O OFÍCIO DO MAÇOM

O oficio de construtor sempre teve um caráter sacro, uma mística própria, uma aura de espiritualidade que o tem acompanhado através dos séculos. Começa já pelo fato de que as primeiras construções humanas de vulto estarem voltadas para um objetivo francamente espiritual, já que elas se destinavam a prover moradas para os deuses e para o espírito do homem. Assim, os  homens da antiguidade construíam casas toscas para abrigar a si e suas famílias, mas erguiam suntuosos templos para seus deuses e magníficas tumbas para seus cadáveres, denotando aí o caráter religioso que desde logo a arquietura assumiu entre os antigos.

Daí a uma sacralização do ofício do construtor foi um passo. Vamos encontrar já no Egito e entre as antigas civilizações da Mesopotâmia, Índia e China, um intenso apelo místico nas técnicas de construção usadas pelos arquitetos desses povos. Ruínas desses antigos monumentos que resistiram à ação dos séculos, nos mostram o quanto essas construções, e a arte daqueles que as construíram estavam impregnadas do espírito religioso que os inspiraram, tanto na técnica utilizada na sua construção, quanto no objetivo para o qual foram construídos.

Nem se precisa invocar a mística do Templo de Jerusalém, principal arquétipo da arquitetura antiga, para justificar o quanto o espírito dos antigos construtores estava ligado à ideia de que a morada dos deuses na terra deve imitar, tanto quanto possível, a morada deles no céu, ou quer que os deuses morem. Daí as recomendações tão misteriosas quanto bizarras que Deus dá a Moisés para a construção do Tabernáculo, que seria o  modelo segundo o qual o Templo de Jerusalém seria construído mais tarde. Recomendações que seriam mais tarde repassadas à Salomão, quando este iniciou a tarefa de construir o famoso Templo.

Não é toa, portanto, que os maçons tenham buscado na mística dos pedreiros (antigos e medievais) a inspiração para o conteúdo espiritualista de sua prática. Afinal, para uma sociedade cuja filosofia está assentada sobre o simbolismo da construção de uma sociedade justa, igualitária e livre, a mística dos antigos pedreiros, de representar todos os quadrantes do universo, com todas suas formas e leis que o regulam, cabe bem nesse contexto.

René Guenón dizia que uma boa parte do simbolismo maçônico deriva dos pitagóricos, passando pelos conhecimentos utilizados pelos membros dos Collegia Fabrorum. (1) E esse conhecimento foi transferido para os pedreiros medievais que construíram as igrejas góticas. Por isso a antiga maçonaria, dita operativa, era chamada de Arte Real, a arte com ciência, pois era uma arte feita com espírito religioso, ou seja, espírito filosófico. Pois alí, ao construir a morada de Deus na terra, o arquiteto(mestre) e o pedreiro(o companheiro) estava também construíndo a si próprio, no seu espírito, através da ascese que o seu ofício lhe proporcionava.

Havia, portanto, entre o pedreiro livre ( o companheiro), assim chamado o artesão do maço e cinzel- o verdadeiro maçom operativo- e o pedreiro comum, aquele que desbastava a pedra bruta, ou as assentava, uma grande diferença em termos, não só técnicos, mas também sociológicos e cultural. Pois enquanto os primeiros eram os free-stones (pedreiros livres), os segundos eram os rough masons(simplesmente pedreiros). Desses, só os primeiros detinham um "segredo", que era comunicado por iniciação aos aprendizes por eles escolhidos. Esse segredo era a ciência contida na arte de desenhar e construir os edifícios, arte essa que envolvia não só o conhecimento da geometria, principalmente, mas também a técnica da cosntrução, o conhecimento da ductibilidade e resistência dos materiais, etc. (2). Esse conhecimento está claramente expresso no desenho e na construção das igrejas góticas, onde as ogivas são geometricamente calculas e construídas em forma de meio círculo, de forma que suas cordas formem um triângulo equilateral.(3)

