Notas de um novo lar - Do dia 8 ao dia 14
DIA 8
Índia antiga - Instrutores do mundo - Borges - Heidegger - Sobre a minha aplicação aos estudos - A precipitada exaltação ao saber acadêmico - Ateísmo e religiosidade popular - Cristianismo e família - O perigo do ateísmo político
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Em “Epopéias da Índia antiga”, a história ária aparece como cíclica, correspondendo à idéia de Eterno Retorno, “a mais elevada forma de pensamento”, trazida ao campo da Filosofia por Nietzsche e com a qual estive em contato também através de Miguel Serrano e Jung. Ao falar-se sobre “Os instrutores”, Vivekananda aponta para a evolução do universo em ciclos. “O mesmo que sucede no universo em conjunto sucede em cada uma das suas partes, nos negócios humanos e na história das nações, que prosperam, declinam, voltam a prosperar e declinar, até desaparecerem”. E a lápis, eu fiz a seguinte pergunta: “Será agora o momento do nosso desaparecimento?”.
Em sua interpretação, os instrutores do mundo estiveram destinados a desempenhar somente uma parte pequena na nossa educação e instrução. Quanto ainda, portanto, haveríamos de aprender por nós mesmos, se os deuses – ou, no caso, os instrutores ou representantes de entidades divinas – apenas nos guiaram em nossos primeiros passos? Há certamente um caminho repleto de mistérios que devem ser encontrados por nossa própria vontade.
Um parágrafo em especial chamou minha atenção, retirado de um versículo sânscrito: “Vi o Instrutor sentado sob uma árvore. Era um adolescente de dezesseis anos e o discípulo era um velho de oitenta. O Instrutor pregava silenciosamente e as dúvidas do discípulo desapareceram”. Pensei em Borges, quando este dizia que seu pai nunca opinava sobre seus poemas, deixando-o “cometer os próprios erros”. Também pensei em meu pai, quando este pouco ou nada comentava sobre meus escritos e músicas. O mais comum era vê-lo disfarçar diante daquilo que eu lhe entregava, dizendo: “Está indo... E... E a mãe, vem almoçar?”. E levei tempos – anos, para ser mais sincero – até que descobrisse a sapiência do gesto calado. Teria Heidegger atuado com o mesmo propósito? Teria pensado que apenas em alguns séculos, o mundo haveria de reconhecer que ele estava certo ao se calar?
Adiante, dizia-se que “fazer algo, embora resulte em erro, é melhor que nada fazer”, fazendo-me automaticamente pensar uma vez mais em Heidegger, o último dos grandes filósofos, quando dissera que “quem pensou em grande escala, deve também ter errado em grande escala”. Ou mesmo em Whitman: “Do I contradict myself? Very well then I contradict: I am largue, I contain multitudes”. Também pensei no quanto eu próprio havia falhado em vida. Quanto mais ainda haveria de errar?
Não recordo a época exata em que me apliquei de forma efetiva aos estudos. Não consideraria, no entanto, não mais que dois anos atrás. Desconheço um momento que elegeria como crucial. Passei a fazer da leitura um sentido de importância semelhante ao tato, o olfato ou a visão. Mas nunca me senti alguém de leituras intensas, tampouco culto. Parece-me que apesar dos livros, nunca consegui me distanciar dos homens, sobretudo do homem comum. Também isto compôs um papel fundamental na minha formação humana e que à própria maneira, sempre se demonstraram sábios. Assim, criei como que uma Terceira Via em relação à vida que deveria seguir, próximo do erudito e do comum. Enéas Carneiro costumava afirmar que era simplesmente um homem comum. Seu segredo? Não ter deixado contaminar-se.
Não compreendo como há tamanha exaltação ao saber acadêmico na atualidade. Coloca-se um antropólogo, sociólogo, historiador ou psicólogo à categoria de representantes de forças divinas na terra. Tão somente ele é a autoridade. Na profissão de fé marxista, tornou-se o padre ou o mestre a quem se consulta como fonte de sabedoria. Não compreendo como se é possível, em meio a todas as "discussões intelectuais" da época nossa, chegar-se a ponto de encontrar meios de se discutir sobre a necessidade de se acabar com a criminalização do sexo com menores e com a pedofilia, como foi o caso de um renomado líder da UNE de Brasília, que defende a tese de que a idade é "relativa". Por isso admiro a resistência, mesmo que feita de modo inconsciente, por parte dos homens comuns, das pessoas de bem. Pode que mil livros sejam editados a defender as mais absurdas das teses de que “não se nasce homem ou mulher”, como quer Beauvoir ou que “a amamentação representa a primeira fase do sexo oral”, como alega Freud, mas o homem simples, no mais íntimo do seu ser, saberá distinguir o benéfico do nocivo.
Considero de sorte que minha aproximação pelo ateísmo fora de cunho filosófico e jamais político. Mas isto não me livrou do erro de acreditar, durante um tempo, que também a população como um todo necessitava passar pelo mesmo processo de rompimento com o cristianismo. Acreditava que poderia ser válido, que lhe traria conquistas. Conquistas! Que erro meu!
Em hipótese alguma a religiosidade popular deveria ser extirpada. Certo líder ugandês estava certo: “Você nunca haverá de ser nada se não souber respeitar as crenças e a cultura do seu povo”.
Pode que um maestro seja exímio em sua função. Contudo, não cabe a ele mudar o gosto popular em relação à música, mas proporcionar meios através dos quais o povo seja conduzido a valores positivos através dela.
Em algo, Marx acertou: “A prática determina”. Mesmo com críticas em relação aos costumes religiosos dos meus antepassados; mesmo a não concordar com elementos que outrora foram fatores determinantes para o meu afastamento da religiosidade e até mesmo da espiritualidade, não me restam dúvidas de que o ateísmo, enquanto fenômeno de massa, foi e tem sido repetidamente nocivo à humanidade, servindo a interesses obscuros que pretendem desmembrar o ser humano a ponto de dominá-lo mais facilmente. Ele parece, inclusive, não se aproximar de Nietzsche ou Schopenhauer para dar possibilidades de questionamentos à fé, aos valores e à moral milenar cristã, mas necessariamente eliminar uma das características mais marcantes no homem comum, a fim de submetê-lo, uma vez mais, na crença em um Estado global, seja ele marxista ou capitalista, pois ambos atendem aos mesmos propósitos.
Fato é que cristã ou não, a vida dos meus antepassados me aparenta ter sido mais saudável e verdadeira, portanto infinitamente melhor que a dos países onde a irreligião se tornou regra enquanto função política.
Assiste-se hoje a um verdadeiro pesadelo que se promove com o ateísmo imoral, cumprindo-se a máxima de Dostoievski, onde, sem se pensar que há seres superiores aos humanos, “tudo é permitido”.
Por isto, compreendo quando meu amigo alfaiate Antônio Rech dizia que mesmo tendo tido pais que não eram dados aos estudos, considerava-os sábios, pela proximidade com os valores intrinsecamente religiosos. Distinguir entre o certo e o errado parece a mais sábia lição que um pai pode dar a um filho. E uma vez que a escola assume o papel da educação nos dias de hoje, e se os respectivos professores em grande parte notarem o ensino como um meio de aliciar “revolucionários” a seu favor, tudo abrirá campo à destruição e às ruines humaines.
Vivekananda estava certo: “Para a salvação não há necessidade de ciência acadêmica, nem de riquezas, poderio ou fama. Só necessitamos de pureza, porque o espírito é puro por essência”.
