Inapropriadamente, ainda reina nos discursos teológicos, filosóficos e acadêmicos de todo o mundo, a pacífica confusão entre cristianismo e catolicismo e cristianização e catolicização. É que, historicamente, o cristianismo, enquanto imposto como sistema religioso obrigatório aos povos mais subdesenvolvidos ou dominados de todo o mundo, trouxe no seu arcabouço a doutrina católica, já que foram os católicos que inicialmente se esmeraram em expandir seu império religioso mundo afora. Ademais, foram os próprios católicos os primeiros a sistematizar o cristianismo, ainda na origem da chamada “igreja primitiva”. [A rigor, a chamada “Igreja” (que, a esta altura, mais precisamente deve ser chamada de “Igreja Católica”) tem toda sua estrutura dogmática bem distanciada do cristianismo puro e do judaísmo. Outra: que nos referimos aqui a “católicos”, não nos referimos aos seus religiosos seguidores, mas aos políticos eclesiais, ao alto comando da Igreja, que cuidou de expandir a fé católica acima da fé crística mundo afora. Sempre existiram a Igreja Católica e a religião católica, que não são exatamente as mesmas coisas. Os religiosos católicos, que não tinham a consciência política invasiva por trás dos bastidores, exerciam sua fé simplesmente, cuidando-se de sua alma, e é isso o que mais importa para Deus, não a linha religiosa em si que cada um segue.]
Hodiernamente, algumas seitas evangélicas é que tomaram para si o título de “cristão” ou “evangélico” para seus adeptos. Tais formações neocristãs não são necessariamente dissidências de religiões tradicionais específicas, mas, sim, de todo o universo religioso judaico-cristão clássico, embora mantendo a Bíblia como livro sagrado.
Como sistema religioso, o Cristianismo foi fundado por Paulo de Tarso, ainda que só oficializado por Roma no fim do século IV, bem depois da morte do próprio Paulo, e mesmo assim infectado por vários postulados judaicos e pagãos. Difere do cristianismo como estilo de vida baseado na moral evangélica pregada pelo próprio Cristo e que tem como sustentáculo o amor em suas várias manifestações conducentes aos propósitos divinais para cada um de nós aqui na Terra.
O termo “evangélico” também tem de ser entendido no contexto, porquanto a própria raiz “evangel” possui três acepções, a saber: evangélico, como tendo a ver com a boa nova pregada pelo Cristo; o evangelismo como pregação dos apóstolos, discípulos e seguidores contemporâneos de Jesus; e evangélico, como integrante de uma das novas religiões e seitas neopentecostais, também chamadas “gospel” (Evangelho, em inglês).
O certo é que, com lastro na própria Bíblia, há a conhecida grande lição de Tiago: “A religião pura e imaculada diante de nosso Deus e Pai é esta: Visitar os órfãos e as viúvas nas suas aflições e guardar-se isento da corrupção do mundo.” - Tiago 1:27.
Os órfãos e as viúvas aí referidos somos todos nós, em alguma aflição ou em outra, em algum grau de dor ou em outro. Por isso Jesus nos deu o título de irmãos. Devemos nos tratar como tais, nos amando e nos cuidando reciprocamente, nos níveis que cada um precisa circunstancialmente. O nazareno disse que seus seguidores seriam reconhecidos por muito se amarem. Consequentemente toda a humanidade deve integrar essa irmandade. Quem não precisa de ajuda? Quem não tem a sua cruz para carregar? A ladeira é ingrime. Sozinho o tempo todo é difícil subir. Ou os subintes se ajudam um ajudando ou outro a segurar momentaneamente a sua cruz, ou um estimulando no outro a energia da fé e da coragem, para o fortalecimento espiritual. Vale também. Quanto mais cada um puder se robustecer também na fé pauliana, tanto melhor, não exatamente para subir sem precisar de ajuda, mas para melhor subir e também para melhor ajudar quem ainda não tem essa vitamina no sangue espiritual. Tiago e Paulo de Tarso: um complementa o discurso do outro.
