Deveria conhecer-me?
Muitas vezes me pego respondendo por vozes que desconheço.
Deveria conhecê-las?
Sendo todos que naturalmente sou, sou também, algumas vezes, talvez mais do que aquelas vezes que percebo, aqueles que a vida e os outros me induzem a ser.
Deveria conhecer-me?
Sim. Deveria conhecer-me, mas sou incapaz e incompetente para conhecer-me em totalidade, desta forma, por simetria, creio ser impossível que alguém se conheça profundamente, ou em sua totalidade.
Creio que somente os ignorantes, os iludidos, ou os crédulos sem ação crítica ou racional, realmente possam defender a crença de que são profundos conhecedores dos todos que são, além do tudo que os compõem, os movimentam, justificam ou dão forma ao seu viver. São tolos os que iludidos por falácias mentais e bugs cerebrais defendem ardentemente que se conhecem em totalidade, somos um mistério imanente de nós mesmos, somos um enigma mental que parece ser simples, somos enfim desconhecidos eternos de nós mesmos. Em parte nos conhecemos ou nos conheceremos, mas sempre e somente em parte saberemos quem somos, nossa realidade mais secreta estará, creio eu, escondida de nós mesmos para toda eternidade do que consigamos viver.
Somos muitos, somos complexos, somos profundos e instáveis, somos inacessíveis em completude aos outros e a nós mesmos, e em especial somos opacos e misteriosos a nossa própria consciência, já que esta vem sempre a reboque do que somos, e não, como romanticamente costumamos acreditar, que a nossa consciência é nossa própria ação, é nossa potência de ser, ou nossa decisão. Nossa consciência, com certeza nos compõe, é parte de nós, mas não é o todo de nosso ser, das pessoas que me compõem. Nossa consciência é uma parceira ativa, mas não tão ativa em relação ao que somos e o que realizamos como gostaríamos que fosse. A consciência é, para mim, apenas mais uma interface de entrada e saída com nossa mente e nosso cérebro, é muito mais uma interface de relacionamento entre o eu ativo, que no momento está no controle do que sou, ou mesmo entre os eus múltiplos que me compõem e o mundo externo, seja este real ou ilusório, imaginário ou concreto, material-realístico ou idealístico, em que realizo meu existir.
Entendo assim que o livre arbítrio, como vulgarmente entendido por nós é mais uma das muitas falácias que nossa mente, por nosso circuito cerebral, nos prega.
Quando tomo a consciência que pensei, quando conscientemente sinto que pensei, já o havia pensado a, no mínimo, algumas frações de segundos atrás. Quando consciente tomo conhecimento de que fiz alguma decisão, ou quando entendo que conscientemente decidi de livre vontade, ou escolhi por que simplesmente o quis, ou que pensei em algo de vontade própria, também já o houvera feito, em realidade, a instantes passados.
A neurociência tem cada vez mais comprovado isto, quando percebo algo pela consciência, ou quando percebo que fiz uma decisão, foi no passado a decisão tomada, e a consciência é apenas um modo de ficar sabendo do que já fiz mentalmente, sem coordenação ativa da consciência ou sem domínio total do livre arbítrio para decidir. Não é assim o eu consciente que realmente decide e pensa, é o eu cerebral e mental quem o faz primeiro e depois o torna público pela consciência. Desta forma é mister revermos nossos conceitos de livre arbítrio e consciência.
Não estou minimizando nossa responsabilidade, ou tentando delegar para o cérebro a culpa que seria do meu eu em comando, visando aliviar alguma culpabilidade ou mesmo dolo, isto não significa, não pode e não deve significar que não sou responsável pelos meus atos, pelo que penso, pelo como ajo, ou pelo que decido. Em todos estes casos, e em qualquer momento, sou e serei sempre eu, minha mente e meu cérebro quem pensa, quem decide e quem faz, tornando-me assim, ou melhor mantendo-me assim, totalmente responsável pelo que sou, pelo como sou, e pelo que faço.
Se muitas vezes respondo por vozes que desconheço, é simplesmente porque desconheço todas as vozes que me compõe.