DIA 9
Os Instrutores segundo Vivekananda - A renúncia em Krishna - O triunfo do espírito sobre a matéria - Homar Paczkowski - Enéas Carneiro e o tempo - Cotidiano - O trabalho que dignifica - Budismo e hinduísmo - A voz da Ásia - Grécia - Completude entre Ocidente e Oriente
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Assim definiu-se o papel assumido pelos instrutores, trabalhados por Vivekanda: “Os Instrutores foram grandes e verdadeiros, porque cada um deles legou ao mundo uma idéia grandiosa. Eles surgiram como notas de uma grandiosa e harmônica sinfonia espiritual”. Pensava, então, na forma com que aos poucos eu passava a moldar minha personalidade também em torno da história de grandes homens, de seus exemplos de vida, até mesmo a encontrar similaridades.
A renúncia parece ser o maior lema de Krishna, sem, no entanto, estar associada à indiferença para com o mundo. Renúncia sem indiferença. Isto me fazia pensar no quanto erram alguns, ao associar o desapego de si à inconformidade, à não-violência. A história em si de Bhagavad-Gita prova de sobejo o triunfo da vontade do espírito sobre o material. Não se teme a guerra entre uma própria família, iniciada pelo conflito de dois primos, justamente porque se sabe que ao se ferir e mesmo matar alguém, o espírito há de continuar eterno. Ao que tudo indica, somos escolhidos para a vida.
Um verso de Krishna chamava minha atenção: “Aquele que, no meio de intensa atividade, encontra profunda paz e que, no meio da profunda paz, age com intensa atividade, chegou à perfeição”. Não sei por que motivo, pensei em Homar, filho da amável Genoveva. Certamente que chegara à perfeição mencionada por Krishna, ao encontrar paz em meio a todas suas atividades incessantes. Também tantos outros grandes homens da história, grandes personagens através dos quais moldei minha personalidade, eram exemplos da paz encontrada até mesmo em meio à escassez de tempo.
Aliás, sempre me preocupei com o tempo e, apesar disso, o Kronos parecia ser uma questão demasiado relativa. Com disciplina, faz-se crer que tudo funciona melhor. Por uma vez mais, pensava na figura de Enéas Carneiro. A palavra gênio tem pouco significado para representar o seu brilho. E diante de sua grandeza, eu sempre me perguntava: “Como foi possível que alguém trabalhasse em duas faculdades como professor, tivesse o seu próprio consultório, atuasse como político e ainda reserve tempo para sua família, estudos , pesquisas pessoais e projetos?”. Mas com esforço e organização, sua vida se encaminhou.
Invejo a situação que não vivo. Sempre penso no quanto um cotidiano ocupado poderia me tomar um tempo precioso. Nada mais que uma precipitação: esta é a verdade. Pois bem sei que mesmo nos meus dias mais exaustos, de atividades intensas, era possível manter a mente em meditação. E talvez do mesmo modo, aqueles que invejam meu tempo livre de hoje, pensam que quanto mais livre se é, mais se está predisposto ao ócio.
Ao expressar os ensinamentos de Krishna, Vivekananda aproximava a prática da sabedoria védica à espécie genuína de socialismo que um dia Wagner buscou e os Incas e o Império alemão fizeram reais, onde se dão condições iguais para que o povo tenha possibilidade de viver com dignidade, sem desrespeitar à desigualdade da natureza do ser humano, prezando-se pela meritocracia. Afirma ele que “a obra do lavador de pratos, bem cumprida, é tão meritória como a do Imperador em seu trono”. Todo trabalho dignifica o homem, por mais que se reconheçam seus aspectos árduos.
Dizia Krishna: “Não temais se vos aborrece algo de vosso trabalho, pois não há obra que não ofereça dificuldades”, pois também “este mundo é lugar de pranto” e a matéria, por sua vez, corresponde à afirmação dos adeptos de Nimrod de Rosário: é má.
O budismo é apontado como um desmembramento do hinduísmo e também em certos aspectos guarda em si a nobre capacidade de sacrifício por algo que se acredita e se defende. Certa vez, Buda pedira a um rei que se contentava com o sacrifício de cordeiros, para que este o tomasse no lugar dos animais.
E finalmente, Vivekananda analisa o papel de Jesus de Nazaré como um terceiro instrutor. Certamente que se tivesse feito a mesma leitura há um ou dois anos atrás, teria uma crítica já de início, pois sempre me pareceu algo confuso a forma com que ao se estudar sobre as religiões orientais, encontrava a insistência na figura de Jesus de Nazaré.
A leitura prosseguiu. Interessante é a sua teoria, ao apontá-lo como um oriental, muito embora fosse dono de traços caucasianos, dado à presença indo-européia na Índia. Teria sido este país asiático um expoente de avatares? Pois também Buda era indiano e, assim sendo, em nada corresponde à figura com que é retratado: era nobre, pertencente às altas castas hindus.
Bem na verdade, o que mais me incomodava e ainda me incomoda não é a questão de se aceitar Jesus de Nazaré como um avatar, mas o fato de se colocá-lo como que à frente de tantas outras figuras da história, percebendo-se nele o único caminho de redenção e de luz. Cheguei a ouvir uma senhora dizer que até Buda e Zoroastro seriam encarnações de um Jesus de Nazaré que sequer havia nascido, ou presenciar Hare-Krishnas que diziam seguir um Bhagavad-Gita cujo senhor também o maior referencial dos cristãos. Cai-se no erro de acreditar que Jesus foi e sempre será a figura central de todos os tempos. E o mundo acaba sendo reduzido aos tão recentes dois mil anos.
Aponta-se a teoria de que a Bíblia também seria oriental, segundo “as cenas, os lugares, as atitudes, os personagens, a linguagem poética”.
“A voz da Ásia tem sido a voz da religião”, é o que se afirma. Fato é que em certos aspectos, as religiões asiáticas têm preservado características originalmente ocidentais, que ao longo dos anos se perderam entre seus próprios herdeiros. Quando Miguel Serrano esteve nos Himalaias, buscava sabedorias que se entrelaçavam entre orientais e ocidentais, tomando como base a teoria do matemático e astrônomo Lokmanya Bal Gangadhar Tilak, exposta no livro “A morada ártica dos Vedas”, que aponta para uma origem polar dos hindus.
Por Swami, a Grécia é vista como a eterna voz da Europa. “O grego vive por completo neste mundo. Não sonha. Até sua poesia é prática. Seus deuses e deusas são intensamente humanos, com todas as paixões, sentimentos e emoções do homem”. Para ele, se a Grécia está tão presente em nosso mundo, automaticamente o reino oriental, segundo suas palavras, “não é deste mundo”. Ocidente material e político, oriente espiritual e religioso: dois mundos que se completam.
Na sua interpretação, “a alma não tem sexo”. Ou acaso teria elementos comuns a ambos os sexos? Seria o ELEELLA, de quem tanto Serrano falava?
DIA 10
Uma visita aos Matyak - Os poloneses no Paraná - Histórias de Cândido de Abreu - Sobre uma antiga amizade - O comportamento de alguém sob efeito de remédios fortes - Chimarrão entre os paranaenses - Acerca da motivação para escrever - Sem segredos enquanto músico - Encontro com minha mãe
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A convite de um amigo, fizemos uma visita à morada de seu primo de segundo grau, de mesmo sobrenome: Matyak. Aquela casa de madeira ao alto se encontrava nas proximidades de onde eu havia estado há quase duas décadas, visitando moja prababcia pelas últimas vezes.
E que aconchego lá encontrei! A decoração se assemelhava exatamente à casa de outros poloneses que eu havia visitado, a incluir nisto mesmo alguns dos meus familiares.
A família e a religiosidade parecem representar tudo nas casas dos descendentes de poloneses do Paraná, absolutamente tudo. O mais humilde dos lares nunca deixará de ter sobre a parede, retratos dos antepassados junto do panteão católico. “Que futuro nos aguarda?”, eles devem pensar, “Se a tendência de agora é o homem comum ser ‘libertado’ da religiosidade e da família? Não pela própria vontade, mas por interesses políticos. O que será de nós, se são estes os dois maiores sentidos da nossa existência?”.
