LINGUÍSTICA E GRAMÁTICA NORMATIVA NO MUSEU DA LÍNGUA PORTUGUESA Heloisa Mara MENDES Universidade Federal de Uberlândia hlsmnds@ileel.ufu.br

FONTE: Anais do SIELP. Volume 2, Número 1. Uberlândia: EDUFU, 2012. ISSN 2237-8758

http://www.ileel.ufu.br/anaisdosielp/pt/arquivos/sielp2012/472.pdf

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Essas considerações nos levam a supor que o Museu da Língua Portuguesa,

incontestavelmente um aparelho ideológico do Estado, de difusão do discurso oficial sobre o

português em nosso país, convoca, exibe o linguístico para o prescritivo funcionar; um

linguístico depurado, um linguístico em conformidade com a grade de leitura da instituição.

Iniciaremos nossas análises dos quadros que formam o painel, retomando o enunciado

(1), apresentado na introdução deste trabalho e reproduzido novamente abaixo. Além desse

enunciado, Erros nossos de cada dia expõe outras duas ocorrências de relativas cortadoras:

(1) Tenho medo que ocorra um terremoto aqui.

(2) As ideias que concordo são sempre as menos radicais.

(3) Eu gostaria que ela não viesse para cá.

Para essas três ocorrências, a exposição prescreve o emprego da forma descrita nos

manuais de gramática normativa, ou seja, com a oração relativa precedida de preposição. Não

há qualquer tentativa de explicar a supressão da preposição. Nos quadros (1) e (2), a

prescrição é ora relacionada à escrita, ora relacionada à fala. No quadro (3), há a ressalva de

que “ao menos na língua formal” o complemento oracional de verbos regidos de preposição

“deve vir” preposicionado. Que língua formal é essa?

Com relação às orações relativas, Tarallo (1983, apud RIBEIRO, 2002) descrevia

como sendo, desde 1880, característico do português brasileiro o uso de relativas cortadoras,

relativas lembrete (Conheço uma menina que ela só gosta de música clássica) e ausência de

cujo (A casa que as janelas (dela) estão quebradas). Ribeiro (2002), por sua vez, afirma que

essas construções são usadas frequentemente por universitários do curso de Letras sem que

apresentem qualquer julgamento de estilos socialmente mais aceitos com relação a essas

relativas.

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Acrescentamos que orações como (1), (2) e (3) são facilmente encontradas nas

modalidades oral e escrita do português brasileiro atualmente, o que parece inviabilizar a

manutenção da prescrição que toma corpo no museu.

De acordo com Galves (2002), o português do Brasil se diferencia do português de

Portugal e das demais línguas latinas por ser uma língua de tópico. Grosso modo, a frase do

português do Brasil teria a estrutura SN [SN V (SN)], diferentemente da frase do português de

Portugal, cuja estrutura seria SN [V (SN)], o que equivale a enunciados como Maria, ela fez a

comida, em que Maria é o tópico, ou seja, aquilo sobre o que se vai dizer alguma coisa, e

Maria fez a comida, respectivamente. Para essa autora, a estrutura de tópico do português

brasileiro é uma característica que explica vários aspectos particulares da nossa língua, entre

eles, o uso do pronome ele como objeto, ele como sujeito, ele como objeto de preposição.

Esse último aspecto está intimamente relacionado com o funcionamento das relativas.

Com relação ao uso do pronome ele como objeto, a mostra expõe uma ocorrência:

(4) Eu vi ela na festa.

Como em todos os demais fatos linguísticos abordados na exposição, há a prescrição

para que se “dê preferência, na língua escrita,” aos pronomes oblíquos: “eu a vi na festa” ou

“eu vi-a na festa”. Apesar de frases como (4) serem muito comuns no Brasil, em Portugal essa

é uma construção inexistente, o que nos leva a supor que o modelo de língua para o museu, ao

prescrever o uso da forma canônica, é o da antiga metrópole.

