Em “Asas”, de Flávio José Cardozo : a janela e seus descortínios

Em “Asas”, de Flávio José Cardozo : a janela e seus descortínios

A palavra:

tece enredos na magia da Ilha,

galopa memórias resfolegando nos trilhos da ferrovia,

espia a vida entre as fendas das encostas,

é compassiva com as existências mergulhadas

nos abismos do carvão.

Era quando nasciam os anos 80. E eu em busca de um universo onde encontrasse um tema para compor minha dissertação de Mestrado em Literatura Brasileira, cursado na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Meu orientador, Professor Celestino Sachet, e sua consciência da importância de estudos que se tornassem enunciadores da grandeza da Literatura Catarinense.

Minhas leituras, naqueles anos 80, e entre elas “Singradura” e “Zélica e outros”, enredando um universo ficcional em tramas de contos e crônicas escritos por Flávio José Cardozo. Nas trilhas destas duas obras, outras vieram fazendo seus caminhos, e aqui cito algumas: “Água do pote”, “Longínquas baleias”, “Beco da lamparina”, “Senhora do meu desterro”, “Guatá”, “Sopé”.

Minha decisão: empreender um estudo sobre os contos publicados em “Singradura” e em “Zélica e outros”, entendendo-os numa dimensão trágica em que heróis nada clássicos viviam experiências do aniquilamento de felicidades sonhadas, pequenos e essenciais desejos. E assim foi.

Lembro Uliano Torres na breve posse da japona tão cobiçada. Reencontro Isolina. Ela, que sempre fora dita pata choca, de repente embriaga-se na felicidade de ser chamada Ti’Orquídea , pelo estudante Rogério, precária e intensa ilusão. E, retornada à condição de pata choca, Isolina entrega-se à experiência do aniquilamento. Sem o gesto teatral da dor, como convém ao herói trágico, recolhe-se a si mesma à espera da morte.

E agora, em 2009, “Sopé” traz a vida-realidade da infância ao pé da serra, narrada pela ficção. Das encostas da serra e dos abismos do carvão vêm despertando imponderáveis memórias que a palavra poética vai transubstanciando em vinte crônicas e dois contos.

Crônicas e contos, onde cada um dos fatos, cada uma das personagens supera os limites de acontecimentos e pessoas reais. E uma a uma, cada narrativa vai se tornando múltipla de significados, para universalizar-se em incontáveis leituras.

Isto porque, nesta ou naquela crônica, neste ou naquele conto, estarão vivendo personagens sob cujas máscaras poderão abrigar-se alegrias, tristezas e indagações de que se povoa a condição humana.

A primeira das vinte crônicas tem como título “Sobrevivente”, e de si mesmo o escritor/narrador declara: Saibam que o autor destas linhas não é qualquer um – ele pode considerar-se muito bem um vitorioso, um campeão. (CARDOZO, 2009,p.15). E, quando a crônica vai se aproximando de seu final, , do abismo do carvão vem vindo a insólita memória da infância a que ele sobreviveu, vitorioso, driblando a velha Ceifadora:

"Ainda por esses dias, numa rápida chegada ao velho distrito, passei em frente ao Cemitério Santa Clara e lembrei, numa névoa, a vagarosa imagem dos cortejos – meninos de um lado, meninas de outro – que saíam da vila operária, subiam a curva dos Doneda e iam botar na terra preta, à sombra dos eucaliptos, os caixõezinhos brancos em que dormiam os que não resistiram às doenças e às águas contaminadas. Olhávamos sem medo, sem pena, as mães choravam por todos" (CARDOZO, 2009, p. 16).

Foi assim com Ivinho, o menino de Mirta e Irineu, sobrevivente apenas na lembrança, trazida do passado pelo escritor/narrador, no conto “Asas”, a última das memórias que compõem, não apenas “Sopé”, mas também “Guatá”.

Uma janela e Valmira a emoldurar-se dentro dela, espionando a vida, sabe Deus com que intenções nos olhos. Vó Querubina, Maria Querubina, de dentro do quarto, espreitava a vida lá fora, com olhos de atravessar paredes. Ou seria pelos olhos de Valmira, a neta, que Vó Querubina, na contradição de anjo e ameaça, saberia das vontades de Deus?