Àquela manhã, tomei contato com a minha própria ancestralidade materna. Bem sabia que ele era da mesma região onde minha mãe cresceu. “Rotta... sim, eu os conheço! Moravam próximo de nós!”, dizia ele.
E ele descrevia-nos como era sua vida. “Posso dizer que apenas não fui bandido... De resto, trabalhei com tudo. Servente de pedreiro. Plantador de tomate. Caminhoneiro...”
“Certa vez eu estava com um amigo meu. Olhei uma menina e disse a ele que a achava bonita. Apenas isto. Passaram-se os dias e então o pai dela me convidou para almoçar. Havia preparado frango caipira com mandioca. Eu estranhei, mas aceitei o convite. Chegando na hora, ele disse então: ‘Esta casa aqui na frente ficará para vocês’. Eu não sabia ainda o que estava acontecendo. Ele dizia estar feliz por eu desejar me casar com sua filha. ‘Casar!? Eu não estou sabendo de nada!’. Haviam me pregado uma peça”.
“Uma vez eu cheguei a um bar, na época em que trabalhava no campo. Eu sabia que a regra de lá era pedir uma dose de pinga e oferecer para todos, senão a confusão era certa. Eu o fiz. Um homem aceitou, tendo bebido metade do meu copo. Depois, comprei uma cerveja e ofereci aos presentes. Todos a aceitaram. E pelo fim, eles pagaram mais doze cervejas como conseqüência do meu gesto. Quando eu estava para sair, um deles me disse: ‘Você deve brigar muito bem... Ou ser muito corajoso’, ‘Oras, por quê? ’, ‘Porque você não está armado... E não sabe como as coisas funcionam aqui’. Mas ao final, tudo acabara bem”.
Seu rosto levemente avermelhado e seus dentes e todo aquele cenário me fazia pensar em alguém que hoje eu voltaria a considerar como amigo, apesar de não mais tê-lo ao lado.
Eu havia me afastado de si quando percebia não mais conseguir vê-lo se controlar. Eu sabia ter feito o meu possível. Nos seus últimos tempos, a menos diante de mim e segundo o testemunho de amigos próximos, ele andava agitado e transtornado. Ele parecia realmente prever sua própria partida. Um amigo me disse que a última vez em que o viu, ele havia lhe entregado uma sacola com cartas e desenhos, dizendo: “Cuide disso para mim”.
Era um bom amigo. E ao que se sabe, estava inconformado com o meu silêncio. Sempre pareceu disposto a reatar nossa proximidade.
Curioso era o meu silêncio. Inúmeras pessoas diziam admirar minha paciência, minha tolerância. Mas ao exceder o largo limite que há dentro de mim, eu me fechava em uma quietude quase que petrificado, quase impossível de ser rompido. Assim foi com ele. A última vez que nós nos vimos, por acaso, eu já havia petrificado nossa amizade. Eu seguia o meu caminho sem olhá-lo, enquanto ele me cercou na rua para dizer: “Eu ainda o considero como um irmão meu, Newton... Ainda o tenho como grande amigo”.
Um filme passou em minha mente, quando há tempos eu recebia um telefonema que me informava sobre sua morte. Ainda era jovem! Partia, bem na verdade, do modo mais trágico o possível. Descia de um ônibus, em uma tarde chuvosa, junto à estrada. E não sendo possível distinguir as cores do carro que corria ao seu encontro em alta velocidade, em relação à profundidade daquele cenário cinzento, fora atropelado.
Não tive a oportunidade de almoçar ou jantar o Borscht que ele tanto me oferecia, feito por sua mãe. Nem ter feito viagens junto aos lugares que ele dizia desejar me apresentar.
Nos tempos em que nós nos conhecíamos e nos aproximávamo-nos, ele parecia ter elevado os amigos a um patamar mais alto que sua própria família.
Meu afastamento ocorreu de modo calado. Seu comportamento, bem na verdade, tinha uma origem química, pois ainda era dependente de remédios fortes.
Sempre me perguntei: até que ponto deve-se tolerar o comportamento de alguém sob efeito dos remédios? Há consciência absoluta do que se faz? Há culpa ou inocência? Até mesmo tomando como base as minhas próprias experiências com remédios que “combatiam” a depressão, pairava sobe mim a impressão de que as menores situações possíveis são capazes de ter um impacto tremendo, naquele cujo organismo é afetado pela química. Ele parecia desejar a morte diante da mínima situação. Era uma ótima pessoa, mas com quem se tornava difícil conviver, sobretudo em público.
Independente disso, não se é possível afirmar que fui a pessoa mais insensível do mundo, sem, contudo, colocar-me à categoria de mestre da paciência. Fiz o meu possível, conforme minha natureza.
A verdade é que ele parecia não ter ninguém. Não tinha filhos. Sua relação com a família não era das melhores. Estava desempregado. Não namorava. Poucos eram os seus amigos.
Se em seu velório não havia estado presente, nem havia convivido consigo em seus últimos dias, isto não deveria consistir em um pecado ou algo que me fizesse sentir culpado. Enquanto estive próximo de si, bem o sei quantas foram as noites em que através de conversas, eu lhe expunha novos motivos pelos quais ele deveria viver. Quando muitos já o viam como um “caso perdido”, eu me sentei junto de si e pacientemente eu o fazia acalmar-se e deixar com que aqueles impulsos fossem amenizados, na medida em que desabafava comigo.
Eu retomava então o pensamento no lar onde me encontrava. Nós nos sentamos e tomamos chimarrão. Naquele instante, pensei em uma querida amiga gaúcha: “Como jamais ela imaginou que nós paranaenses não tomávamos chimarrão? Aqui, entre nós, este costume nos é tão comum!”.
Aliás, pensar nela é pensar no que eu poderia denominar como “recompensa pela naturalidade”. Desconheço através de quem ela conseguiu meus escritos e meu trabalho de piano. Tão logo, ela me escrevia. Dizia ter se identificado com o conteúdo dos meus textos. Somente tempos depois tive acesso a um escrito particular seu, onde ela dizia que apesar de nunca ter estado em contato comigo, sentia que precisava me conhecer.
Recompensa. Sim. Eu me sentia como que dono de uma sorte imensurável, por estabelecido elos e ganhado amizades incríveis simplesmente através de expressões tão simples que levei ao ar. Fazer algo sem segredos. Chegar mesmo a ser reconhecido pelos próprios erros!
Consiste em uma grande sorte pensar que mesmo nas minhas próprias precipitações em forma de escrita, servi de exemplo e incentivo àqueles que desejavam despertar seus próprios gigantes literários. Minha pretensão não fora outra senão atuar com naturalidade, registrando nos papéis um pedacinho da vida minha.
Bem o sei que a escrita pode ser um mero detalhe. Relatar sobre um dia comum que vivo pode até mesmo parecer desnecessário, mas fundamental. Quem sabe mesmo foram os homens construídos através destes “meros detalhes". Pois não há nada nos livros que já não tenha estado na mente de seus criadores. Coube-lhes apenas o sacrifício de atuar como intermediários da própria voz. Porta-voz das minhas interferências internas, do que provém da minha própria introspecção: é tudo o que sou, neste sentido de escrita.
Na mesma semana, eu havia recebido uma nova entrevista para responder, juntamente com uma matéria escrita a meu respeito e uma resenha. Eu havia conseguido 12 de 15 pontos com meu “Tu, deorum hominumque tyranne, Amor!”, o que fora absolutamente espantoso. E entre detalhes pessoais e sobre música, dizia o entrevistador que juntamente com outro colega seu, pensa ser eu o mais interessante compositor jovem no mundo neoclássico. Un gran pessimismo, no?