O uso de ele como sujeito também é diferente no Brasil e em Portugal. Para Galves

(2002), no português do Brasil, o ele como sujeito é a construção preferencialmente

empregada, em detrimento das construções com sujeito nulo. Em Portugal, diferentemente,

construções com sujeito nulo são mais frequentemente empregadas, e o ele como sujeito

aparece quando é necessário marcar a concordância ou contraste. Enquanto no Brasil temos,

por exemplo, eu tinha um vizinho que ele gostava de ouvir música alta, em Portugal, a

ocorrência mais é comum é eu tinha um vizinho que gostava de ouvir música alta.

Em Erros nossos de cada dia, a construção com ele como sujeito, tal como a

enumerada por Galves (2002), não é apresentada, mas há o registro de ele como sujeito ligado

a uma preposição e o registro de mim como sujeito de verbo no infinitivo.

(5) O fato dele não saber inglês o incomoda.

(6) Isto é para mim fazer.

No primeiro caso, há a afirmação de que “sujeitos não são preposicionados”,

contrariando o uso efetivo da língua pelos brasileiros; e, no segundo, a de que “a língua

escrita culta ainda preserva o pronome reto nessas frases: “para eu fazer”.

Outro fato morfossintático que dificulta definir características próprias à norma

popular em oposição à norma culta, como parece pretender o Museu da Língua Portuguesa,

diz respeito à concordância verbal. Partindo do que é exposto em Erros nossos de cada dia,

apenas (7) permitiria a afirmação de que a ausência de concordância é característica das

variedades populares, visto que se trata de um uso bastante estigmatizado em nossa sociedade.

As frases (8), (9), (10) e (11) são realizadas, de um modo geral, pela maioria dos brasileiros,

não caracterizando uma ou outra variedade:

(7) A gente vamos à escola todos os dias.

(8) Os padrões de previsão do tempo, devido ao aquecimento global, varia.

(9) Faltou as respostas mais interessantes.

(10) Tu sabe de uma coisa?

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(11) Vende-se casas.

O comentário que acompanha (7) confunde variação com mudança no que diz respeito

tanto ao emprego de pronomes sujeito quanto à concordância sujeito-verbo:

Os pronomes pessoais estão passando por grandes transformações no

português brasileiro: você (em lugar de tu) a gente (em lugar de nós) são

exemplos disso. Acontece que às vezes começamos a frase com um

“pronome novo”, mas conjugamos o verbo como se ali ocorresse o

“pronome antigo”. Isso explica a frase abaixo [7]. O português culto resiste

a essas mudanças. Portanto, ainda se deve dizer: “a gente foi à escola todos

os dias” (MENAS O CERTO DO ERRADO, O ERRADO DO CERTO,

2010, p. 30, destaque nosso.)

A primeira confusão está relacionada à “transformação de tu em você e de nós em a

gente”. Não é necessário ser linguista para saber que as quatro formas coexistem e são de uso

geral, com exceção do pronome tu que parece ter o uso mais concentrado no Rio Grande do

Sul, no Rio do Janeiro e no Nordeste

7

. Em estudo realizado por Freitas, Franco e Cardoso

(1986, apud RIBEIRO, 2002), foi observada uma variação na frequência de uso das formas

nós e a gente, em falas cultas formais, mas a ausência total de a gente não foi registrada. A

segunda confusão refere-se ao fato de a alternância entre as formas pronominais justificar a

ocorrência de (7). Acreditamos que seria mais apropriado falar, nesse caso, em hipercorreção,

um esforço consciente para não “errar”, para mostrar domínio das normas explícitas da língua.

A terceira confusão remete à não diferenciação, por parte da mostra, entre variação e

mudança. É prematuro afirmar que “a gente vamos” é uma mudança na língua. Esse tipo de

afirmação pressupõe que todas as formas concorrentes (nós vamos, a gente vai, nóis vai)

foram suplantadas. Seria mais prudente se a afirmação destacada na citação mencionasse a

resistência a essa variante, uma forma entre tantas outras.

