXX e a Vulgata latina que fazia volume juntamente com a versão inglesa da King James Atualizada e a versão francesa da Bíblia de Jerusalém, obras estas que ecumenicamente postavam-se ao lado de um magnifico Alcorão em impressão bilíngue árabe-inglês e uma versão hindu dos textos sagrados vedas, também em versão bilíngue hindu-inglês, sem falar dos compêndios budistas sobre filosofia oriental, afastado das estantes flamejava de modo tênue a luz vinda da ação iluminadora dos castiçais cujas bases eram banhadas por ceras já derretidas que indicava o quanto já havia muitas vezes utilizadas para iluminar a sala secreta do velho Padre, um belo tapete que mais parecia uma obra de mosaico, servia como elemento á acompanhar a pequena mesa de jacarandá, forrada por um tecido de seda dourado que cintilava os brilhos das velas que ali iam lentamente se liquefazendo ao passar do tempo, sobre á frente da mesa central, uma peça em metal bronzeado que trazia em si um circulo contendo outro circulo em seu centro com uma misteriosa escrita ao que parecia ser em hebraico, a inscrição continha quatro letras, quando balbuciada pelo Revendo ressoava misticamente pelo mantra Iah Hoh Wah. Um suave cheiro de jasmim vinha a odorizar agradavelmente o recinto, um cálice dourado contendo água fazia presença juntamente com um belo castiçal cuja base continha em latim o dizer Deo Lux Caritas Et Pax Est. Abruptamente algo interrompe o clima de meditação, um suave toque telefônico ressoou sobre sua simples sala de estar, uma humilde sala, rica em obras de artes que aludem à acessão do ser humano ao divino, convidava a todos que por ela passasse a encartar-se com a beleza de suas obras, era comum o silêncio diante de tanta beleza, sempre dizia o velho reverendo que o silêncio é a mais bela de todas as preces. O Reverendo Arthorius interrompeu seu exercício meditativo para atender o telefona cuja repetição propagava um timbre suave que mais lembrava o tilintar de sinos em sonoridade digital, seu toque alternava com a harmoniosa obra musical Jesus bleibet meine Freude de Johan Sebastian Bach, reproduzido por um charmoso conjunto de som muito bem distribuído pelos cômodos, e assim a harmonia e a melodia faziam-se sempre presentes na vida caseira do velho Padre. Interromper sua meditação era coisa que não o faria em outros momentos, mas pressentiu que algo diferente havia em tal ligação.
- Aló! Boa noite! Atendia com uma voz forte, típica de um anglo-saxônico.
- Boa noite! Reverendo Arthorius! Sabe quem está falando?
- Receio que não meu caro. Respondia com seu velho e conhecido sorriso de canto de boca. E gargalhava como quem se admirava ao receber uma ligação ás 00:59.
- Meu velho amigo aqui quem vos fala é Jorge Tadeu, lembra-se de mim? Perguntava-o com um jeito próprio soteropolitano de ser.
- Evidentemente! Como vai sua pessoa? Já faz alguns anos que não nos falamos, que boa surpresa. Falava sempre alternando entre as meias palavras, seu castigado sotaque britânico que com o passar do tempo passou a enamorar o ritmo linguístico da velha e magnifica Bahia.
- Pois é irmão, realmente já faz alguns anos. Vimo-nos pela última vez em um Seminário sobre Religião, Ética e Subjetividade.
- Verdade! Isso... Foi há pelo menos uns dez anos atrás. Sorria alegremente Arthorius ao lembrar-se do Seminário.
- Bem, primeiramente quero me desculpar contigo por ligar á essa hora da noite. Mas não veio outro nome à minha memória á não ser o seu meu caro amigo, depois que passei a me envolver em um caso em especial. Dizia com um tom de voz emocionadamente preocupado.
- O que foi? Será que posso te ajudar? Pausadamente dizia ao repetir: “posso te ajudar?”.
- Claro amigo! O tom da voz do Babá Orixá, mais conhecido pelo codinome Pai-Tadeu já não era tão entusiasmado. Uma profunda preocupação deixava-se ser percebida pelos ouvidos e a percepção atenta do velho Padre já tão prontificado e habituado de forma natural ao trabalho poimênico pontuava a concentração do velho pároco anglicano de tradição monástica.