Se um dia eu me tornasse mais conhecido com o que faço e me fosse perguntado sobre meus “segredos”, diria que não há um só. Nada. Absolutamente nada. Sempre criei tudo com os meus próprios recursos e tudo o que acabei por colher, deixava-me até mesmo espantado. Por um instante, era como se eu ainda estivesse debruçado sobre um velho teclado – que eu havia ganhado durante a infância e que por muito tempo estivera abandonado –, na tentativa de gravar a minha primeira composição. Ainda me enxergava tocando timidamente as primeiras notas e mostrando-as a alguns poucos amigos.
Tudo me causava uma estranha sensação. Nas primeiras tentativas de fazer minhas leituras em francês, encontrava um jornal que falava sobre um pianista que era aclamado como um novo Beethoven. E permaneci por alguns segundos a mais que o comum, olhando para si e sonhando. Haveria eu, algum dia, de ter a oportunidade de me apresentar em outras terras e fazer da música o meu pão mais sagrado?
Nunca tive pretensões mirabolantes com a música. Não para menos, daria razão àqueles que dizem que necessitei até mesmo de mais capricho com o que eu desenvolvia. Contudo, não era intencional. As criações não apenas eram espontâneas, mas feitas com os próprios recursos. Evoluí do gravador em fitas à câmera filmadora, chegando, finalmente, a um antigo computador. Até meus trabalhos mais recentes, lançados e resenhados no estrangeiro, não foram gravados senão com os recursos mais primitivos o possível, a contar com um microfone de plástico, revestido por uma meia amarela, que deveria eliminar os chiados graves vindos das paredes do piano. O que me parecia fundamental era seguir sonhando e criando. Costumava até brincar comigo mesmo, dizendo que meu próximo álbum seria gravado em tal “Yellow socks studios”.
Com o tempo, aprendi ser calmo e mais simples do que já era. Tudo parece ter se encaminhado de forma natural. Quanto menos era dedicado, quanto menos amava o que fazia, mais buscava reconhecimento. Guardava tanta expectativa pelo pouco que fazia!
Mas, enfim, música à parte, nós nos despedimos. Ele realmente havia gostado da nossa visita. Disse que permanece em casa o tempo todo e que assim sendo, sentia-se até mesmo solitário.
Pela noite, procurei minha mãe. Desejava jantar em sua morada. Fui ousado, na verdade. E quando lhe contei sobre onde eu havia estado e com quem havia conversado, tão logo ela identificou. E para minha surpresa, dissera que era muito próxima de um irmão seu. “Marcos, não?”, perguntou ela. “Sim... Que tocava acordeão, certo?”, “Isto! Então estamos falando da mesma pessoa!”.
DIA 11
Ensaio no Centro de Cultura - Encontro com Krause - Sobre a perda de um familiar - Sincronicidades - As cartas de Rilke
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Necessitava acordar cedo. Haveria um novo ensaio no teatro que outrora, eu, um dia, me imaginei tocando.
Tudo correu de modo desorganizado. Saí tarde. Atrasado.
Entreguei meus trabalhos à simpática moça que trabalha como faxineira do prédio, pela manhã, tendo em vista que ela havia dito que desejaria tê-los consigo. Ela havia me perguntado pelo preço. Preço! Sorri a ela e que disse que jamais cobraria de si. Hoje, ela os aceitou de bom coração.
Vi um vulto na platéia e imaginei que poderia ela. Continuei a tocar. Ensaiava composições novas, especialmente duas rápidas. A talvez "Dança russa". E outra, feita sob inspiração de "Rondo a la turca", música da minha infância.
Na mesma tarde, deveria deixar algo junto à professora de Ballet da minha irmã, que se dizia bastante interessada em até mesmo usar algumas das minhas composições como pano de fundo para suas apresentações. Bem na verdade, parecia ela ter previsto justamente uma idéia semelhante à minha própria, tida há meses atrás.
Eu olhava no relógio. Dez e vinte. Precisava partir, justamente para ir ao encontro do amigo que havia me visitado em casa e falado coisas tão agradáveis a respeito da minha música e da minha pessoa, quando o vi sair de uma das cadeiras da platéia inexistente. "Você?! Pois eu estava indo justamente ao seu encontro!". A ele, contei sobre minha nova morada e a organização dos móveis de casa. Disse ele que havia mostrado meus trabalhos a outras pessoas. Algumas, inclusive, que também trabalham consigo na televisão, estiveram bastante interessadas em saber mais a meu respeito. Que grande presente eu recebia naquela manhã!
Verifiquei ainda no conservatório da cidade para quando seria a apresentação do maior intérprete de Chopin no Brasil.
Fui ao mercado. Reconheci de antemão o Corcel estacionado, do meu amigo Krause. Procurei por sua pessoa, ao lado de fora. Não o encontrando, adentrei. E o vi logo ao lado de onde se costuma deixar objetos quaisquer. Disse-lhe que estava morando em outro lar. Ele, em contrapartida, reclamava da saúde. Pela primeira vez, eu o vi abatido, até mesmo desanimado. Lembrei então do seu aniversário, em 06 de Abril, quando ele me dizia, diante do bolo: "Veja, agora tenho 58 anos!", invertendo a ordem das velas. Prometi que assim que tudo estivesse em ordem em casa, deveria convidá-lo para me visitar.
Cumprimentei sua esposa também, que estava mais adiante. Ela me apresentou a uma amiga sua, dizendo: "Este é o filho do Dr. Schner. Conhece, não? Nós o conhecíamos quando ele ainda era pequeno. Depois de um tempo, você precisa ver a proximidade que ele acabou tendo conosco, especialmente com o Arthur!".
E ao falar consigo, observava outra amiga que adentrava ao mercado. Não parecia estar bem. Da última vez que nós nos havíamos nos encontrado, eu, pelo mal entendido - surdez, talvez - pensei tê-la ouvido dizer: "Desculpem-me, mas preciso me retirar porque estou com problema de saúde".
"E então, você melhorou?", eu lhe perguntei. "Sim, está tudo bem. Na verdade, foi minha mãe que faleceu há menos de uma semana". De imediato, um grande susto. Então nós passamos a conversar a respeito. Ela dizia: "Você sabe bem como é ter um familiar no hospital", "Sim... Mas o que nos consola é saber que a dor terminou... Agora, você está diante da maior prova de amor que se pode ... Não a esqueça... Isto é o mais importante".
Ela disse: "Ela queria viver muito mais. Como gostava da vida! Nunca reclamava de nada". E se emocionou. Pediu desculpas, dizendo que havia ocorrido recentemente e assim sendo, ela estava um pouco abalada.
Falamos sobre o quanto nós deveríamos nos sentir privilegiados por ter tido pais que nos foram um exemplo. E que de alguma forma, agora, ao partir, eles viveriam dentro de nós. Não nos necessitaria buscar exemplos na história. Tínhamos diante de nós as pessoas que não apenas nos trouxeram ao mundo, mas que souberam guiar nossos passos. “Somos herdeiros diretos do legado que eles deixaram”, eu disse, “e mesmo um gesto simples como falar a respeito deles é como se os trouxéssemos à vida uma vez mais. Esquecê-los na memória: isto sim é a pior de todas as dores que eles viriam a sentir”.
"E minha mãe falou, inclusive, sobre seu pai, em seu leito... Ela, como todos nossos familiares, gostávamos muito dele".
Por fim, nós nos despedimos. Disse a ela que no que dependesse de mim, eu gostaria de ajudá-la. "Sei que às vezes algo como uma simples conversa tem um significado muito especial nestes momentos".
Finalizei minhas compras e parti. Somente horas mais tarde eu me dava por conta de algo intrigante. Tão logo que havia deixado o teatro, pensava, ao caminhar, em um amigo que recentemente havia perdido seu pai. Pensei em sua perda por quase todo o percurso. Teria eu previsto que em alguns minutos, estaria diante de alguém que vivenciara experiência semelhante?