As frases (8) e (9) apresentam, respectivamente, distância entre o sujeito da oração e o

verbo e posposição do sujeito ao verbo, aspectos que, no português brasileiro, facilitam que a

concordância entre o sujeito e o verbo no plural não se dê da forma como é prescrita. Ambos

os casos são recorrentes na fala e na escrita dos brasileiros, inclusive de brasileiros com alto

nível de escolarização.

No Brasil é também comum construções como está escrevendo, com estar

+ gerúndio, não comum em Portugal, onde se encontram expressões como

está a escrever, com estar a + infinitivo (GUIMARÃES, 2005, p. 26).

Com relação a (8), a interposição de “devido ao aquecimento globlal”, ou seja, de

palavras no singular, favorece a singularização do verbo. Fato semelhante, e igualmente

recorrente nos usos efetivos que os brasileiros fazem da língua, ocorre quando há, entre o

sujeito no singular e o verbo, a interposição de palavras no plural. Nesse caso, a pluralização

do verbo é favorecida:

Por outro lado, a pesquisa linguística levada a efeito por grandes projetos

coletivos dos anos 70 confirmaram a hipótese de Nelson Rossi sobre o

policentrismo da sociedade brasileira, nucleada – após a intensa urbanização

do país – no Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul (CASTILHO,

2006?).

7

Enquanto tu sabe caracteriza o uso sulista do português brasileiro, a forma tu sabes ainda ocorre em algumas

variantes regionais, como a de Maranhão, por exemplo.

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Quando o enunciado está na forma canônica, ou seja, SV (sujeito-verbo), a não

concordância verbal é cercada de reações preconceituosas dos falantes urbanos letrados.

Diferentemente, um enunciado na ordem VS (verbo-sujeito), como (9), aparentemente, não

sofre avaliações negativas e/ou correções do lado de fora do Museu da Língua Portuguesa.

O comentário que acompanha o enunciado (8) é taxativo:

o núcleo do sujeito da oração é “padrões”, que está no plural. Portanto, o

verbo deve estar no plural também: “os padrões de previsão do tempo,

devido ao aquecimento global, variam” (MENAS O CERTO DO ERRADO,

O ERRADO DO CERTO, 2010, p. 27).

O tom prescritivo, que predomina nos comentários, é amenizado com relação a (9).

Após prescrever a “construção adequada ao padrão culto da língua”, a recorrência de

construções como (9) no português do Brasil é reconhecida: “É forte a tendência do português

brasileiro a eliminar a concordância do verbo com o sujeito quando ele vem posposto, como

no caso” (MENAS O CERTO DO ERRADO, O ERRADO DO CERTO, 2010, p. 30).

O enunciado (10) é exemplar de uma mudança em curso no português brasileiro, a

redução das seis formas do verbo conjugado a apenas duas ou três: eu amo, tu/ele/a

gente/vocês/eles ama ou eu amo, tu/ele/a gente ama, vocês/eles amam, sendo a primeira mais

estigmatizada do que a segunda. A explicitação do sujeito pronominal parece tornar

redundante o emprego das formas verbais com terminações número-pessoais

8

. Nas regiões em

que o pronome pessoal tu é largamente empregado com a forma verbal da terceira pessoa do

singular, seus usuários não sofrem qualquer sanção ou avaliação negativa.

Sobre enunciados como (11), em que há uma oração passiva sintética, por mais que os

aparelhos de referência insistam no fato de que casas é o sujeito da oração e, portanto, o verbo

“deve” concordar com o sujeito que está no plural, no uso, enunciados desse tipo são

interpretados como tendo sujeito indeterminado e casas como complemento do verbo vender.

Em Erros nossos de cada dia, a frequência cada vez maior de (11) é reconhecida, mas, em

medida alguma, o comentário que acompanha o enunciado se desvencilha de seu caráter

normativo:

Embora essa construção ocorra com frequência cada vez maior no português

contemporâneo, na linguagem culta escrita ainda é comum encontrar o verbo

no plural: “vendem-se casas” (ou seja, casas são vendidas) (MENAS O

CERTO DO ERRADO, O ERRADO DO CERTO, 2010, p. 34).

