MILITARES
Militares
Várias vezes pensei em escrever estes comentários. A cada vez que percebo as virulentas criticas aos militares, o não entendimento da missão específica que lhes cabe, o enxovalhamento a que estão sendo submetidos – principalmente no Brasil, mas também em todo o mundo - sinto uma revolta contra o silêncio que se impõe e percebo que nenhuma voz se levanta, nem aquelas vozes categorizadas da nação que deveriam, em momentos como estes, se pronunciar para esclarecer as assertivas contundentes que são propagadas aos quatro ventos e que são de grande interesse para o exercício consciente da cidadania e mesmo para o futuro da humanidade.
A última vez em que pensei no assunto em tela foi quando visitei, há pouco tempo, o Monumento dos Mortos da 2ª Guerra Mundial, no aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro. Tive o privilégio e a honra de, em 1960, junto com meu pai, meu irmão e dois dos meus tios, levarmos, pelas mãos, cada um segurando uma alça de urna, os restos mortais dos seis pracinhas, padioleiros, que foram soldados do meu pai, que comandou o Batalhão de Saúde da Força Expedicionária Brasileira, na Itália, entre 1944 e 1945. Caminhamos do Arsenal de Marinha, onde recebemos as cinzas dos soldados mortos na campanha européia, que foram transportadas desde a Itália pelo Cruzador Tamandaré, até o Parque do Flamengo, cruzando toda a Avenida Rio Branco. O povo, respeitoso, aplaudia sem muito entusiasmo, parecendo não entender muito bem o que estava se passando. Manifestações bem diferentes daquelas quando os pracinhas regressaram da guerra em 1945 – uma apoteose, com multidões nas ruas saudando os militares que regressavam cobertos de glórias, ou quando regressou ao Rio de Janeiro a Força Naval do Nordeste, onde a Marinha desempenhou relevantes serviços na proteção de comboios, das nossas costas e do mar territorial.
Tomo esta iniciativa de escrever devido a minha formação. De certa forma posso dizer que estive, emocionalmente, presente em todas as guerras de que o Brasil participou e acompanhei a evolução das nossas Forças Armadas, ao longo de décadas, com interesse muito particular. Foram tataravós, bisavós, avós, pai, irmão, tios, que delas fizeram parte desde as Campanhas do Prata, por volta de 1850, até a 2ª Guerra Mundial, finda em 1945. Ouvia, com muita atenção e interesse, os relatos do ocorrido, primeiro pelas conversas com meu pai, meu avô paterno e meu irmão mais velho oficial da Marinha. Depois li dezenas de livros e assisti inúmeros documentários cinematográficos ou filmes baseados em fatos reais.
Uma lembrança muito forte, que me ficou na memória, foi a descrição, feita por minha mãe, de quando o Marechal Setembrino Carvalho comunicou, fardado, acompanhado de sua esposa, ao meu avô, o General Eurico de Andrade Neves e a minha avó Elvira, que residiam à época num sobrado na Tijuca, no Rio de Janeiro, a morte do meu tio, irmão da minha mãe, o Capitão Carlos de Andrade Neves, nos campos de batalha da França, em 1918. O Brasil, na Primeira Grande Guerra, 1914-1918, enviou, além da Divisão Naval de Operações de Guerra que manteve patrulhando o Atlântico entre Recife e Dakar, uma missão de oficiais e um grupo da saúde, para ajudar o exaurido exercito Frances no seu quarto ano de guerra. Meu pai, quinto anista de medicina, foi trabalhar nos hospitais franceses e completou, na França, seu curso de medicina no Hotel Dieu, hospital que até hoje existe ao lado da Catedral de Notre Dame, em Paris. Meu avô paterno, então tenente coronel, foi subcomandante de um regimento de cavalaria francesa. O tio Carlos comandava uma bateria de artilharia de campanha. Faleceu pouco antes do fim da guerra, na batalha que veio a ser depois conhecida como a do Segundo Marne. Mamãe e minhas tias, mocinhas, acordaram com o alvoroço da casa e do alto das escadas viram o Marechal Setembrino comunicar a morte do irmão. Vovô Eurico, fardado, permaneceu impassível. Vovó Elvira, praticamente desmaiada nos seus braços, começou a chorar baixinho e nunca mais se recuperou do trauma.