- Meu irmão! Ia lentamente pronunciando, dando total atenção ao termo “Irmão”, o Reverendo Godfriend... Frisando de modo tão carismático todo o real sentido do termo irmão. Pois amava o sentido do termo grego - adelfós cujo significado era “aquele que nasceu do mesmo ventre”. E sempre aludia que todos nós nascemos do mesmo ventre materno da ação criadora do Emanador Pai – Mãe, Energia Criadora e Sustentador de todas as coisas. Sendo assim somos cada de um de nós irmãos de toda uma realidade maior. Todos nós como sendo irmãos nascidos do mesmo ventre causal. Seja lá que diferentes nomes as culturas passaram a nomenclaturar tão grandeza.
Ao que tudo indicava, ouvia-se de longe a baixa música bachiana que ao fundo ia ressoando impreterivelmente em parceria com o suave vento que adentrava o recinto da sala de estar do velho Arthorius.
- Caro Reverendo, estou cuidando de um jovem aluno de filosofia que nos últimos meses vem sofrendo profundamente de uma crise psicológica ao que tudo indica tem muito a ver com sua educação religiosa. Os estudos de filosofia vêm acalentando ao tal jovem certas dúvidas que o aflige quando o mesmo se vê diante de sua tradição religiosa. Venho fazendo o que posso, recebo-o na Casa de Amparo aqui no Terreno de Umbanda Casa de Caridade Amor e Luz, venho dialogando sempre que posso com ele, mas minha tradição religiosa, minha tradição socioteológica parece não despertar no caro aluno a atenção que o mesmo carece. Ele deixou transparecer que sua cultura familiar tem fortes ligações com a fé presbiteriana ortodoxamente calvinista e moralmente puritana, deixou entre linhas em nossos bate-papos, que o pietismo ortodoxo sempre foi à base de sua formação intelectual – religiosa.
- E qual o problema em tudo isto? Mais concentrado, compenetrado no dialogo o Reverendo Godfriend frigia a testa de forma atenciosa, querendo perceber qual o problema presente nas entre linhas do diálogo.
- Penso que a abertura para os estudos da Filosofia tem trazido desconforto ao jovem estudante, e como sei que vossa tradição teológica tem uma relação mais aprofundada perante a filosofia ocidental e que seu saber sobre tal área pode vim a auxiliar o meu aluno, uma vez que o mesmo tem uma forte ligação com a cultura ocidental cristã, acredito que conhecendo ele suas posições teológicas e hermenêuticas, tanto quanto filosóficas sobre assuntos ligados á fé, tradição cristã, agnosticismo, relação entre cristianismo e ciência, em fim, penso que o senhor poderia ajuda-lo a passar por este momento difícil.
- Como também, posso vim a piorar a situação do jovem aluno! Afirmava de forma hilária sorridentemente ao telefone.
- Já havia pensando sobre esta possibilidade... Entretanto confio que sua postura seria impactante no bom sentido. Sorria do outro lado da linha o sacerdote umbandista descontraidamente.
Depois de alguns longos segundos ouvindo atentamente o que acabara de ouvir, Arthorius pôs-se á meditar fazendo uma breve retrospectiva de tudo que o diálogo entre os dois amigos acabara de promover. Sempre respondia qualquer proposta ou questionamento, depois de alguns longos segundos de silêncio, enquanto silenciava, sua mente o conduzia a examinar cada possibilidade, sistematicamente, metodicamente ia aos poucos reconsiderando as possíveis ideias e juízos sobre qual seria sua resposta.
- Pois bem! Estarei ao seu dispor, e ajudarei como puder... Respondia ao velho amigo umbandista de forma calma e amigavelmente cordial.
- Marcarei um encontro para que meu aluno possa conhecê-lo. Alvitras o educado Babá- Orixá crente de que seria atendido por seu amigo.
- Tudo bem... Que assim seja! Posso ir á Salvador se for o caso...
- Não, não, não! Repetia freneticamente o Sr. Tadeu. Prefiro que ele vá aí ao teu encontro, assim ele poderá também conhecer outro lugar além dos arredores de Salvador.
- Boa ideia... Podem vim...
- Sendo assim marcarei contigo, deixarei tudo prontificado, resolverei tudo e acerto nossa viagem á Itaberaba, te aviso quando tudo estiver pronto aqui. Não prolongarei mais nosso papo caro amigo... Por fim, me responda uma coisa: Ainda torcendo pelo tricolor enferrujado de aço? Ainda torce pelo Bahia? Ironicamente ia cutucando o amigo contra sua velha paixão – o futebol baiano, em especial o time do Bahia.