Ao contrapor “português contemporâneo” a “linguagem culta escrita”, na citação

acima, há um efeito de sentido de que a forma “mais pura” do idioma estaria nos usos mais

antigos e de que o uso atual não teria o valor “culto”, tomado como intrínseco à escrita.

O valor culto atribuído à escrita é recorrente em quadros sobre as realizações e

colocações de complementos pronominais. De acordo com a mostra, são exemplos de

colocação de complementos pronominais:

(10) Mandarei-te aquele e-mail amanhã pela manhã.

(11) Não lhe conheço.

(12) Fi-lo porque qui-lo.

8

A ocorrência frequente de sujeito explícito nas construções sintáticas é indicativa de outra mudança em curso

no português brasileiro, a saber, a passagem de uma língua + pro drop para uma língua – pro drop, isto é, cujas

sentenças requerem a presença de um pronome devido ao “esvaziamento” morfossintático das formas verbais.

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Sobre (10), podemos afirmar que não se trata de um uso recorrente na fala e na escrita

dos brasileiros, a não ser por hipercorreção.

A mesóclise com as formas de futuro, “Dir-te-ei uma coisa”, está

praticamente banida da fala brasileira [e também da escrita], ocorrendo ainda

em algumas formas estereotipadas, clichês [ou em contexto escritos

estritamente formais]. A forma em uso mesmo é “Te direi uma coisa” o que

conduz a uma segunda questão: uso do pronome em início de sentença,

condenado pelos gramáticos, mas em realização frequente pelos brasileiros,

independente do nível de escolarização (RIBEIRO, 2002, p. 375).

O conservadorismo da mostra é tanto que, em (10), foi feita opção por uma forma não

representativa do português brasileiro em função de uma norma gramatical, a que proíbe o

uso de pronome em início de sentença. Realizações efetivas como te mandarei um e-mail

amanhã não são um fato isolado, mas estão relacionadas ao abandono da ênclise no português

brasileiro. Para Ribeiro (2002), a perda da mesóclise e a perda da ênclise não deixam outra

opção estrutural para os brasileiros senão a de iniciar sentença com clítico, uma escolha que

recobre variedades mais e menos padrão.

O uso de lhe como acusativo, tal como exemplificado em (11), ainda de acordo com

Ribeiro (2002), é constante nas falas dos brasileiros, sem qualquer distinção entre falantes

com níveis de escolarização diferentes. Em medida alguma, o comentário que acompanha

(11) restringe-se a registrar usos linguísticos em situação de concorrência. O comentário é

prescritivo e associa a escrita, como em exemplos anteriores, ao que é chamado de “padrão

culto da língua”. Novamente, a exposição trata como mudança aquilo que, no meio

acadêmico, é definido como variação.

Com a mudança do quadro dos pronomes pessoais no português brasileiro,

algumas formas estão desaparecendo, como o, a, sendo substituídos por lhe,

como no caso abaixo [11]. Na escrita, entretanto, prefira “não o conheço”,

pois o pronome “lhe” funciona, no padrão culto da língua, como objeto

indireto e o verbo conhecer pede objeto direto (MENAS O CERTO DO

ERRADO, O ERRADO DO CERTO, 2010, p. 30).

O enunciado (12) é uma espécie de folclore em torno da língua e em torno de Jânio

Quadros, ex-presidente do Brasil conhecido por suas frases de efeito e por sua erudição, e não

configura um uso típico do português brasileiro. Conforme apontamos anteriormente, há, no

Brasil, a perda progressiva da ênclise, o que favorece enunciados como o fiz porque quis (com

o pronome proclítico), fiz porque quis (sem o emprego do clítico) e fiz isso porque quis (com

um demonstrativo como acusativo). No comentário, a primeira ênclise é mantida e a segunda

é corrigida, porque é assim no “padrão culto brasileiro da língua” dominado quase que

exclusivamente por gramáticos normativistas:

Esta frase, atribuída ao ex-presidente Jânio Quadros, provavelmente nunca

foi dita por ele, afinal Jânio era um gramático normativista e sabia que, no

padrão culto brasileiro da língua, a conjunção “porque” atrai o pronome

oblíquo para junto de si. Por isso, Jânio diria: “fi-lo porque o quis” (MENAS

O CERTO DO ERRADO, O ERRADO DO CERTO, 2010, p. 31).