Vó Querubina, sentada na cama é a fragilidade de um feixinho de ossos e pele cor de zinabre, cabeça baixa e pensadora, mãos a mexer nos bordados (CARDOZO, 2009,p.125). Mas é a voz-profecia dos desígnios de Deus. Descortina, sem estar à janela, o destino de tantas pessoas, que parece ter nas mãos. A mexer nos bordados, torna-se, quem sabe, a síntese das três Parcas: é Cloto, a fiandeira, que na roca vai tecendo o fio dos dias; é Átropos, a que faz girar o fuso e fia o Destino; é Láchesis, a que corta o fio da vida.

Que imagens nascem, desenhadas ponto por ponto, no bordado, e obedecendo à vontade das mãos de Vó Querubina? Que “vontades de Deus Pai” vão sendo fiadas na misteriosa roca dos olhos reclusos desta Parca recolhida na fragilidade da velhice, entre paredes? Vigilante, à janela, com olhos de “maus desejos”, Valmira quer saber:

"- Vó?

- Sim, Mirinha.

- O que é que está acontecendo na casa dele, que vai tão ligeirinho?

A velha junta as duas mãos, como que para rezar. Dizem que sempre fazia assim diante de determinadas perguntas. Responde:

- Foi a Santíssima vontade de Deus Pai, minha neta, a vontade do Senhor Deus todo-poderoso.

É pouco, Valmira quer saber mais:

- A vontade de Deus Pai foi com quem hoje, vó Querubina?" (CARDOSO, 2009, p.126)

Desta vez foi com o Irineu da Mirta e com Ivinho. Irineu, que no nome traz a paz. Mirta, nome de planta que se embeleza de flores brancas e perfumadas, símbolo da amorosidade. Ivinho, cuja origem inglesa do nome significa "o que está pronto" (SCOTTINI, 1999, p. 131,134, 180).

Da janela, os olhos de Valmira se estendem ciumentos, malfazejos, sobre a florescência branca e perfumada da felicidade de Irineu. Deveria ter sido a escolhida, porque seu destino assim estava declarado, no nome que lhe fora dado:" Valmira, a escolhida" (SCOTTINI,1999,p 256). Mas não, Mirta fez-se a eleita de Irineu; Valmira, a rejeitada.

Nascem temores, maus presságios nas asas do morcego do sonho, primeiro amedrontando Mirta, depois, Irineu:

”Outro dia Mirta veio falar de um sonho:

[...] tinha sonhado com um grande morcego batendo as asas em cima da casa, um morcego preto batendo as asas e que fez tudo ficar na sombra, fez tudo ficar gelado [...] ‘Irineu, tenho tanto medo, ela murmurou.Ele brigou: diacho, só tinha aquilo na cabeça? Queria mostrar que era um pai de coragem, de fé; logo adiante, no entanto, a emoção o traiu: caminhando para o serviço, sentiu-se vendo o que Mirta vira em sonho – sim, sim, as asas de um grande morcego batendo em cima da casa, asas pretas e peludas, e debaixo delas uma sombra muito fria" (CARDOZO, 2009,p. 130 e 131).

Jean Chevalier e Alain Gheerbrandt, em “Dicionário de símbolos – Parte II – H a Z” (1997, p. 512), ao indicarem uma simbologia para a janela, assim dizem: “Enquanto abertura para o ar e para a luz, a janela simboliza receptividade. Se a janela é redonda, a receptividade é do olho e da consciência (caraboia).” Este simbolismo da janela pode inscrever-se no contexto de uns olhos e quatro consciências, no conto em análise.

Os olhos de atravessar paredes, de Vó Querubina, e sua consciência-fiandeira da vontade soberana de Deus Pai "[...] - Deus quer seus anjos, seus anjos" (CARDOZO, 2009, p. 126). Os olhos magoados de Valmira e sua consciência, em maus desejos, olhos de cumplicidade com Vó Querubina, com a parca fiandeira do Destino. E é como se Valmira fosse investida dos poderes da avó, porque, na consciência, na alma ferida pela rejeição , girando o fuso dos desejos, ia tornando cada vez mais desejo o seu desejo ( CARDOZO, 2009,p.131).

