Ensaio sobre o metrô
*O texto a seguir foi decorrente da minha profunda indignação com o sistema de transporte de São Paulo,degradante e desumano.
Eram 7:45 hs quando olhei de relance para os relógios digitais da estação Corinthians-Itaquera.Me encaminhei à plataforma pulsante no momento em que um trem chegava vazio,o instante mais perigoso para se estar lá sem haver feito o devido preparo.
As portas do vagão abrem-se e a turba ensandecida leva-me.Como não houvesse local para segurar-me,finquei um dos pés no chão do vagão enquanto o outro permanecia na plataforma entre a fina linha branca e a amarela,no chão,dita de segurança.
O funcionário do metrô na plataforma apenas olhava a cena se desenrolar,estático,inerte.Entendia que aquilo era natural,as pessoas precisavam chegar ao trabalho onde cada minuto de atraso era uma mordida do chefe em suas carnes torturadas,um rasgo em seus orçamentos.Eles estavam certos em seu agir;podia-se ouvir,quando subitamente a multidão silenciava,os rugidos longínquos dos cruéis relógios de ponto reclamando a subserviência das almas empregadas que lutavam bravamente na plataforma.Tudo nos conformes.Tudo como tinha de ser.
Eu continuava.Um pé dentro do trem outro na plataforma,enquanto simulacros humanos chegavam às dezenas,empurrando-me.
O funcionário olhava,divertido,enquanto eu tentava me fixar na plataforma antes que as portas se fechassem sobre mim como dentes.
Creio que seria um espetáculo digno de entreter Césares.O veículo arrastando o corpo com força brutal,dilacerando-o em mil pedaços tristes ao longo dos trilhos.Um espetáculo digno de se capturar em dispositivos móveis e enviar,em tempo real para as redes sociais.Imaginem como seria curtido o link de um estraçalhamento ao vivo.Os simulacros humanos olhavam atentos o desenvolvimento da ação,exultantes,eu sabia,mas nada transparecia em seus rostos inumanos.
Frustro as expectativas de todos quando me seguro nas barras de proteção da plataforma e consigo tirar o pé do local fatídico,milésimos de segundos antes de o trem seguir viagem com seu rotineiro excesso de carga.
Não deveria pensar que os passageiros são tratados como carga.Isso não corresponde à verdade.Se fossem tratados como carga,seja de frutas,seja de animais,seja de peças de computador,haveria algum cuidado na armazenagem,para não danificar.Agora,que importa se seres humanos sofrerão alguns arranhões,cairão uns por cima de outros,se não terão um metro cúbico de ar para respirar,se estão sofrendo o roubo de sua dignidade,se tudo isso é natural?
Tudo isso compensa.Todo esse martírio,toda essa submissão,tudo será compensado quando esses seres humanos transmutados em coisas chegarem a seus respectivos trabalhos no horário certo,acalmando então a ira dos relógios de ponto e dos chefes ensandecidos.Tudo compensa,dizem consigo mesmos os simulacros.
Outro trem passa e eu me vejo no front.Esclarecendo as coisas,front é o termo que utilizo para designar a primeira fila de pessoas que esperam o trem seguinte e é localizado bem próximo à linha branca no chão,mencionada no início do texto.Estar lá não garante que irei entrar no próximo trem e conseguirei (cúmulo do egoísmo!) ir sentada durante o trajeto de uma hora,mesmo porque o próximo trem passará vazio,como anuncia a voz cavernosa nos alto-falantes.
O aviso é dado porque antes do veículo estar alinhado,a massa humana em efeito cascata costumava se atirar para portas que não irão se abrir,que nem mesmo permanecerão ali,o que já gerou inúmeras mortes de fazer inveja às mostradas em filmes "trash" de terror.
Só por isso é dado o aviso.Um humano estilhaçado faz uma sujeira sem par,dá trabalho aos funcionários e atrasa a rotina dos demais,embora propicie macabra diversão,porém não podemos esquecer dos chefes e relógios de ponto.Eles aguardam irritados.
O próximo trem chega, alinhando-se à plataforma.Ainda está em movimento,mas sinto a pressão de mil corpos sobre minhas costas que não são das mais fortes.Isso não me deixa esquecer minha posição no front.
A porta se abre e eu não penso:”Ah,agora vou entrar!” mas sim questiono de onde,céus,se materializou a manada de antílopes selvagens.Não há o que fazer.Sou empurrada pelo fluxo e me vejo sentada num dos bancos,mas não sem antes perceber meus pés pisoteados por algum casco pontiagudo de antílope selvagem.Mutante.
O cenário à minha frente torna-se negro,uma substância única composta de várias pessoas amalgamadas,chacoalhando,resignadas.
Em minha mente um questionamento a me dilacerar o cérebro: o trabalho dignifica o homem ou na maioria das vezes o torna coisa,o torna massa moldável e passiva?A reflexão vai de encontro ao que presencio que é apenas uma faceta de todo o problema.As pessoas em pé no vagão olham através de mim e sinto como se dissessem penalizadas:”Tola...ainda acha que pode mudar o mundo...Mal sabe que não há mais como...”
Aquele pensamento de todos os seres presentes no vagão amplificado e tornado um,me afetou e o confesso.
O veículo chega a seu destino que é a estação de transferência,Sé da linha três vermelha da CPTM e eu já me sinto um tanto zumbificada.As vozes ecoando aquela sentença imutável em minha mente,como um mantra quase me faz colidir com a nova multidão que encontro ao sair do trem.
Uma coisa me chama a atenção em meio ao tumulto:uma minúscula e curiosa plantinha verde brotando do chão emborrachado.As pessoas não notam e a pisoteiam,mas como que por mágica ela cintila numa graciosa luz verde e se reergue como vi acontecer repetidas vezes enquanto levava encontrões e ouvia impropérios da multidão.Eu estava atrapalhando o tráfego e tinha consciência disso,mas não conseguia desviar os olhos da plantinha;era como se me vivificasse novamente,afastasse de mim a ameaça de me tornar também parte daquela macabra engrenagem.Olho mais um pouco,sorrio e prossigo.