Lembro, já adolescente, ter ido com papai e mamãe visitar os mortos da família, sepultados no Rio de Janeiro, no cemitério do Caju. Lá estava o túmulo do tio Carlos com a réplica da cruz de madeira que ornamentara seu túmulo na França – il est mort dans le champ d’honneur... . Embaixo da inscrição a reprodução da condecoração francesa que recebera postumamente, a Legion d’Honeur. Os restos mortais do tio Carlos, anos depois, promovido post mortem ao posto de major, foi transladado para Curitiba, sua terra natal, e a cruz está no museu da cidade.
Nunca esqueci estas narrativas e experiências. Elas consolidaram na minha memória, como marco referencial de alto valor patriótico, momentos estranhos ao quotidiano da família, mas narrados com orgulho e carinho – como ações dignas de serem lembradas e homenageadas.
Ao visitar o grande monólito de mármore negro, recordando os mortos da guerra do Vietnan, em frente do Lincoln Memorial e o cemitério de Arlington, em Washington, uma homenagem do povo americano aos seus mortos nas várias guerras em que estiveram presentes, passei a ter uma perspectiva mais abrangente da missão e do destino dos militares no nosso tempo. Fui a Normandia, em 1995, nas comemorações dos cinqüenta anos do fim da Segunda Guerra Mundial, procurar o recanto de repouso dos milhares de militares, de várias nações, que tombaram naquele lugar no esforço aliado para por fim a dominação nazista e fascista. Não esqueço, nas várias capitais e grandes cidades do continente europeu, as placas, em algumas ruas, com os nomes dos membros da resistência que, naqueles lugares, foram mortos pelos invasores - um preito de permanente recordação e reconhecimento ao heroísmo que recorda como argumento explicativo do ato praticado, um único e decisivo motivo – amor à pátria e à causa da liberdade. São milhares de cemitérios e monumentos dedicados aos militares que morreram em milhares de combates, que podem ser encontrados em todo o mundo.
Por quê? Qual a justificativa destas mortes? Foram mortes diferentes das demais tragédias e violências, foram mortes aceitas em razão de ordens, compromissos e juramentos feitos, talvez até mal compreendidos, talvez até impostos em situações sem alternativa, foram mortes dignificadas por uma causa: - a liberdade de um pedaço de terra do planeta chamado pátria. Não são apenas palavras vans – dever, honra, compromisso, pátria, lealdade, liberdade – são palavras que expressam uma adesão a uma crença, mesmo que não sustentada por refinadas elaborações intelectuais, e, em decorrência, comportamentos que geram fatos e conseqüências.
Jamais esquecerei as narrativas familiares, os livros, os filmes, as visitas a estes lugares tornados sagrados pelos corpos daqueles que entregaram suas vidas, como mártires, por uma causa. Com emoção recordo aqueles momentos de suprema dedicação à pátria, de coragem, de lealdade e honra, de testemunho à valores morais que estão se perdendo, referências que fazem parte dos fundamentos mesmo das sociedades e sobre as quais as novas gerações pouco ou nada conhecem. É preciso recordar que tais alicerces foram construídos com vidas que foram ofertadas em prol de um ideal que aqueles homens e mulheres, bravos e determinados, acreditavam e ajudaram a defender.
Vidas livres e conscientemente oferecidas por causa de uma crença tornam quaisquer mortes dignas de respeito, não necessariamente de adesão ou de aplauso às causas que motivaram o fato, mas de respeito. Se nada for acrescentado como explicação, basta a presença dos mártires de um ideal para que o ocorrido permaneça como algo pelo menos diferente a ser lembrado, com criticas ou aplausos, mas respeitado. Nenhuma vida ofertada é uma oferta vã, mesmo que motivada por pensamentos simples, talvez até ingênuos. A entrega consciente de uma vida transmuda, em solenes compromissos históricos, de condenação ou aplauso, o objetivo pelo qual alguém lutou e morreu. A radical opção que foi tomada pelo militar que morre em combate, probabilidade sempre presente em suas vidas, é um fato a ser considerado quando a eles nos referimos. Ofertar seu bem mais precioso a uma causa coletiva faz do militar uma figura distinta das demais pessoas, mesmo aqueles soldados que convocados, como um dever temporário imposto pela cidadania que usufruem, de acordo com as leis e a Constituição dos seus países.