Aos olhos de Vó Querubina e de Valmira descortina-se a luminosidade do universo branco, perfumado e amoroso, a envolver Mirta e Ivinho numa paz assegurada por Irineu. Mas havia os olhos de Valmira e o sonho, o voo ameaçador em forma de medo atormentando a alma de Mirta, rondando a consciência, os pensamentos de Irineu:

"Mas o que acontecia com Ivinho, as asas de morcego no sonho de Mirta, esses pensamentos seus que nunca teve, tanto meninos se indo... isso vinha em nuvem junto com a imagem poucas vezes vista de Querubina e com a imagem desgostosa de Valmira, agora, sempre na janela, na hora em que ia e vinha. Ah, bobagens, bobagens. Não tinha mais nada com Valmira, de nada ela podia ter queixa, não deu certo entre os dois é porque assim tinha que ser, cada qual tem seu caminho na vida, por que pensar que ela lhe pudesse desejar o mal, a ele e aos seus dois entes mais queridos, e que a avó Querubina ... não, não, tudo é bobagem que sai da cabeça" (CARDOZO, 2009, p. 131).

A coragem e a fé lutavam contra as asas do morcego: a estampa de Jesus entre os meninos na parede da casa, e Mirta enxergava Ivinho entre eles, era proteção:

"Os dois nunca se voltaram tanto para um quadro na parede. E Irineu nunca acreditou tanto na mensagem de amparo que havia nele como agora, nesta manhã de cores imprecisas, nunca a imagem de Jesus tão carinhoso com os pequenos foi mais resplandescente. Nem de longe ia hoje avistar a janela de Valmira, ia com Cristo" (CARDOZO, 2009, p. 133).

Entretanto, o Destino fora tecido, no fio dos dias em que os olhos de Valmira viam descortinar-se, para além da janela, os passos de Irineu.

E Vó Querubina, mexendo bordados, ia fiando os desejos da neta: que Irineu conhecesse os abismos do carvão, de suas águas, lençóis de morte.

"Se não ter dado certo entre Valmira e Irineu era o que estava predestinado, da mesma forma, para Mirta e o marido, nada poderia mudar o vaticínio das asas do morcego, da soberana vontade de Deus.[...] Valmira é minuciosa: - Que anjo Deus quis hoje, vó? O do Irineu da Mirta, ai meu anjinho – e tosse que tosse a velha Querubina. Pede água, espragueja" (CARDOZO, 2009, p. 127).

Maria Querubina é anjo exterminador assinalando a casa de Mirta e Irineu.

Cumpria-se a profecia do sonho: os olhos mal desejosos de Valmira, Vó Querubina / Láchesis e a vontade de Deus cortaram o fio da vida. A casa de Mirta e Irineu fora assinalada:

"Irineu viu um caixãozinho branco com enfeites de azul no meio da sala, e viu duas filas, meninos de um lado, meninas de outro, levando mais outra alminha para o céu. Mirta sonhou. Ele também estava sonhando?” (CARDOZO, 2009, p. 131).

Sonho profético, irreversível e absurda vontade de Deus Pai.

Ivinho, e assim lhe era devido por seu nome, “estava pronto”. Daria sossego aos desejos de Valmira. Mergulharia na terra, nas fendas dos abismos do carvão e seus negros lençóis. Subiria encostas, alcançaria outras paragens iluminadas:

Vem uma quase festa na tarde gris:

[...] "um menino a tocar clarineta entre meninos de alegres asas, indo, se indo por um céu que se abre em azul triunfante para além da Serra" (CARDOZO, 2009, p. 136).

E, no sopé da Serra, prostrada aos pés do Cemitério de Santa Clara, Mirta chorará por todas as mães. E ali também, Irineu chorará por todos os pais.

Maria Felomena Souza Espíndola

Bibliografia

CARDOZO, Flávio José. Sopé. Palhoça: Editora da Unisul, 2009.

CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: Parte II- H a Z. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1997.

SCOTTINI, Alfredo. Dicionário de nomes. Blumenau: Editora Eko, 1999.