[Mesmo sendo uma necessidade imperiosa na transição planetária, fazer a caridade não é necessariamente sustentar sozinho a cruz do outro, não. É dar uma força para que o outro sustente sua própria cruz. Lembra-se do que Jesus disse? “Pega a tua cruz e segue-me”. Mas, como seguir Jesus é praticar as virtudes crísticas, incluídas aí o perdão (a si e aos outros), a paciência, a tolerância e o amor caritativo, logo, o peso da cruz pode até continuar o mesmo, mas nós nos fortalecemos mais em alma e, consequentemente, em corpo. Assim, o peso da cruz fica menos penoso e mais suportável. Ajudar os outros, sem olhar a quem, ou seja, sem discriminar, é seguir o Cristo, conscientemente, ou não. É se estar, em conclusão, se fortalecendo em alma e em corpo. A cruz fica relativamente mais leve. Quando se ajuda o outro, dando-lhe, por exemplo, umas frutas, umas palavras de ânimo, um perdão ou fazendo-lhe um cafuné, para que o outro se fortaleça a fim de melhor suportar a sua cruz, também o doador se fortalece para carregar melhor a sua. Isso é um clássico de qualquer época da humanidade, não é mesmo?]
Se sua religião, seita, filosofia, ciência, doutrina, sociedade iniciática, clube de serviços, ONG, OSCIP, liga, associação, fundação, instituto, ou qualquer organização disseminadora de pensamentos ou de fé a que você pertence, exemplifica e incentiva a todos os seus membros e não membros a vivenciar o código de ética do nazareno, ótimo! Você está bem assessorado. Mantenha o ritmo. Se ela demonstra e prega isso direta ou indiretamente, para dentro e para fora do templo ou da sede, e dentro e fora de seus ritos e dogmas ou estatutos e princípios, então sua organização é um bom meio facilitador. Se não, pratique por sua própria conta a suprarreligião crística. Adiante o seu lado, ou seja, o seu próximo, e permita-se ser adiantado pelo seu próximo, mesmo que ele esteja distante de seus pensares, falares e agires, mesmo que ele seja de uma igreja rival ou de nenhuma igreja. O verdadeiro cristianismo é antes de tudo um sentimento profundo de querer o bem para o outro ou de querer o bem para si mesmo com o bem que o outro lhe quer. Querer o bem já é um começo de fazer o bem a outrem e a si mesmo. O Cristianimo, visto e buscado a partir dessa finalidade maior, fucniona como se fosse uma irmandade geral, onde todos os seres humanos são membros.
O importante não é a estrutura formal que seguimos. O importante é seguirmos o Cristo, ou seja, cumprir suas recomendações diretas, através, ou não, de uma formação socioeclesial. Isso inclui afastar-se da corrupção do mundo, mas não dos mundanos e dos corrompidos. Ao contrário, é ir até onde eles estão para levar-lhes a palavra e o pão da vida e mostrar-lhes opções de crescimento para Deus, da mesma forma com que esperamos que nos sejam mostrados esses mesmos alentos. Mas sem pressão, sem assédio religioso.
Muitos precisam de ajuda e nem sabem disso, porque vivem a gargalhar perante as estimulações extasiantes e drogatizantes do mundo hedônico, enquanto fecham o coração para a dor alheia, por nem percebê-la. Tornam-se egoístas inconscientes, consequentemente presas fáceis de manipuladores ideológicos destrutivos do aquém e do além.
A caridade aqui necessária não é levar a tristeza onde houver alegria, mas é levar a lembrança de que, ao lado e abaixo do nosso infindável mundo de faz de conta anestesiante e gargalhadizante existem várias sarjetas de sofredores clamando socorro de toda ordem. Entre elas há a própria sarjeta da inconsciência ou alienação quanto às necessidades de ajuda de si mesmo. Quem vive nesta sarjeta precisa também socorrer, não a si próprio como pessoa, mas certamente a si próprio como alma. A anestesia do egoísmo impede de se ver a necessidade da própria alma de respirar.