Reverencio aqueles militares que, muitas vezes, mesmo sem entender as intrincadas e tortuosas vias da política e da diplomacia dos seus países, honraram seus juramentos de servir, honraram a suas fardas e ofereceram o que possuíam de melhor e de mais precioso – suas vidas. Acreditaram que todos os mecanismos sociais e políticos, que fizeram mover o destino e as decisões de uma sociedade até aquele momento de confronto, eram medidas justas, assumidas também por homens e mulheres honestamente imbuídos do mesmo compromisso coletivo. Não perceberam que alguns mentem, que alguns, solertes personagens, muitas vezes forçaram as situações de conflito que conduziram a história para um momento de guerra.
Há momentos históricos, criados por circunstâncias muito especiais, onde a maioria da nação passa a acreditar numa causa, na proposta de que todos estão comprometidos honesta e verdadeiramente com um objetivo comum certo, adequado, honesto e, portanto, justificando o sacrifício extremo se assim for necessário. Não que eles, militares, sejam melhores do que os outros concidadãos, mas, no entanto, carregam pela vida a consciência de que pelos outros são capazes de se entregar integralmente, até morrer se preciso for, por decisão livre que assumiram ao optarem pela carreira militar. Como decorrência, necessariamente cultivam a coragem de agir, coragem que descobrem no fundo de suas almas, fruto não só do treinamento que recebem para o desempenho de suas missões específicas mas também pela motivação das gloriosas tradições e exemplos do passado que lhes foram ensinados e nos quais acreditam integralmente. Foi assim, quase sempre, nestes cenários de lutas que a humanidade progrediu em direção à democracia, à liberdade e à paz. As conquistas das civilizações não foram conquistadas e consolidadas com discursos ou poesias – foram fruto de lutas cruentas onde os vencedores impuseram seus estilos de vida e suas formas de pensar num processo persistente e ininterrupto do progredir da história das nações.
Orgulho-me de uma época que parece que já passou em definitivo, não restando nem a memória dos fatos gloriosos que abrigou. Abomino os medíocres que, indistintamente e a cada oportunidade, criticam mentirosa e irresponsavelmente os militares. Eles não deviam existir, dizem. São criticas vulgares, perversas e mentirosas na sua ação demolidora de uma história e de testemunhos que um dia honraram e motivaram o orgulho de nações inteiras. Hoje, em sociedades amorais, a lembrança honrada do passado ainda incomoda. Por isso é preciso desmerecê-las, senão suprimi-las. E, o pior, não se quer conhecer a verdade – se satisfazem na sua ignorância. Não querem pensar sobre as reais circunstâncias e condicionamentos políticos, legais, sociológicos e psicológicos que conduziram a existência dos militares, como grupo social diferenciado como tantos outros grupos que formam uma sociedade democrática. Não querem conhecer as circunstâncias políticas que levaram às guerras e o porquê da persistência das mesmas até os dias atuais.
Quem são os realmente responsáveis pelas tragédias que são as guerras que se abateram sobre a humanidade, em todo o seu percurso histórico e lá se vão centenas de séculos?
O que condiciona os militares a ser o que são, cultivando um estilo de vida e uma forma de pensar muito próprios?
Recordam sempre as torturas praticadas – fato que, inegavelmente, mancha a história militar de forma terrível. Esquecem, no entanto, que foram alguns desajustados, que existem em todos os grupamentos humanos, que praticaram o ocorrido, condenados pelos próprios colegas, nunca uma política determinada pelo estilo de vida que os caracterizam ou da instituição a que pertencem. Foram, sempre, no Brasil e em todos os países, iniciativa de pessoas com personalidades distorcidas, como aquelas outras também encontradas em quaisquer corporações, e pela qual os militares já pagaram, sozinhos, um preço excessivo. Erraram mas não todos, apenas alguns poucos. Podemos recordar atrocidades e arbitrariedades praticadas, no decorrer das ultimas décadas, pelo exercito Frances na guerra de libertação da África do Norte, pelo Inglês na manutenção da ordem em suas colônias, dos Estados Unidos na guerra permanente no Oriente Médio, pelo Russo no Afeganistão, pelo Japonês na China e Coréia, pelo Alemão em toda a Europa, pelo Português em Angola e Moçambique, pelo Brasileiro na revolução de 1964. São fatos deploráveis, merecedores de condenação: – condenemos o desvio ocorrido não a corporação inteira pela ação de alguns de seus membros.