Entre todas as ocorrências relacionadas a empregos de pronomes em Erros nossos de

cada dia, cerca de dez quadros do painel, apenas duas podem ser consideradas como

pertencentes a variedades menos prestigiadas:

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(13) Eu estou fora de si.

(14) Vamos se ver amanhã?

Com relação à concordância nominal, dois quadros, especificamente, interessam para

o que nos propomos, aqui:

(15) Quero duzentas gramas de presunto.

(16) Quebrei meu óculos.

Os enunciados acima são acompanhados de comentários que preconizam “as formas

corretas” no “padrão culto da língua”, isto é, indicam que gramas pertence ao gênero

masculino e que óculos é uma palavra sempre plural, respectivamente. A nosso ver, apenas

(15) é representativo de uma variedade um pouco estigmatizada. Por sua vez, (16) recobre boa

parte das variedades de prestígio, é de uso praticamente geral. Toda a manobra para difusão e

imposição do emprego de óculos como um substantivo masculino plural, por parte dos

aparelhos de referência, é insuficiente, visto que, semanticamente, óculos denota uma única

unidade, sendo assim, se o objeto é considerado como uma unidade, a lógica linguística dos

falantes designa que ele só pode ser referido no singular.

Outros enunciados expostos na mostra sem que fosse considerada a lógica linguística

dos brasileiros dizem respeito ao emprego do pronome indefinido menos e do advérbio meio.

(17) Há menas pessoas aqui do que ontem.

(18) Ela ficou meia cansada.

Obviamente, os comentários que acompanham (17) e (18) fazem remissão ao “padrão

culto da língua” e à invariabilidade das palavras pertencentes à classe dos pronomes

indefinidos e dos advérbios. Nesses comentários, não há qualquer menção ao fato de que

palavras da mesma classe gramatical podem apresentar comportamentos sintáticos diferentes.

O enunciado (17), especificamente, dá nome à exposição temporária, Menas o certo

do errado, o errado do certo, um nome bastante infeliz, visto que seus responsáveis sequer

refletem sobre o fato de que as realizações reais de menas só ocorrem diante de substantivos

de gênero feminino. Nesse sentido, a mostra, seus curadores e, por extensão, o museu erram

(sem aspas) por veicularem algo que, por ora, não configura um uso linguístico efetivo por

parte dos brasileiros.

Questões de regência e flexão verbais também ocupam parte dos quadros do painel.

Para o museu, “modernamente”, os brasileiros falam (19), mas não o escrevem.

(19) Vamos no jogo amanhã?

Em uma rápida pesquisa em um site de buscas, restrita a páginas do Brasil, foram

encontradas 5.710.000 ocorrências para o parâmetro “vamos ao” contra 7.890.000 para o

parâmetro “vamos no”, o que, de alguma maneira, assegura a coexistência de ambas as formas

na escrita.

No comentário (19), há a indicação de que “a preposição a indica com mais clareza o

ponto para o qual nos deslocamos” (MENAS O CERTO DO ERRADO, O ERRADO DO

CERTO, 2010, p. 30). Acreditamos que se essa preposição fosse, efetivamente, mais clara, ela

não seria preterida em algumas variantes do português do Brasil.

Os enunciados sobre flexão verbal também oscilam entre formas mais estigmatizadas,

como (20), menos estigmatizadas, tal como exemplificadas em (21) e formas totalmente

aceitas na variedade mais próxima da norma padrão, exemplificadas em (22).

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(20) Espero que seje bom pra você.

(21) Ele vai vim para a exposição.

(22) Eu explodo de raiva.

O tratamento conferido aos usos de (20) e (21) reafirmam seu não pertencimento à

“norma culta”. Quanto a (22), reproduzimos o comentário abaixo.