Seguir a Jesus nos tempos hodiernos é simplesmente despertar, desenvolver e socializar nossa espiritualidade, nossas virtudes e nossos sentimentos mais nobres, não importando onde e como foram adquiridos. E tudo de bom e de nobre que se desenvolve de dentro de si para fora, se estende a partir do próprio coração, fazendo um bem danado a este e a todo o soma. Se não atingirmos o outro com nossos gestos afetivos, com certeza atingiremos a nós mesmos, que também somos necessitados.
“Ame, e faça o que você quiser[1].” - Santo Agostinho (354-543)
Dessa máxima augustina, podemos entender e estender que cada um de nós pode fazer, pensar e ser o que quiser; pode estar onde, quando e como quiser; e pode acreditar no que quiser ou não acreditar no que não quiser, seguindo, ou não, a corrente de crença que achar verdadeira, ou seguir corrente nenhuma. O importante é que, em todos os momentos, lugares e ações de sua vida, cada um empunhe o estandarte do amor.
Mais essencial do que qualquer bandeira, brasão, insígnia ou cruz que se ostente, é uma ética que envolva a melhoria de si mesmo e do próximo, em todos os sentidos, inclusive no terreno da saúde mental e física. E essa ética pode ser apenas a sua mesma, montada pela sua própria visão de mundo, silenciosa, honesta, sincera e fundada no solidarismo (“doutrina social e moral que se fundamenta na solidariedade entre os membros de uma sociedade.” (Dic Houaiss)).
O homem de bem não é o necessariamente o virtuoso, o que segue uma formação social qualquer, mesmo que esta seja socialmente respeitável. É o que segue uma ética que se assemelha essencialmente com a ética crística, no anonimato.
“Ninguém pode servir a Deus, se não estiver servindo ao seu irmão.” – Mateus, 16:21
Muitos grupos religiosos e afins até servem como meio de autoajuda espiritual. Porém, dentro do sistema cartesiano, buscam crescer muito mais na reta da fé abscissa (do ser para Deus), do que na reta da caridade ordenada (do ser para seu próximo). Nos pontos cartesianos formados (eixos dos xis), geralmente o elemento da ordenada é sempre zero ou quase zero. Não atentam que o crescimento vertical é diretamente proporcional ao crescimento horizontal. Para que haja uma diagonalidade cartesiana evolutiva, os elementos de cada ponto hão de ser sempre diferentes de zero. Esse crescimento no plano, sim, será pleno. Como diz Tiago, 2:17: “a fé, se não tiver as obras, é morta em si mesma.”.
{Quanto mais pretendermos asceticamente evoluir, mais retardamos o nosso real crescimento. A evolução segue por vieses próprios, distantes das nossas pretensões de assunção a modelos teoricamente melhores de nós mesmos. Olhar menos para a escada acima e construir pontes de acesso lateral às escadas uns dos outros, compartilhando degraus de sustentação: eis o essencial para um crescimento autêntico.
O ideal é que não procuremos evoluir ou nos melhorar subindo mais degraus e deixando outros subintes para trás. A meta de ascensão não é ascender em si, mas apenas cuidar melhor de todas as nossas personas ou eus e cuidar de horizontalizar nossos potenciais de sentimentos e de conhecimentos na direção uns dos outros, aqui no terra a terra, no dia a dia, na lufa-lufa social, apenas com boa vontade, no máximo. Eis a dieta da saúde integral.
Há momentos em que é necessário um recolhimento para um crescimento espiritual abscisso mais específico. É normal. Mas o esperável é que se suba até certo ponto e logo em seguida vire à direita, numa reta paralela aos dos próximos, trazendo o que aprendeu na sua subida individual e compartilhando com os outros o que estes colheram por sua vez em suas trajetórias horizontais.