Os militares em todos os países democráticos, a maioria do Ocidente, são subordinados ao poder civil. Se bem pesquisarmos a história podemos, hoje, verificar como os civis sempre condicionaram o comportamento dos militares, procurando nas forças armadas o necessário poder para desfazer os mal feitos por eles mesmos praticados ou dar continuidade às suas políticas de interesse nacional, também por eles definidas. Não poderia ser de outra forma, pois os civis, na quase totalidade, são os que compõem o poder executivo, o legislativo e o judiciário eleitos pelo povo. Guerras, revoluções, não foram organizadas, planejadas, gestadas, pelos militares – certamente eles informam, assessoram o poder civil, mas não decidem - cumprem ordens. O poder civil, os interesses econômicos, empresariais e políticos, os meandros da política internacional, formam o pano de fundo, o ambiente histórico que, em ocasiões especiais, conduzem ao conflito armado. É fácil distorcer os fatos junto à mídia e à população, oferecendo os acontecimentos que incriminem, no desenrolar do processo litigioso, aqueles que estão à frente dos fatos e são facilmente identificáveis, especialmente se fardados e armados. Por uma questão de formação, de disciplina, de organização de uma sociedade democrática, os militares permanecem calados e não explicam ao povo as razões de sua presença no processo beligerante, ao qual foram convocados a participar. Depois, quase sempre, o poder civil cala sobre as razões e conseqüências trágicas de suas decisões. Passados os eventos do conflito, muitas vezes ajudam a jogar pedras naqueles que executaram suas determinações - os militares.
Na Alemanha nazista os militares erraram ao permitir a ascensão de Hitler e dos seus asseclas. Mas o poder civil, os partidos políticos, as Igrejas cristãs, a mídia, também não souberam ou não quiseram reagir – calaram-se – foram coniventes com a barbárie que se estruturava, com a liquidação da liberdade. Depois culparam os militares por terem permitido a ascensão do tirano. O mesmo ocorreu na Itália fascista, na Espanha franquista, em Portugal salazarista. O mesmo ocorreu em outros países latinos americanos. O mesmo aconteceu no Brasil quando políticos, banqueiros, empresários, latifundiários, representantes das Igrejas cristãs, expoentes da imprensa, envolveram os militares com a argumentação de que só eles poderiam salvar o Brasil das mãos do comunismo internacional, pedindo um basta à republica sindicalista que um presidente fraco e inepto favorecia. Esquecem-se, os que espezinham e criticam os militares, especificamente no Brasil – poucos conhecem a história contemporânea - que o comunismo internacional, muito bem organizado em suas múltiplas ações internacionais, naqueles anos que sucederam o fim da 2ª Guerra Mundial, até o fim dos anos de 1980, quando ruiu o muro de Berlim e a seguir o império soviético, estava pronto para assumir o controle de vários países, mormente na America Latina e África. Hoje esta trama internacional está amplamente divulgada e existe farta documentação que comprovam as ações do comunismo internacional durante as décadas da “guerra fria”. É de se recordar o que efetivamente ocorreu quando o comunismo internacional, com a União Soviética à frente, se assenhoreou, no final da década dos anos de 1940 da Hungria, da Romênia, da Bulgária, da Albânia, da Tchecoslováquia, da Polônia, da metade da Alemanha, quase tomando conta, inclusive, da Itália, da Grécia e da França. Era a esperada libertação dos povos do domínio capitalista. Não diziam que também seria o fim da liberdade muita mal plantada em inúmeras nações, mas promissora em outras como era o caso do Brasil.
Caso os comunistas tivessem vencido por estas bandas, o sistema de organização da sociedade que pretendiam implantar não permitiria o aparecimento nem de Lula, nem de Chávez, nem de Evo Morales dos dias atuais. Fidel Castro não se apercebeu que a sua revolução era própria e adequada à sua ilha Cuba e acabou perturbando o continente sul americano e até a África, com suas propostas socialistas ineficientes e ultrapassadas, com sua megalomania ridícula e truculenta e lá está até os dias de hoje a encantar parte da juventude ignorante do que realmente ocorreu. Os militares salvaram a democracia no Chile e no Brasil. Isto não é dito nem lembrado – um lamentável erro histórico, uma covardia acadêmica. A liberdade que hoje usufruímos se deve a revolução de março de 1964. Certamente foram terríveis e condenáveis as prisões arbitrárias, as cassações de direitos políticos, as torturas, o fechamento do Congresso Nacional, a censura da imprensa – uma mancha na nossa história. Aconteceu, no entanto, num momento histórico muito próprio e, lamentavelmente, foi a resposta encontrada para o mal feito por civis, políticos, acadêmicos e empresários, que não souberam fazer vencer suas idéias pelo caminho da democracia. Ao não atenderem as necessidades dos mais pobres, em décadas de vigência de um estado democrático em permanente evolução, criando “dois brasis” - os do que possuíam alguma coisa e a grande massa dos marginalizados - possibilitaram que demagogos incompetentes, seduzidos pelo socialismo irreal e inaplicável, como logo depois a história acabaria por comprovar, tentaram uma revolução. A contra revolução que se instalou, autoritária, foi a resposta encontrada para suprimir a ameaça da ditadura comunista que se anunciava. Terrível momento da história brasileira, que se espera que não mais se repita.