Relembrei o que havia conversado com uma pessoa, sobre esta minha sensibilidade que me faz predisposto até mesmo a premonições, tendo dito: “Não se sabe ao certo se o pior é saber antecipadamente que algo irá ocorrer, ou depois... Quem sabe antes. Mas, sem dúvida alguma deve ser uma situação complicada conviver com alguém que você bem sabe que está próximo de suas últimas horas... É algo que necessita de aprimoramento, como um médico que apesar de saber do estado terminal de um paciente, faz o possível para que este continue a seguir sua vida como se nada estivesse acontecendo”.
Também hoje, depositei minhas esperanças em dois envelopes.
Minha noite terminou tarde, com leituras de “Cartas a um jovem poeta”, de Rilke. Apenas um trecho em especial foi lido com atenção, por várias vezes, onde alguém de um Colégio Militar fica admirado com o destino de Rilke, que em anos tornara-se poeta. Meu coração esteve preenchido. E dormi encantado.
DIA 12
Uma carta de Garhard - O destino do amigo - Lembranças - Um cartão postal a Ana Ionesei - A primeira correspondência - Nostalgia - Liszt - Amores mui antigos - Novamente Rilke ao término da noite
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Li e reli as páginas de Rilke. Sonhei acordado, por um instante, pensando no destino de escritores e poetas. Pensei na vida difícil de Knut Hamsun.
Pensei no meu amigo Geraldo, fabuloso escritor cujo destino o levara inesperadamente à função de missionário na Holanda. Pensei em amigos admiráveis, que em meio a inúmeras dificuldades nunca deixaram de lado a escrita.
Relembro quando ele me escrevia de volta, em resposta a uma carta onde, entre outras coisas, eu lhe falava sobre o alcoolismo de meu pai, sobre os meus sonhos com a música e relatei-lhe também a respeito de uma paixão platônica que durou dois frutíferos anos. Ah, aquela paixão! Enviei flores àquela moça, sem que, no entanto, soubesse o seu próprio nome!
Assim ele me escrevia:
“Meu caro amigo Newton,
Escrevo para notificá-lo de que recebi tua carta. Estou lendo-a com carinho e cuidado para respondê-lo o quanto antes. Confesso que me surpreendi quando a recebi; e mais ainda conforme a leio. Aproveito o momento para agradecer-lhe a devota amizade que sustem por mim, igualmente a atenção a que te dedicas me escrevendo.
Muito grande é meu bem querer pelo amigo, bem o sabes. E quando me calo, é menos por aborrecer-me contigo (o que nunca me ocorreu), mas mesmo por não julgar-me apto à hora para dizer-lhe algo de proveitoso. Existo na entressafra de bons e maus momentos, predominantemente os introspectivos e solitários. É de minha natureza o silêncio. E o que mais me provoca a comunicação, o que me estimula a vivacidade do diálogo é a beleza. E é beleza que vislumbro em ti, em teus papéis. É o belo que vejo em tua sensibilidade, por menos crível (para ti) que ela lhe seja. Você é uma criatura como poucas, e dentre poucas.
Eu me incomodo por não poder fazer algo por ti, não por nada, mas por um impulso incontrolável que me toma de querer eternizá-lo para que mais outros mortais tolos como eu possam conhecê-lo, lê-lo, e encantar-se contigo, com tua poesia. E quando digo poesia não me refiro ‘menormente’ à poesia de poética e poemas, mas poesia de lugar fantástico, de referências mágicas, de sombras complexas e luzes divinais, de onde fluem tuas idéias, de onde emana tua força vital, teu anima: onde habita tua errante alma. Aguarda-me amigo, que tão logo me seja possível, escrever-lhe-ei, igualmente para mostrar-te minhas últimas criações.
Ultimamente tenho trabalhado minha poética pelos rumos do que Ezra Pound categorizara como melopéia: ou a poesia que prima pela dedicação ao som, à sonoridade, ritmo e melodia das palavras, das sentenças. Não sei donde veio, nem aonde me levará este trabalho, mas por ora é o lócus que habito na poesia: o som. Talvez reminiscência de um antigo sonho meu que tive, quando sonhei que o som era o centro do oceano. Até hoje não entendi isso, mas vi isso em sonho, e não tenho certeza se é bobagem ou revelação; sei que agora estou me dedicando a tentar compreendê-lo
O som. E tua música é-me muito útil nestas horas de deserto íntimo. É música etérea, de sombra e luz. Me inspira. Infelizmente não fui agraciado pelos deuses com teu mesmo tom com a música, sequer com a aridez e objetividade que marcam tuas escritas. Ao menos tenho tua música, tuas palavras, o que d'algum modo, n'alguma intensidade me basta.
E, meu caro, quero ainda aproveitar esta mesma oportunidade para expressar-lhe meus mais sinceros votos de longevidade, saúde e sanidade a você neste ano vindouro que bate à porta. Que MMVI seja-lhe bom, como espero que para mim o seja. Que superemos as sempre eternas & mundanas necessidade financeiras e apertos materiais básicos; que d'algum modo a pax abata-se sobre nossos lares e pacifique os turbilhões de sandices e maus agouros que possuem nossos familiares; que Dioniso nos traga alegria, Athenas, luz, Ares, força & todas as ninfas materializem-se nas peles de alguma bela moça, como provavelmente o é a tua, e aplaque a solidão mais estúpida de que padecemos, que tanto nos corrói. Ah! Como é difícil amar sem ser amado, meu amigo.
Um forte abraço, e até breve.
Seu
Garhard”.
Estive sem notícias suas por três longos anos. E ao reaparecer, dizia-me ele que estava na Holanda e preparava-se para estudar Filosofia! Não contara, por algum motivo em específico, sobre a função que cumpria naquele país. Estivera, bem na verdade, até mesmo com receio de que nós, amigos seus, nos afastássemos de si.
As manhãs têm tornado os dedos congelados. Junte-se a isto as teclas pesadas daquele piano em forma de sonho. E, no entanto, parece que tudo em mim assume novos comandos ao me sentar junto dele. Uma nova composição nasceu. Vivo dias inspirados. Isto é um fato.
Até que medida nossa sensibilidade está susceptível à mudança de clima? Sempre penso no meu amigo Thiago, quando, ao encontrá-lo, eu o ouvia relatar sobre a forma com que sua vida assumia papéis diferentes de acordo com as estações. O outono parecia-lhe como a estação dos sonhos. O inverno, das tragédias. Uma em seqüência da outra. Sobe-se em uma árvore morta, que tão logo nos leva consigo para o chão.
Que destino teria tomado meu amigo? Não mais o encontrava. A última vez em que eu lhe havia escrito, dizia que ainda seria pai! Lembrava-me ainda quando ele dizia estar vivendo à custa dos próprios poemas. E que viajava, sonhando, inclusive, na possibilidade de me fazer uma visita.
Amigos!
Também neste aspecto, sou, à parte de todos os meus erros, alguém realizado. Ainda procuro encontrar explicações para o fato de ter conhecido a tantos que costumam se abrir com poucos ou nenhum senão eu.
Pela tarde, fui ao correio. Enviei um cartão postal a uma querida amiga romena, Ana Ionesei. Eu lhe pedia perdão pelo meu tempo em silêncio, mas que, de algum modo, eu a mantinha no pensamento. Ela havia me escrito pela primeira vez em 31 de Julho de 2009, há quase um ano atrás. Quando reli a tudo, estive próximo das lágrimas. Emotivo, eu me culpava pelo meu silêncio. O silêncio: assim se chamou uma das mais fortes composições que criei nestes últimos tempos, sob efeito desta sensação de culpa.
