É certo, contudo, que, mesmo com todos os seus dogmas, rituais e postulados desvirtuantes da mensagem crística essencial, as igrejas cristãs também pregam o desprendimento dos bens, como recomendou Jesus. O problema é que o galileu, que não frequentava nenhuma casa de oração, exortou a todos que quisessem segui-lo de verdade a se desprenderem de seus bens, mas dando-os aos pobres, diretamente.
As igrejas confundem-se como formação social e como casas. Logo, efetivamente, precisam ter algumas características institucionais, o que é aceitável (já que as companhias de água e de energia não perdoam nem doam). Mas, muitas (re)pregam o desprendimento crístico dos bens materiais, desde que se doem estes à própria instituição. Até aí, menos mal. O problema maior é que algumas instituições religiosas nem sempre destinam, como deveriam, os bens doados à caridade e à manutenção material da estrutura física do templo. Como não há separação nem prestação de contas sobre as duas destinações lícitas das arrecadações (casa física e caridade), nem se sabe como são percentualizadas as suas proporções, geralmente muitas dúvidas são suscitadas. Não raro, muitos escândalos vêm à tona. E o pretexto que muitos líderes religiosos apresentam para justificar suas fortunas financeiras pessoais é que eles são um modelo a seguir por seus fiéis, já que algumas de suas palavras de ordem são: o fiel a Jesus tem de deixar de ser calda e passar a ser cabeça (não só psicológica, mas também economicamente); que Deus não gosta de pobreza; que pobreza é obra do Satanás etc. A conquista de bens materiais, a partir das correntes de oração estimuladas pela fé e pelas “ofertas” dos fiéis é uma das tônicas principais e revivesce o discurso de Max Weber (1864-1920), em seu livro “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”. Se fosse hoje, talvez esse economista e sociólogo alemão escrevesse outro livro parecido, com o seguinte título: “A Ética Evangélica e o Espírito dos Mercadores da Fé.”
O ideal seria que os próprios seguidores fossem sócios da parte jurídica da instituição, fazendo desembolsos específicos para sua manutenção física. Ao mesmo tempo fariam, como caridosos, em separado, doações para a sacolinha dos pobres, através da fé (neste caso, inclusive, fé como sinônimo de confiança nas pessoas humanas intermediárias da destinação-fim do óbolo).
Toda doação indireta requer mesmo algum voto de confiança, considerando que toda formação social tem ou tende a ter sua banda ou, pelo menos, sua fatia podre, azeda ou menos sintonizada com os propósitos nucleares ou com a essência do trabalho institucional. [A não ser que não se trate de formação de seres humanos. Claro que, quanto menor for a parte podre, tanto menor será a chance de infecção e contaminação do todo. O ruim é quando a parte daninha se concentra justamente no núcleo do conjunto, representada por suas diretorias, especialmente a financeira ou a administrativa. Mas, pelo contrário, quando o núcleo exerce também a liderança moral e ética, então sua influência sustenta a pureza do todo e cria anticorpos contra a corrupção e outras intoxicações ambientais.]
No campo das efetivas melhoras pessoais e nos arrebatamentos de zonas de risco e de “perdição de alma e de corpo”, todas as organizações de apoio a necessitados são úteis, ainda que algumas sejam questionáveis.
No caso das formações religiosas, entendo que todas elas, em princípio, são apenas meios, não fins em si mesmas. Muitas delas funcionam efetivamente como caminho para se chegar ao Caminho, o que não é nenhuma novidade, todas reconhecem isso. O problema é quando uma ou outra entende que a salvação da alma só é ou só será possível para quem embarca na sua arca religiosa. É o típico egoísmo corporativista religioso.
Sob o ponto de vista de uma psicologia religiosa (ou hieropsicologia), em que pese ao peso[!] das formações religiosas, cada fiel seguidor é um ser humano não plenamente engessável. Cada um de nós tem sua forma meio pessoal de se relacionar com Deus, que mora dentro de cada um de nós, independente dos dogmatismos engessantes pelos quais o enxergamos ou mesmo não o reconheçamos. Os pensamentos externos, por mais que influenciem, nunca ocupam por completo o lugar da consciência individual. Sempre vão se alternando as psicotaxias (quimiotaxias psíquicas), sentimentais e pensamentais de cada um, gerando novas substâncias de atitude em relação aos fatos da vida, com repercussões em todos os níveis de saúde individual e social.
Com o tempo, após uma maior elevação de consciência ou de libertação de valores prejudiciais do passado, muitos que resistem, ou nem pensam em sair da sua fé já solidificada em seu inconsciente, costumam criar uma espécie de autosseita secreta melhorativa dentro de si mesmos. [Todo mundo tem uma “filosofia” oculta de vida, concorda?] Do contrário, podem se tornar loucos religiosos mansos. Para que isso não aconteça, muitos religionários, embora não renegando os discursos pastorais, começam a se expandir para outros valores morais encalhados ou mais úteis a seus eventualmente novos níveis de consciência. Fazem, até onde não haja choques muito radicais, uma espécie de sincretismo entre sua religião formal e sua autoigrejinha pessoal, esta muitas vezes muito mais condizente com os apelos crísticos e mais realista e sincera com suas formas pessoais de ver a vida, portanto mais saudável e libertadora da alma.