As criticas superficiais e quase sempre ofensivas, são simplistas: – os militares são boçais, estúpidos, com pouca formação acadêmica não compreendem a história, a dinâmica social e desprezam os civis. São perversos, cultivam a violência, são autoritários e não admitem críticas. São arrogantes, acobertados pelas armas e pelo poder que ainda possuem.
Não é nada disso.
As ciências sociais, os estudos antropológicos, políticos e sociológicos, apontam, com clara evidência, a importância que a natural divisão do trabalho teve na organização e no funcionamento da vida coletiva das várias sociedades, que se formaram ao longo dos tempos. Certamente foi um dos fatores determinantes mais importantes para o progresso da humanidade. Com o passar do tempo a especialização permitiu o progresso das ciências, das tecnologias, das artes, da reflexão filosófica, teológica e da política. Cada um, com a divisão do trabalho, teve a oportunidade de desenvolver suas naturais preferências e habilidades, permitindo assim o crescimento do estoque de saberes e o aperfeiçoamento das sociedades, contribuindo para que uma forma de viver coletiva, uma cultura diferenciada se tornasse possível e sobrevivesse ao confronto com outros grupos humanos, firmando sua individualidade própria e prosperando como nação.
Na divisão natural do trabalho quais são as atividades típicas dos militares? Sempre foi a da defesa da comunidade, da vida e das propriedades – publicas e privadas - dos seus cidadãos, da soberania do seu território, da integridade de suas rotas comerciais, enfim do conjunto de interesses e conquistas que tornaram cada sociedade distinta das demais e convivente, num mundo cada vez mais interdependente e competitivo, com outras sociedades também soberanas e com interesses e objetivos próprios a defender. É óbvio que para cumprir sua missão, como parte integrante de uma sociedade, com missão específica determinada pela divisão do trabalho, os militares são preparados para a luta, para o combate, para a guerra. Falhando os políticos, os diplomatas, na defesa dos interesses vitais de uma nação, a manutenção de sua identidade, resta a decisão pela força das armas, decisão esta sempre subordinada, mesmo durante sua execução, ao poder político civil, democraticamente constituido. Clausewits, já no sec. XIX, definia a guerra “como a política exercida por outros meios”,( War is not merely a political act, but also a political instrument, a continuation of political relations, a carrying out of the same by other means – in Da Guerra"). Esta assertiva não é contestada pois é clara a sua evidência, mesmo nos dias atuais. Isto ainda é verdade – fracassando as atividades geracionais de uma sociedade democrática, exercida pelos civis, só resta, se esta mesma sociedade pretende continuar a sobreviver livre e soberana, o apelo àqueles que destinaram suas vidas para a defesa da pátria, como ultima opção para a sua sobrevivência como grupo humano com características próprias.
Portanto, não peçam aos militares que se neguem a lutar. Não esperem que afrouxem e percam um combate, uma guerra que, uma vez iniciada, pelos políticos e diplomatas, por civis, tem uma dinâmica própria – vencer o inimigo da pátria, atingindo os objetivos determinados pela liderança política. A partir da deflagração de um conflito bélico cessa a lógica da paz, do altruísmo solidário, da bondade nas relações humanas – vigora a lógica da eficiência dos combates, a lógica da vitória a ser conquistada nos campos de luta, conduzida e interpretada pelos militares, pois este é o seu trabalho, a sua especialidade, a sua missão. Podem os militares até ser incompreendidos, criticados por suas ações, mas não peçam nem esperem que sejam traidores da razão de suas vidas – a defesa da pátria – construída pela natural divisão do trabalho numa sociedade que é dirigida por civis, num sistema político representativo e participativo, sob o império da lei que, democraticamente, conduziram o país à guerra.