A moderna maçonaria perdeu a maior parte dos segredos que a antiga maçonaria hospedava. O que hoje remanesce nos ritos e na simbologia que se evoca nos diversos graus(especialmente do Rito Escocês), são apenas reminiscências de conhecimentos científicos e matemáticos que cairam em desuso com a descoberta de novas técnicas e com o uso da tecnologia moderna de construção. Também pelo abandono do espírito religioso que informava a prática dessa profissão no passado.
Nas antigas corporações de ofício dos companheiros pedreiros, só detinham o grau de mestre aqueles que detivessem um certo preparo científico, expresso principalmente no conhecimento da geometria. Um exemplo nos vem da Loja dos pedreiros de Nuremberg, onde um companheiro, para atingir a mestria devia ser capaz de eleboram o plano de uma igreja, segundo o princípio inscrito num octógono. Devaim assim, conhecer as propriedades das figuras geométricas e suas relações fundamentais com espaço, planos e ambiente, necessárias á uma construção perfeita.(4)

                       
Assim, podemos dizer que, embora o costume de sacralizar seu oficio já existisse entre os artesãos da construção na antiguidade, foi somente na Idade Média que esse costume ganhou status de verdadeira tradição. A transformação da habilidade operativa em ideal especulativo foi a grande realização dos nossos irmãos medievais. Foram esses profissionais, mais religiosos que técnicos, mais místicos que filósofos, que perceberam que o oficio de construtor, pelas suas características de integralização de formas, manipulação de símbolos e conhecimentos de geometria e matemática, era o que mais se prestava para atender á inclinação própria de uma cultura, que como a medieval, não distinguia o esotérico do exotérico. A arte de construir era aquela que permitia ao seu praticante, ao mesmo tempo, o provimento das necessidades profanas, necessárias para ganhar a vida, e uma realização espiritual.
    Especialmente a construção de igrejas, pela mística que nelas se imprimia, era o que mais se prestava a produzir nos seus construtores uma sensação de mágica transcendência, que os fazia crer serem eles os canais pelos quais fluía a própria inteligência divina. Na construção daqueles edifícios monumentais, os artistas da pedra acreditavam repetir o trabalho de Deus na construção do universo.
   Com efeito, a catedral medieval não era apenas o local onde os homens podiam sentir-se em comunhão com Deus. Ela era um simulacro do universo, onde todas as manifestações da existência humana se condensavam e encontravam o devido encaminhamento. Fulcanelli descreve magistralmente essa síntese do espírito medieval: “ Santuário da Tradição, da Ciência e da Arte, a catedral gótica não deve ser olhada como uma obra unicamente dedicada ao cristianismo, mas antes como uma vasta coordenação de idéias, de tendências, de fé populares, um todo perfeito ao qual nos podemos referir sem receio desde que se trate de penetrar o pensamento dos ancestrais, seja qual for o domínio: religioso, laico, filosófico ou social” escreve ele, denotando a densidade espiritual que se condensava naquele edifício, refletindo todas as tendências da vida medieval.  “Se há quem entre no edifício para assistir aos ofícios divinos,” prossegue, “se há quem penetre nele acompanhando cortejos fúnebres ou os alegres cortejos das festas anunciadas pelo repicar dos sinos, também há quem se reúna dentro delas noutras circunstâncias. Realizam-se assembléias políticas sob a presidência do bispo; discute-se o preço do trigo ou do gado; os mercadores de pano discutem ai a cotação dos seus produtos; acorre-se a esse lugar para pedir reconforto, solicitar conselho, implorar perdão. E não há corporação que não faça benzer lá a obra prima do seu novo companheiro e que não se reúna uma vez por ano sob a proteção do santo padroeiro”[4].
   Aí está, portanto, demonstrada de forma insofismável a convergência do espírito humano para um único ponto, onde ele poderia atingir um pico máximo de densidade, facilitando a comunicação com a divindade. Daí o fato da catedral gótica ter sido considerada o arquétipo perfeito de todas as construções humanas, e o modelo ideal para se realizar o aprimoramento do espírito através do trabalho manual. Essa mística, essa elevação da alma aos domínios mais sutis do espírito só iria ser alcançada mais tarde pela prática da Alquimia, que como veremos, visava a mesma finalidade.
   Diante disso, não causa escândalo o costume dos maçons operativos de dizer que Deus era o Sublime Arquiteto do Universo, enquanto eles eram seus Demiurgos, construindo fisicamente os modelos do universo divino. Com efeito, na perfeição das formas, na solidez das estruturas, na harmonia do conjunto, obtida pela perfeição com que se elaborava cada detalhe, é preciso reconhecer, nessa obra máxima da arquitetura medieval, uma construção de espírito, realizada não só a partir da atuação do engenho humano sobre a matéria, mas da própria interação entre os espíritos da matéria trabalhada e do artesão que a manipulava.  Dessa idéia á uma sacralização do oficio do construtor foi apenas um passo.
    