{“Somente uma vida vivida para os outros é uma vida com valor.” - Albert Einstein}
A partir desse compartilhamento de valores solidários e interapoiantes é que acabamos, sem querer, subindo, e levando de arrastão uma saúde melhor em vários níveis. A grande premissa da consciência ascensional-inclusiva é: Ou sobe todo mundo junto ou qualquer tentativa de ascensão ambiciosamente individual é ilusória. Pode até haver, até certo ponto, espiritualização a um, mas evolução só existe no mínimo a dois.
{“Ih!”, Você deve ter pensado, “mais um comunista!” Em que pese à prevalência hoje mais do capitalismo supraestatal do que do comunismo de Estado, é de se inferir, sem grande dificuldade, que a tônica do presente discurso é o comunismo de indivíduos, impulsionado pela ditadura do próprio coração e da consciência.
O compartilhamento de valores só soma para a evolução individual se for voluntário, não imposta de fora para dentro por forças políticas institucionalizadas, como o próprio governo e suas ingerências leviatânicas na vida civil. Quando esse tipo de compartilhamento se estender largamente em todas as formações humanas, então será a realização daquele lema tríplice da revolução francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. Entretanto, de certa forma estamos todos subordinados a um comunismo institucionalizado, não de Estado, mas de universo. Estamos todos condenados a amar, porque esta é a síntese da legislação imposta pela “Luz do Mundo”, de forma imperativa: “Amai a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo.”
Os próximos a quem primeiro devemos amar são os próximos que sustentam a nossa vida dentro de nossos corpos, a exemplo do coração, intestino, sangue, pulmão, cérebro etc. O problema é que estes próximos trabalham na casa das máquinas. Nós não os vemos e, por isso, tendemos a não lhes dar a devida atenção. Mas todo mundo precisa de carinho, amor e proteção, principalmente aqueles que vivem na escuridão, no anonimato. Ou seja, O amor tem de circular primeiro por dentro de nós, literalmente, antes de se expandir para além de nosso território pessoal.
Há muitas pessoas carinhosas, caridosas, bastante espiritualizadas e desprendidas do hedonismo material e do hedonismo fisiossensorial. Só que às vezes se desprendem demais, até de sua própria saúde, em prol da melhoria alheia. É clássico. Muitas pessoas superdotadas afetivas ou dotadas de uma inteligência espiritual sublime têm uma forte tendência a desprezar dinheiro e saúde ou a baixar a guarda sobre os assuntos materiais, como uma espécie de desdém com as "coisas do mundo", ainda que num plano inconsciente.
Não se pode amar ao próximo, se não se ama a si mesmo. A referência para a alocentração (descentração para o outro) é a centração sobre si mesmo.
A saúde e o dinheiro de que somos detentores podem ser instrumentos de ajuda para elevação ou para subelevação das nossas várias qualidades de vida. Depende mais do grau de administração mental, o que tende a ser difícil para os que vivem meio no mundo da lua, como é o caso das pessoas transcendentalizadas.
A espiritualização progressiva tende a “desterrar” progressivamente as pessoas deste mundão. Isso pode ser um problema, porque as pessoas, por mais espiritualizadas que estejam, precisam comer, comprar, medir a pressão, consultar o médico regularmente, interagir em vários níveis com outras pessoas, viajar e tudo o mais que envolva disposição física e financeira.
Daí a importância de se criarem mecanismos semiautomáticos de controle mínimo sobre os haveres materiais obrigatórios, a saber: saúde, compromissos sociais e dinheiro. E que mecanismos seriam esses? Agenda eletrônica, orçamentos e cardápios prévios, relógio despertador e outros avisadores de que o mundo gira a sua volta, olhando para ele e devendo ser olhado por ele.}