Uma sugestão (mas só uma mera sugestão mesmo), para quem montou esse minialtar no íntimo do seu coração, dentro da sua sinagoga ou catedral eclesial íntima, é a seguinte: pegar cinquenta por cento do dinheiro reservado para dar como oferta para a igreja e dá-los para os pobres. Isso pode ser encaminhado para uma creche, orfanato, asilo de idosos ou qualquer instituição de caridade a necessitados econômico-sociais reconhecida. Os outros cinquenta por cento, deem-se para a sacolinha da igreja. Isso se não quiser seguir literalmente o que Jesus recomendou em certa ocasião, que foi doar tudo o que se tem para os pobres, a fim de segui-Lo de verdade. Metade da oferta irá para o registro da contabilidade da igreja. A outra metade irá para o registro de si mesmo, agora, sim, como um verdadeiro cristão, na contabilidade celestial.
Hoje é de se entender que o “doar tudo que se tem” abrange inicialmente desfazer-se não necessariamente de todos os bens materiais de que se dispõe, mas, sim, dos valores egoicos, prazeres luxuriosos e prejudiciais do mundo, vontades hedônicas e demais ilusões da materialidade e da carnalidade, para direcionar o corpo, por inteiro, para acompanhar o crescimento da alma na direção da vontade do Cristo, que é espalhar suas virtudes na grande seara terrenal, que tem área para semeadura e para colheita. Lá não falta trabalho. Consequentemente, o desapego a bens materiais e o cultivo de uma vida cada vez mais simples e livre de preocupações e estresses com haveres econômicos acompanham automaticamente esse doar geral. É quando os prazeres sensoriais físicos, também úteis e integrantes da felicidade (quando moderados, equilibrados e não prejudiciais), passam a ficar atrás dos prazeres da alma, mais requintados e espiritualizantes.
Por outro lado, independentemente da igreja em si, muitos fiéis seguidores de um mesmo discurso pastoral podem ficar “drogados” a partir do excesso de fanatismo. Formam, individualmente, uma espécie de autosseita secreta piorativa[!], posto que se afastam bastante do que predica a própria fé comum a todos os “irmãos”. Ademais, cada fiel seguidor, ainda que cheio de boa-fé, faz uma interpretação às vezes bastante diferenciada daquilo que nem o próprio pastor imaginou na sua pregação interpretativa de um texto sagrado. [Cada ouvinte é um mundo.]
Muitos novéis sectários mais sensíveis facilmente se tornam teomaníacos ou hieromaníacos, inicialmente cheios de rigorismos morais, podendo se tornar também loucos religiosos perigosos, se não recebem a tempo uma intercessão da própria igreja, de algum psiquiatra ou um tratamento espiritual-desobsessivo. Isso costuma acontecer com membros recém-admitidos em seitas ou formações evangélicas psicoimpactantes. Estes buscam, a seu modo, se entregar de corpo e alma às diretivas do templo, num inclemente esforço de autoafirmação na fé e na resistência contra as recaídas ao estilo de vida anterior. E assim vivem a clamar seus novos credos, numa espécie de “grito de guerra” permanente contra suas próprias más inclinações enquanto ainda subjacentes. É como se estivessem trancafiados numa autocela de segurança máxima contra fuga de si mesmos e contra possessões malignas de seu próprio inconsciente e externas. Com o passar do tempo, sem a suavização adequada dos sentimentos, tornam-se dessocializados em relação a quem não age como eles. Tornam-se egoístas e loucos, não de jogar pedras, mas porque se transformam eles mesmos em pedras. O egoísmo e a dureza do coração são as piores chagas da alma. Podem até não adoecer fisicamente, mas desumanizam o ser, transformando-o em ovoide afetivo. Ele está embrionando doenças mentais ou físicas de difícil terapia no futuro. Bem, esse é um futuro mais provável, que poderá não se concretizar, se houver injeções afetivas em sua direção pelos passantes e restantes em seu derredor. Ele perdeu o status de verdadeiro cristão, mas passou ao status daqueles menores dos irmãozinhos a quem Jesus pediu que ajudássemos, como se estivéssemos ajudando a Ele próprio, lembra? Se o nosso preconceito nos cegar e nos permitir criticar um duro de coração, estaremos sendo tão ou mais duros do que ele mesmo, e iremos nós também para a vala dos necessitados morais, para esperar a ajuda de um verdadeiro cristão passante.
Os discursos pastorais ou resgatadores de almas não podem ser feitos apenas no ambiente da instituição eclesial. É preciso ir fazê-los também nas sarjetas de todo jaez, lá fora, no mundo. É lá onde o Cristo mais precisa de obreiros fortes em ânimo, espiritualmente saudáveis e descompromissados com insígnias religiosas, independentes, sem livros, revistas, panfletos e convites nas mãos, mas com muito amor no coração, deixando suas marcas afetivas e alevantadoras e seguindo anonimamente adiante, como fez o bom samaritano.