Muitos gramáticos e dicionaristas consideram que “explodir” é verbo

defectivo, que, como tal, não deve ser usado na primeira pessoa do singular

do presente do indicativo. Para eles, numa situação como essa, o ideal – no

padrão culto da língua – seria dizer algo como “eu estou explodindo de

raiva”. Mostrando que a língua muda, o Houaiss e outros gramáticos já

admitem a forma “explodo” (MENAS O CERTO DO ERRADO, O

ERRADO DO CERTO, 2010, p. 33, destaque nosso).

O Museu da Língua Portuguesa parece querer se eximir de qualquer responsabilidade

pela prescrição ou não de explodo. O ponto de vista de “muitos gramáticos e dicionaristas” é

apresentado e ocupa dois terços da extensão do comentário. Em seguida, para mostrar que a

língua muda, afirma-se que Houaiss e outros gramáticos admitem a forma explodo. Apenas

aparentemente o museu se exime da responsabilidade, visto que (22) pertence a um conjunto

de ocorrências linguísticas denominadas como “erros”.

Na fala, não há “erro”, há variação. Na escrita, a variação é resultado da incorporação

de ocorrências da fala. Em nossas análises, consideramos que os enunciados analisados até

aqui ocorrem tanto na fala quanto na escrita dos brasileiros. Para esses enunciados, pode-se

falar em variação linguística. Nos enunciados restritos à escrita que analisamos a seguir, não

se pode falar em variação, visto que as variações da representação escrita, decorrentes de

variações fonético-fonológicas, são registradas nos dicionários como formas pertencentes às

variantes oficiais, as quais não têm lugar na instalação em questão.

No painel, as ocorrências que remetem a questões exclusivas da modalidade escrita da

língua são maioria, cerca de quarenta e quatro dos cem quadros. Como elas não configuram

um aspecto de variação linguística propriamente dita do português do Brasil, vamos

apresentá-las brevemente com o intuito de reforçar nossa hipótese de que a representação que

o museu faz do que seja variação é confusa, visto que ocorrências de naturezas muito diversas

são classificadas genericamente de “erros”, além do fato de a instituição tomar como língua a

modalidade escrita da língua.

Os quadros que exploram questões ortográficas podem ser separados em três grupos: o

primeiro grupo explora homônimos heterógrafos e parônimos; o segundo grupo aborda o

emprego da crase; e o terceiro grupo, desvios das normas ortográficas, sendo, alguns deles,

caracterizadores de uma variante oral estigmatizadas.

São pertencentes ao primeiro grupo frases como:

(23) A liminar foi caçada pela desembargadora.

(24) Ninguém tem o direito de me taxar de corrupto.

(25) Alguns parlamentares querem discriminar o uso de drogas.

(26) Aquelas casas germinadas até que ficaram bonitas.

Os comentários que acompanham esses enunciados apresentam o par de palavras e

seus respectivos significados. Em função dos limites deste trabalho, citaremos um deles como

forma de exemplificar.

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Caçar e cassar são homônimos, mantendo sentidos diferentes. Caçar é “sair

à caça”, e a desembargadora não deve ter abatido a liminar a tiros. Cassar é

“suspender os efeitos de uma ação”. Nossa desembargadora foi por aqui: “a

liminar foi cassada pela desembargadora” (MENOS: O CERTO DO

ERRADO, O ERRADO DO CERTO, 2010, p. 27).

Entre os quadros que recobrem inadequações quanto ao emprego da crase, recortamos:

(27) À partir de maio, volta a fazer frio.

(28) De segunda à sábado, suculenta feijoada.

(29) Tudo na loja era vendido à prazo.

Nessas três frases, os comentários que as acompanham reiteram a regra para o

emprego da crase e apresentam a forma adequada de acordo com ortografia da língua

portuguesa.

Os enunciados de (30) a (36) são alguns exemplos do terceiro grupo.

(30) Fiz uma festa beneficiente.

(31) Ele sempre fez o que quiz.

(32) Sem adevogado não se faz justiça.

(33) Não se esqueça de incluir a data no cabeçário da prova.

(34) Aja paciência para tantas exceções!

(35) É preciso colocar fim aos previlégios.

(36) A questão não tem nada haver com você.