 Jean Palou diz que nos tempos primitivos, o oficio sacralizado já pertencia ao domínio do esoterismo, razão pela qual seus conhecimentos eram transmitidos por iniciação.[5] Isso é verdade, pois embora todos os profissionais da construção, fossem, de certa forma, iniciados, somente a iniciação não lhe conferia uma realização espiritual total. Esta só acontecia com o cumprimento de uma longa cadeia iniciática, na qual se praticava uma liturgia ritual própria, onde o obreiro absorvia o “espírito” da profissão e com ele se interava tornando-se um eleito.”A iniciação”, escreve aquele autor, “em suas formas, em seus meios, em seus objetivos,Una em seu espírito, múltipla, porém, nas diferentes aplicações das técnicas peculiares a cada ofício, pela Sabedoria que preside á elaboração lógica da Obra, pela Fôrça que possibilita sua realização efetiva, e pela Beleza que proporciona o Amor a cada realizador, isto é, o Conhecimento, ajudava o artífice a se despojar do homem velho, para se transformar num novo homem, criador de objetos e forjador de um novo mundo,  finalmente harmonioso.
[5]

   Eis o porquê de não se permitir ao iniciado, inicialmente um mero Aprendiz, compartilhar com os Companheiros-Mestres os mesmos símbolos, senhas, comportamentos e práticas. E mesmo entre Mestres se impunham distinções de grau, pois se todos eram iniciados e ostentavam os mesmos títulos profissionais, muitos poucos, entretanto, eram eleitos, ou seja, tinham obtido elevação espiritual de modo a serem considerados Mestres também nesse sentido.
   Quando a Maçonaria operativa evoluiu para o especulativo, e mais tarde, quando o especulativo integrou á sua liturgia as tradições do Hermetismo e da Gnose, a mística da profissão do construtor aliou-se ao encantamento próprio da prática alquímica e ao apelo emocional contido na mensagem gnóstica. Se anteriormente, o oficio de construtor se realizava num domínio que era antes de tudo religioso e social, passou, depois disso, a preencher um vasto campo no domínio filosófico e espiritual, pois a especulação, mais que a prática pura e simples de uma arte, ou uma técnica, exige mais da sensibilidade do artista do que a razão e a habilidade física requerem dele. O artista, o técnico, que antes aliava o sentimento religioso ás técnicas da sua arte, teve que buscar nos domínios do esoterismo as justificativas para a sua prática. Depois, no inicio do século XVIII, quando a Arte Real incorporou a mensagem iluminista, foi preciso o desenvolvimento de uma liturgia ritual que possibilitasse a divulgação da nova filosofia, mas que, ao mesmo tempo, transmitisse a mensagem iniciática original de uma sociedade que jamais abandonara suas tradições de construção, ainda que essa construção, agora, fosse apenas simbólica. A realização espiritual buscada no exercício do ofício, ou na prática da filosofia hermética, passara agora, a ser uma realização moral, onde o iniciado aprenderia a educar-se para ser virtuoso, a partir de um novo arquétipo de homem, que era o Homem Universal
.(6)

    Assim a moderna maçonaria ganhou um espírito próprio, embalado no ideal dos antigos, vestido com roupas modernas, costuradas pelo pensamento liberal que emergiu do Iluminismo.
 



[1] Jean Palou- Maçonaria Simbólica e Iniciática 
(2) Cf. O manuscrito de York +- 1693
(3) Jean Palou, idem, pg 53
(4) Fulcanelli- O Mistério das Catedrais, pg. 50
[5) Jean Palou- A Franco-Maçonaria Simbólica e Iniciática, pg. 28
(6) Conhecendo a Arte Real- Madras, 2005
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 09/05/2012
Reeditado em 10/05/2012
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