Na sua primeira correspondência, dizia-me ela que um amigo seu havia lhe recomendado minhas composições e que ao estar em contato com o que eu criava, ela decidiu compartilhar comigo o seu entusiasmo. Estudara alemão por seis anos, mas, levada por um medo desconhecido de não estar apta para escrever da forma com que deveria, talvez pela prática descontínua, fizera-o em inglês, no melhor que pôde. Mantendo-se distante dos computadores, ela pedia desculpas por eventuais erros e ambigüidades, pois sua mensagem virtual não era mais que a transcrição de uma carta escrita a mão. Dizia também que apesar de não ter estudos ou práticas em questão de música, sentia-se apta, como uma pessoa de cultura média, para descrever o efeito que minhas composições tinham sobre sua sensibilidade, bem como em seu intelecto.
“Agora”, ela continuava, “eu estou atualmente pronta para aceitar o paradoxo de que apesar de minha forma mais específica de comunicação ser a escrita, sigo relutante em direção a qualquer forma de discurso vazio, especialmente se o assunto é inefável e infinitamente sublime como a Música Real o é. Se eu ousasse escolher uma simples palavra que sua música honra, esta seria O Irremediável, com todos seus lados ambivalentes: a irremediável perda de um amado (a); a irremediável esperança como uma Fênix; os efeitos irremediáveis da arte sobre seu criador, seu opus e aqueles que a recebem. Certamente, estas são palavras brilhantes que Wittgenstein me advertiu para usar com cuidado, mas se eu não tivesse nomeado algo, em última instância eu deveria ter tocado uma corda para sugerir o que estou pensando e sigo sentindo. O Irremediável do qual falo está intimamente ligado com o estado de rendição a uma alegria introspectiva que certamente se revela no que você faz. Imagino alguém a entrar em um quarto escuro, no qual gradualmente se escurece e se clareia, tal como a música atua em relação à sua própria magia. E é concedido ao ser humano o seu próprio silêncio, como algo que lhe traz um estado de graça. Então o mesmo quarto se torna animado, ainda que composto de uma só pessoa e uma só melodia. Mas, em instantes, é transformado em um mundo por si só, que faz com que a alma desse homem [eu, talvez?] viva e que esteja consciente da beleza que o acompanha”.
E da seguinte forma, ela encerrou: “Perdoe-me por uma audácia eventual em lhe escrever e por tropeçar em palavras que ingenuamente buscam suas causas últimas. Estarei em contato consigo através de sua música e estaria muito grata se você desejasse me responder.
Sinceramente sua,
Ana Ionesei”.
Eu parecia predisposto à nostalgia. Sim, esta era uma característica inerte à minha pessoa. Mas àquela noite, tudo ocorrera de modo diferente. Preparei com calma minha própria trilha sonora. Sabia que mexeria comigo mesmo. Sabia que até mesmo seria levado às lágrimas. Mas aquilo se fez necessário.
Cada música parecia estar ligada a uma circunstância em específico da minha vida. Em um sofá, vivi segundos em diferentes épocas, trajado em roupas das mais diversas. Eu me vi em distintos tempos. Novamente tinha aqui a sensação de estar longe. Era um estranho, uma vez mais, no meu próprio lar. Ouvi canções sobre a solidão, sobre os filhos, sobre relacionamentos. Estava emotivo.
Pensei em Liszt. Estaria eu sendo um bom pai?
Na medida em que encarava a música erudita como meio poderosíssimo de redenção, comecei a me policiar em relação a características que eram próprias do meu ser, como a melancolia. Pensava que não mais a pudesse aceitar, até que estive em contato com os erros daqueles que me eram grandes referências, como Wagner e Liszt. Também os erros dos grandes homens nos servem de exemplo. Permitem-nos compreender que apesar de se buscar a perfeição, errar também está inerte aos nossos seres.
Pensei em amores mui antigos, nos tempos de adolescência. Sempre eu e papéis que me eram confidentes. Sempre acompanhado da timidez, dos sonhos e do platonismo. E o que outrora chegara mesmo a me entristecer, quando acreditava ser incapaz de me converter em alguém normal, com paixões e vidas normais, assumiu o patamar da vida realizada. Thoreau estava certo: é preciso que se aceite o passo diferente dos homens. Eu, durante um tempo, buscava me corrigir, até que pude notar que em si, havia certa especialidade da qual, em anos, eu pude até mesmo ser reconhecido. O que outrora era visto como ilusão fez-se inspiração para criar e fazer disso a semente de uma nova vida que criei.
Mas, tudo parece ocorrer tão cedo! Eu fico a me perguntar a reação daqueles que futuramente possam me ver em algum canal de televisão, ou tendo alguma reportagem em jornal. “Newton... Eu me lembro dele, sim, claro! Mas como? Ele jamais se interessou por música! Nunca o vi falar sobre piano. Terá mantido segredo de nós?”.
Uma vez mais, estava encantado com Rilke e seu “Cartas a um jovem poeta”. Um professor se espantava: “Então o jovem Rilke se tornara poeta”. “E então aquele jovem Newton se tornara pianista”. Há instantes que a vida não parece mais que um sonho.
DIA 13
Desabafos na transição do outono para o inverno - Do sentir-se velho - Um ano atrás - Visita à Sra. Hart - Os pais e a educação aos moldes antigos - A música das gerações passadas - O açúcar, o café e a guerra - Banquete - A morte do avô - Wendel, Kali Yuga e a expansão acelerada do universo - Sobre a fome - Dos veterinários e sua santidade
* * *
Há coisas sobre as quais não desejo falar. Sequer com os papéis. Não tenho a pretensão de expor nem ferir ninguém próximo. Entendo assim, por um segundo, o que levava tantos escritores a criar personagens cujas características se assemelhavam em grande parte às pessoas de seus próprios meios. Construíam meios de desabafar. Mas eu não tenho talento para tal, ao menos por enquanto.
“Some people leave their dreams”, diz o início da canção que ouço.
Pareço viver imerso no passado. Como me sinto velho! Que nostalgia! Ouço canções de décadas atrás, como se fosse tomado pela sensação de ter quarenta ou cinqüenta anos de idade.
O que significa isso tudo, senão a transição do outono para o inverno?
Retornei aos papéis. Os dias parecem correr em uma velocidade incompreensível. Tem-se a sensação de que o tempo se vai tão depressa. Será tudo fruto do começo da estação das lembranças?
Há exato um ano atrás, eu trabalhava em meu "Dias de exílio voluntário". Wagner e músicas tradicionais russas me acompanhavam. Eu me pergunto: deverá ocorrer o mesmo processo nos anos seguintes? Aqueles escritos seguiam a mesma fórmula de agora. Mas ao tomar contato com Conrad e Borges, não mais me senti inútil ao perceber que era incapaz de escrever com impessoalidade, sobre coisas que não eram baseadas senão em minhas próprias experiências.
Quando menos esperava, já bocejava e era incapaz de raciocinar e expor os acontecimentos de um único dia. Também na escrita, requere-se disciplina.
Visitei uma velha amiga. Sim, inquestionavelmente eu a chamaria de amiga, mesmo tendo estado junto de si pela segunda vez. Que pessoa! Logo recebeu a mim e mais um amigo em sua morada. Estava coberta, protegida do frio. Abraçou-me e demonstrou estar contente com minha presença. Bebia chimarrão. "Vó Hart" era como nós carinhosamente a chamávamos.
Com pouco dinheiro por aqueles dias, levei-lhe apenas pão e queijo, presenteando, ao modo maia, as pessoas que me são queridas. Assim, em outros tempos, se faziam os chamados cafés coloniais: cada morador da vizinhança trazia algo.
O modo com que ela cobria a cabeça com uma manta transformava-a em alguém tão hindu, tão indiana, que me fazia divagar por um instante. A voz pausada, as palavras certas e sua vestimenta deixavam-me brincar com minha imaginação e pensar que eu estava diante de uma escritora de quem eu gostava muito.