É conveniente destacar que, assim como a representação de língua adotada pelo

Museu da Língua Portuguesa em Erros nossos de cada dia e, por extensão na exposição

temporária Menas, é idealizada, como se a língua fosse, de fato, o conjunto das normas

reunidas nas gramáticas normativas e não o conjunto dos comportamentos linguísticos de seus

usuários, a representação que a instituição faz de variante popular tampouco se aproxima das

realizações reais. Parecem-nos inconsistentes fatos como um indivíduo trocar cabeçalho por

cabecário e empregar o verbo esquecer de acordo com sua regência mais tradicional, tal como

exemplificado em (33); enganar-se com relação à grafia do verbo haver no presente do

subjuntivo, mas não com relação à grafia de exceções, como em (34); ou ainda, escrever/

dizer (35), mas não colocar fim nos previlégios.

Em conformidade com o que afirmamos anteriormente, as frases reunidas no grupo

três apresentam questões restritas à ortografia, mas, entre elas, há palavras que, quando são

ditas, caracterizam, mesmo que minimamente, uma variante estigmatizada. Essas palavras são

encontradas em (30), (32), (33) e (35).

Além de todas as ocorrências que relacionamos acima, ainda há espaço na instalação

para bobagens, tais como:

(37) Polícia procura padre sequestrado pela internet.

(38) Pode me incluir fora dessa!

Na mostra, (37) é um enunciado ambíguo, definição da qual discordamos. Um

brasileiro que leia (37) automaticamente aciona seu conhecimento de mundo a respeito de

sequestros e do funcionamento da internet, logo, interpreta a frase de maneira lógica: polícia

procura pela internet padre sequestrado. Não vemos razões para que (37) faça parte dos “erros

nossos de cada dia”.

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O enunciado (38) é o bordão usado por uma personagem de um programa de televisão

humorístico, salvo engano, Zorra Total, da Rede Globo, quando queria ser excluída de alguma

coisa que lhe parecia ser uma cilada. Os bordões são bastante comuns no meio humorístico e

sua repetição gera um efeito cômico. Não raramente, os bordões alcançam as ruas. Na

instalação que analisamos, o bordão, assim como uma série de usos linguísticos legítimos do

português brasileiro, não escapa ao olhar censurador e prescritivista que é adotado no museu:

“incluir fora é uma combinação sintática que deve ser evitada” (MENAS O CERTO DO

ERRADO, O ERRADO DO CERTO, 2010, p. 33).

4. Conclusão

Como nossas análises procuraram mostrar, em Erros nossos de cada dia, há um

discurso da norma que procura manter uma situação de dominação daquilo que se

convencionou chamar de norma culta no Brasil, foi codificada nos manuais de gramática

normativa e dicionários no século XIX e é confundida com “a” língua.

A instalação é confusa. Reúne sob a definição genérica de “erros” uma série de usos

linguísticos de diferentes ordens, define como mudança aspectos ligados à variação

linguística, é incapaz de discernir o que é marcado do que é não marcado no português do

Brasil, assume uma definição de língua como um conjunto de normas, apresenta construções

que sequer constituem exemplos dos usos efetivos que os brasileiros fazem da língua e

comentários que não se limitam a reconhecer que há construções sintáticas em situação de

concorrência no português brasileiro, mas são prescritivos.

A partir da análise dessa instalação, acreditamos que é possível assumir que o Museu

da Língua Portuguesa é mais um aparelho de difusão e imposição da norma padrão em nosso

país, assim como a escola, as colunas de jornal, os manuais de redação e a Academia

Brasileira de Letras. Diferentemente dos demais aparelhos, o museu procura parecer mais

democrático no tratamento dos fatos linguísticos na medida em que expõe questões

relacionadas à variação e tenta incorporar uma multiplicidade de vozes sobre língua, apesar de

fazê-lo de maneira bastante enviesada. Essa diferença não torna o Museu da Língua

Portuguesa menos condescendente com o discurso da norma, vigente em nosso país há mais

dois séculos, que as pesquisas do campo da Sociolinguística procuram modificar.

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