- Não é atoa que ainda canto:
“Somos da turma tricolor
Somos a voz do campeão
Somos do povo um clamor
Ninguém nos vence em vibração
Vamos avante esquadrão
Vamos serás um vencedor
Vamos conquistar mais um tento
BAHIA! BAHIA! BAHIA!”.
E assim cantarolava com seu tom abrasileirado e britânico ao mesmo tempo, com um ar de baiano adotado, sorrindo sempre...
- O Bahia é a sua segunda religião... Chacoteava mas uma vez.
- Acho que sim, acho que sim! Religião para mim é tudo aquilo que traduz beleza... E para mim, é belo a paixão sincera por tudo que me faz rememorar sentimentos aprazíveis.
- Até mais meu camarado! Pode esperar minha ligação, eu retornarei a ligar para ti. Até mais, tenha uma boa noite.
- Idem! Tudo de bom pra você! Que o Eterno nos abençoe. Abençoava-os o Padre com um tom sacramental.
- Que Olorum assim o faça!
- Hoje e sempre, hoje e sempre meu amigo! Dizia de forma a repetir como sendo uma antífona.
Ao desligar o telefone, o velho Padre voltou ao seu Oficium, sua sala de trabalho pessoal e reiniciou seus exercícios de onde tinha pausado. Voltou com a mesma atmosfera mental, o mesmo equilíbrio espiritual, a mesma predisposição como se nada houvesse ocorrido. Tamanha era sua concentração, continha uma profunda habilidade de adentrar psiquicamente nos corredores de seu íntimo consciente e subconsciente. Parecia que de lá retirava as orientações para uso prático no seu dia á dia, era comum vê-lo silenciosamente em estado meditativo, mesmo em meio às conturbações e desatinos na vida social fora de seu lar. Não que constava, parece que nunca fora visto sem a serenidade e o perfil de pessoa calma e atenciosa, mais parecia como os bons mordomos ingleses dos filmes antigos, compenetrado, bem apresentado e pronto no agir, uma mistura de saxônico com baiano, destes que caracteristicamente retratam em suas ações o jeito calmo e hospitaleiro que só os bons baianos sabem ser. Ao regressar ao seu Oficium pessoal, pôde desfrutar do ambiente místico e inebriado pelo perfume que bailava no ar, cheiro de jasmim, aroma que flutuava á convida-lo a celebrar no profundo silêncio que lembrava a pacificidade franciscana de onde tanto aprendeu a ser quem é.
Fechou os olhos, respirou o aroma que perfumava e enchia sua sala particular de alquimia pessoal, embriagou-se com a suave sonoridade que fluía da música de Johan Sebastian Bach, cuja harmonia, melodia, ritmo, compassos iam magicamente formando um agradável convite propicioso a contemplação de ideais nobres achadas no profundo do baú oculto no subconsciente humano.
A musicalidade entrava por ouvidos á dentro tomando parte da alma de uma forma tal, que era impossível não ser tangido pelo poder invisível presentes na arte musical. Era como se aquela sala fosse parte de um paraíso secreto, longe se fazia a tristeza, a melancolia de qualquer estado espiritual degradante á mentalidade humana. Antonimamente, podia-se perceber magistralmente a leveza das flautas transversal introduzindo o inicio da música, lentamente por uma nota prolongada executada belamente, os sons, passo a passo, compasso a compasso, nota a nota iam se confabulando umas com as outras, dialogando entre si e às flautas passaram a unirem-se aos bem tocados violinos, divino momento em que violas e violoncelos, rompiam uma brevíssima pausa e como de costume acrescentavam sua característica própria de violinos, aquela presença aguda melódica que logo em seguida eram contrabalançadas com o contraste grave dos contrabaixos, e estes se juntavam aos clarinetes, oboés, fagotes, trompas, trombones, pífanos, tambores e pratos elaborando uma costura com seus fios invisíveis a cada fragmento da obra bachiana, observava-se a matemática exata presente em cada nota musical. Pequenas partes quando reunidas transformavam-se em uma única e notória obra de arte, capaz de compenetrar á alma e arrebata-la á um estado zen de ser.
Olhos fechados... Alma aberta para ver o que a visão não é capaz de enxergar. O tempo ia passando lentamente... Fugindo como sempre, fazendo o que faz de melhor, correr... Como quem brinca de corre-corre. Pois o tempo é um menino que ama brincar de correr, nós nunca conseguimos andar á sua frente, mas podemos atrás dele nos divertir nessa brincadeira pedagógica existencial. Enquanto o tempo corria, o velho Arthorius caminhava contemplando tudo com muito cuidado e atenção...