Os assuntos pareciam brotar com invejável naturalidade. Ela me contava sobre a figura de seu pai. "Ele era um alemão daqueles rígidos. Já minha mãe era uma pessoa mais calma. Foi a quem mais puxei. Ambos me ensinaram lições fabulosas, que ainda hoje trago em minha vida. E eu os agradeço pela criação que tive", "Uma coisa é certa: independente do quanto os pais possam parecer ruins em determinado momento, eles nunca nos incentivaram a fazer o mal. Errei muito por esta vida, Vó. Mas sei que meus erros nunca tiveram aprovação dos meus pais”. Ela respondia: "Eu não condeno a ninguém. Também eu tenho os meus próprios erros. Não pense que sou sempre boa. Mas, que eles nos sirvam de aprendizado", "Nós jovens por vezes somos levados àquela idéia de que nunca nada irá acontecer conosco. Hoje eu considero até mesmo de sorte pelos meus erros não terem sido fatais. Não sei o que às vezes nos leva a ter de aprender com as piores experiências...".
Permaneci sentado em seu sofá, enquanto ela se levantava e preparava a mesa. Agradecia, do outro cômodo, pelo que havíamos trazido, enquanto eu, bem na verdade, até me sentia envergonhado por tão poucas coisas. Conversei então com seu filho sobre a música de outros tempos, também ouvida por minha mãe. A cada nome que eu dizia, encontrava nele uma concordância. Ele justificava: "São músicas da minha geração". Eu não poderia dizer o mesmo. E me perguntava: "Como é possível? Parece-me que até mesmo em questão de música, encontro eco em grande parte nas gerações antigas. Nunca fui daquela época e, no entanto, carrego um sentimento quase próximo de um pertencimento. Estranha e prazerosa sensação".
Fomos chamados para a mesa enquanto eu ainda bebia chimarrão. Eu me sentia envergonhado com tamanha gentileza. Ela dizia: "Espero que o café esteja bom. Sabe, eu me acostumei a tomá-lo com pouco ou sem nada de açúcar. Na época da guerra, você deve saber que os alimentos eram escassos. Meu pai costumava pegar favos de mel para adoçar a mamadeira das crianças, enquanto nós, já maiores, tínhamos de tomar café sem açúcar. Assim, nós nos acostumamos desse jeito". E complementava, ao trazer mais alimentos para a mesa e pedir para que eu me servisse: "Quando vou à casa de outras pessoas, sou muito bem tratada. É algo tão bom! Então penso: por que eu não deveria fazer o mesmo com aqueles que me visitam? São tão poucos! Por isso, sempre deixo algo de especial reservado. Um bolo. Um doce. Algo assim. Tudo para agradar... Por isso, sinta-se à vontade para comer, menino. Sabe, eu também me acostumei a fazer um pequeno lanche antes de dormir. Quando meu sobrinho se encontra aqui, ele já tem noção clara de que quando se aproxima da meia-noite, é preciso arrumar a mesa. Gosto de leite quente. Ele me deixa com um sono!"
Enquanto eu passava doce de uva sobre o pão, conversávamos sobre seu sobrinho e amigo nosso, que decidira seguir carreira militar. "Não o elogio por ser sobrinho ou familiar, mas veja, meu menino: ele tem apenas dezenove anos. Uma criança praticamente! Antes que ele tivesse tomado esse rumo, eu lhe dizia: 'Pense, pense bem'. E ele certa vez me respondeu: 'É o que desejo para minha vida'. Pense na sua responsabilidade, passando semanas fora de casa e comandando a um grupo de jovens no Exército", "Eu o admiro muito. Até mesmo, devo-lhe dizer que fiquei espantado pela forma com que nós nos relacionamos bem desde o primeiro momento. Ele deve ter a senhora como um grande referencial".
Ainda enquanto eu comia, quis o rumo da conversa que chegasse até o seu avô. Ela o descrevia com clareza. Disse ter sido inseparável da música. Fora professor. E em seus últimos instantes, tocou uma velha música chamada "Saudades do matão", que em certo trecho dizia: "Quero morrer. Vou partir para bem longe daqui, já que a sorte não quis me fazer feliz".
"Eu quase não saio. Também não tenho acompanhado mais as novelas. Quanta coisa ruim se ensina nelas nos dias de hoje! Tão diferentes daqueles tempos em que nós a ouvíamos! Então prefiro me recolher e fazer minhas palavras cruzadas. Ah, como adoro fazê-las! Tão logo que uma está prestes a acabar, eu corro comprar outra".
Pensei no que um amigo certa vez havia falado, sobre a lucidez de sua avó. Ele a atribuía às palavras cruzadas. Nossa Vó Hart teria seguido a mesma receita? Se sim ou se não, fato é que se podia conversar sobre tudo com ela.
Nós nos despedimos, assim que a névoa parecia tomar conta das ruas. Também esfriava. Abracei-a como se o fizesse a um familiar. E ela, assim como seu filho, dizia me querer bem e que quando desejasse, que retornasse à sua morada. Agora, estávamos mais perto um do outro. Apenas algumas quadras nos separavam.
Reencontrei meu amigo Wendel, que dizia: "Acabei de retornar de um passeio da Faculdade. Fomos a um Observatório Astronômico. Foi ótimo. Vi planetas pelo telescópio. Vi a lua! E lá, aprendi algo que se encaixa completamente com a teoria de fim dos tempos grega e indiana, mais especificamente sobre o declínio das raças pela visão de Hesíodo, representando aquela mitologia, e o Kali Yuga representando esta. As pesquisas em Astronomia também se encaminham na direção de um fim. Tem relação com a dita 'expansão acelerada do universo'. Parece-me que estão vendo - ou talvez prevendo - uma influência muito grande de outras forças que estão presentes no universo, como a matéria e a energia escura, e elas tendem a agir nos átomos, separando os núcleos de tudo. Em outras palavras, chegaria um dia em que o universo e tudo se desintegraria, como que desmoronando, tal como um castelo de areia. Pensei, inclusive, na possibilidade dessa energia escura estar agindo na sociedade, pois há tempos vivemos em um desequilíbrio desenfreado. Talvez seja da natureza das coisas existir esse declínio. Quem iria prever que um dia, haveriam campanhas a estimular para que crianças fossem mortas ainda no ventre das mães? A parte incômoda está em saber que estamos decaindo. Mas ah, independente do quão angustiante possa ser, eu continuo a lutar. Faz parte da nossa natureza".
Não tinha muito que comer pelos últimos dias. Não faltava, nem sobrava. Não havia opções. Batatas e arroz era o que me restava. Eu havia gastado tudo o possível com a música. E, no fundo, não dava importância para o pouco que comia, pois sabia que tudo, como se costuma dizer, era voltado a uma “nobre causa”. Passaria fome, se fosse preciso, pelo futuro do que crio. Mas, fato é que percebendo esta situação, embora quase que proposital, um amigo, sensibilizado ao visitar-me, entregou-me uma sacola com alimentos. Eu sorri, dizendo: “Não, não é preciso”, mas ele não aceitou a recusa de sua ajuda.
Tomei conhecimento da perda da audição no ouvido esquerdo do meu cão. Eu não soube como reagir, senão lamentando. Coitado. Coube à minha pessoa cuidar de si. E fazer com que o tratamento que me foi recomendado, pudesse ser disciplinado. 20 dias. Dezessete gotas a cada sete horas. Quando busquei ajuda, encontrei o veterinário Nelson a cuidar de um cão que possuía uma pata quebrada. Isto me fazia pensar que aqueles que se dedicam deste modo aos animais, são donos de certa santidade. É o seu caso.
DIA 14
Dramaturgia - Boas recordações sobre Nasser - Entrega de uma escaleta - O preço da companhia - Da minha identificação com uma peça - Cartas a Theo - Sarah Kane e a corrupção na dramaturgia - Crimes em forma de clássicos reescritos - Perpetuação da degeneração e patologia através da arte
* * *
Correm os dias de forma intensa, quase imperceptível. Eu me pergunto se outros, em suas respectivas épocas, também um dia se perguntaram se acaso nós envelhecemos sem perceber. Assim me sinto.
No Núcleo de Dramaturgia, em minha segunda participação, tive um encontro agradável. Tive uma conversa interessantíssima com uma colega professora. Falamos sobre o quanto nós nos sentíamos privilegiados ao assistir as palestras do Sr. Nasser. Com ela, era possível ser dito que consiste em uma espera ansiosa, até que um mês se passe e que, enfim, possamos uma vez mais mergulhar em um novo clássico. Ela, inclusive, havia dito ter lido meu texto sobre a primeira palestra, sobre “Crime e castigo” de Dostoievski.
Ainda aguardávamos pelo professor, quando ela virou para mim e falou sobre um conto de um escritor local, a respeito de alguém que herdara a biblioteca de um pai, mas que não percebia a riqueza dos livros. Ela então se abria comigo e falava sobre sua relação íntima com os livros e que tal qual Borges, a biblioteca havia sido um acontecimento importante em sua vida.
Era preciso apresentar uma escaleta simples àquela tarde. Eu a fiz apressadamente, um dia antes.
Um homem espera seu ônibus na rodoviária. Escreve e lê sobre uma mesa, enquanto fala consigo próprio. Isto ocorreria em forma de monólogo. Como segunda cena, ele embarca. Mexe nos seus pertences. Escreve. Rabisca. Apaga. Algo de confuso ocorre no banco ao lado. Alguém então senta ao seu lado. É jovem. Ambos conversam. Na terceira cena, ambos percebem que vão ao mesmo destino. Classifico o estado da conversa como extasiante. A cena seguinte se foca na chegada. Minhas colocações deram margem para outras interpretações. O homem faz uma proposta ao jovem. Entrega-lhe certa quantia em dinheiro. Os dois conversam de modo enérgico. Há revelações. O jovem lhe mostra fotos. O homem lhe mostra livros. Retornam, então, à rodoviária. Comem algo e tomam o ônibus de volta. E finalmente, na última cena, o ônibus chega. O jovem compra novamente sua passagem. O homem lhe agradece, deixa-lhe seu endereço e pede que o procure. Volta para casa. Quer escrever.
Chamei este esboço de "O preço da companhia". Por algum motivo específico e sobre o qual ainda não refleti o bastante, o jovem tem costume de tomar os ônibus de apenas uma companhia. Pode, por exemplo, ser fruto de um trauma. Perdera, quem sabe, parentes na outra companhia, segunda e única outra disponível em sua cidade. O homem, por sua vez, toma o ônibus sem dar importância ao deslocamento. Quer inspiração apenas. E ao constatar que o jovem é dono de histórias ricas, e que não tem um horário específico para chegar ao seu destino, decide lhe oferecer certa quantia para que tome consigo um ônibus de volta para o mesmo lugar. Quer poder conversar mais tempo. O jovem aceita, mas com uma condição: que ele lhe pague apenas o preço da passagem de determinada companhia, com a qual ele sempre viaja. O homem aceita.
Não seria necessário muito esforço para perceber que há nisto um fundo bastante pessoal. Sou ali o homem que tem facilidade para escrever enquanto viaja. Sou o jovem que viaja sem horários estipulados, e é capaz de adiar a tudo por uma boa conversa. Sou eu os dois, personagens isolados, fantasmas de sua própria época. Não acreditam na Democracia. Sabem que nunca se censurou tanto quanto numa época que toma para si o velho chavão da liberdade de expressão. Nunca se fez a humanidade de cobaia tanto quanto agora. Vive-se um pesadelo. O pior de todos os tempos.
Todos leram as suas respectivas escaleta. Eu me identifiquei muito com a história de um rapaz. Nela, em linhas gerais, uma mulher, depois de muito tempo, percebe que sua grande realização está em sua filha. Imersa nos estudos – ao menos na minha interpretação –, levara tempos para perceber que também a realização e o sentido da vida pode estar em questões simples – embora nunca tão simples – como é o caso de se trazer ao mundo uma nova vida. Minha sorte era a de que ao contrário da personagem, eu não havia levado não mais que um ano para compreender este tipo de realização.
Para este dia, fora necessário ler duas peças. Uma de Marici Salomão, de nome bilhete. Peça interessante. A história se passa em um trem. Ocorre um diálogo entre uma senhora contadora de histórias e uma jovem. Minha colega virou-se para mim a perguntar: “Esta citação que há na primeira página... É do...”, “É de ‘Cartas a Theo’, de Van Gogh”, “Sim. Você o leu?”, “Algumas partes”, “Eu acredito que a personagem está inspirada em algumas passagens do livro. Você não vê o mesmo?”, “Seria difícil eu dizer que sim, porque não o li com profundidade. De qualquer forma, na minha interpretação há uma espécie de jogo entre a passagem do livro e o que diz a moça protagonista da peça. Perceba que o trecho que ela lê parece não corresponder com o próprio comportamento dela. Ela lê: ‘Esquecer-se de si, realizar grandes coisas, atingir a generosidade e ultrapassar a vulgaridade na qual se arrasta a existência de quase todos os indivíduos’. Talvez eu não esteja certo”.
Falamos então sobre a outra peça, “Blasted”, de Sarah Kane. “O que a senhora achou?”, “Senhora!? Chame-me de ‘você’, por favor,”, “Desculpe... É costume da criação”, “Eu a achei pesada, muito pesada”, “Ela não me agradou... Há partes horríveis, simplesmente horríveis!”. Minha colega dizia ter encontrado, pelos caprichos da curiosidade, esta peça sendo encenada no Chile. Automaticamente eu pensava: “Quem em sã consciência haveria de levar sua família para assistir a uma peça onde, ao seu final, um homem se masturba e tem um pesadelo onde come o cadáver de um bebê!?”. E eu parecia não estar errado ao ter tido péssimas impressões. Talvez seja eu um ignorante completo em relação a possíveis “técnicas brilhantes” de Kane, mas a voz do meu coração parece falar mais alto. Aquela peça não me passava nada. Pior. Era angustiante, da náusea sartriana. E o seu destino pessoal parece ter correspondido à altura de sua mensagem artística: Kane, uma perturbada, cometera suicídio dois dias após de uma superdosagem de remédios. O conteúdo das suas peças parece refletir quem era ela como pessoa.
Considero um crime perpetuar a perturbação mental através da arte. Sinnead O’Connor estava certa: o artista possui um poder de mobilização incrível, através do que realiza. Para bem ou para mal. Mas o fato de se viver uma angústia interior não deveria dar ao artista o direito de fazer com que sua perturbação seja compartilhada pelos demais. Pelo contrário. A arte deverá assumir um papel de redenção. Meu maior exemplo, neste sentido, foi Wagner. Nunca imaginei que o protagonista de tamanha arte triunfante era o mesmo a viver crises internas e externas: da melancolia às perseguições, do desânimo à fome.
Os grandes clássicos souberam bem explorar a natureza humana em seus detalhes mais profundos. Mas o que Kane faz parece não se encaixar nesta categoria. É já próximo da patologia.
Assim são os últimos momentos de “Blasted”, na tradução de Laerte Mello: “Ian se masturba (...). Escuridão. Luz. Ian se estrangulando. Luz. Ian cagando. Depois tentando limpar a merda com o jornal. Escuridão. Luz. Ian rindo histericamente (...). Ian desfaz a cruz, tira as ripas de cima do corpo e tira o bebê para fora. Ele come o bebê (...)”.
A peça de Kane é perturbadora. É indecente. Grosseira. Degenerada. Na interpretação dos teatrólogos modernos, ela é vista quase que como um marco. Mas a mim, “Blasted” traz a mesma sensação do pior dos hospícios. Pois no fundo, à parte dos estudos, eu não sou mais que um homem comum.