Em momentos de discussão pública sobre o papel dos militares, na vida de uma nação, sempre são lembradas as palavras do discurso de despedida do Presidente dos Estados Unidos, General Eisenhower, em que denunciou o perigo, para a democracia e a paz, das pressões políticas exercidas pelo “complexo militar industrial”. Parece que os eternos críticos das forças armadas se esquecem do componente industrial e só se referem ao componente militar, da argumentação apresentada no discurso do ilustre Presidente americano. Sabe-se, e a mídia é exuberante em apresentar os fatos ocorridos no ultimo século, como os civis, donos das indústrias que podem produzir artefatos bélicos, capitalistas possuidores de incalculáveis riquezas, manipulam a política, os políticos, muitas vezes os corrompendo, da mesma forma como se intrometem nas relações internacionais, quando seus negócios indicam ser o melhor caminho para prosperarem, gerando situações de conflito entre nações, para assim obrigar, “pelo interesse nacional”, a interferência militar.
Certamente que as forças armadas conhecem o potencial bélico de possíveis contendores e, logicamente, solicitam nos orçamentos nacionais as condições mínimas de equipamentos e armas para, quando e se forem chamados a atuar, possam atender com eficácia os apelos da pátria, interpretados pelos civis, parlamentares, empresários, diplomatas, que representam a nação. Não queiram que uma força militar, mal equipada e mal treinada, possa atender às expectativas de defesa do povo apenas com coragem e disciplina. É preciso que as forças armadas estejam equipadas na proporção das possíveis missões que o poder civil possa, um dia, vir a ordenar que cumpram. É normal, numa sociedade democrática, que os vários segmentos que a compõe – educação, saúde, transportes, comunicação, forças armadas, energia, agricultura, indústria – procurem nos orçamentos a serem votados uma melhor participação, amparados por argumentos e estudos comprobatórios de suas necessidades. Os recursos, os orçamentos, são produtos de decisões de civis que atuam no legislativo e executivo – são eles que estabelecem as prioridades, julgam as solicitações e direcionam os recursos nacionais segundo os interesses da nação da qual são os legítimos representantes. Não são os militares que determinam a parcela da riqueza nacional que a eles deve ser alocada – como os demais setores apontam suas necessidades e apresentam suas justificativas. Se o sistema político não é autenticamente representativo dos interesses nacionais pode sim ocorrer distorções, mas, mais uma vez insisto, a responsabilidade pelo mal feito cabe aos civis que gerenciam e decidem os destinos do país.
Iludem-se os que pensam que as guerras, os conflitos armados não mais ocorrerão. Basta prestar atenção para o que vem acontecendo de forma crescente, em nossos dias, em todos os continentes: terrorismo desvairado, crime organizado atingindo vastas extensões territoriais, o narcotráfico, as disputas étnicas e religiosas, os questionamentos sobre a localização das reais fronteiras que dividem as nações, o acesso e o uso dos mananciais de água potável, a posse de fontes de energia não renováveis, a exploração dos minerais do fundo dos mares, os direitos de pesca, a poluição atmosférica que supera as fronteiras terrestres afetando vários países, o contrabando de mercadorias perturbando o comercio internacional. São questões que devem ser consideradas para que se perceba, com maior clareza, a necessidade dos países de manterem forças armadas eficientes, com rápida capacidade de mobilização e de deslocamento de expressivos efetivos, de tal forma que o país que as utilizar possa garantir sucesso na iniciativa e seu objetivo estratégico ser alcançado.
O Brasil, recentemente, precisou apelar para as forças armadas com a finalidade de restabelecer a ordem em determinada área do Estado do Rio de Janeiro, então nas mãos do crime organizado, fato que pode ocorrer em outras unidades da federação. O Governo Brasileiro enviou e mantém tropas no Haiti e deverá contribuir na Força de Paz que irá se estabelecer no Líbano, como apoio e afirmação de sua política exterior. Em passado não muito remoto, enviou militares, sob o comando das Nações Unidas, para a faixa de Gaza e para o Timor, bem como observadores da ONU na conflagrada ex Yuguslávia, com a missão de assegurarem a paz ameaçada naquelas paragens. Precisamos estar preparados para estas missões que podem ser solicitadas a qualquer momento neste mundo instável em que vivemos. No entanto, para que isso aconteça, torna-se necessário uma política permanente de reequipamento, treinamento e manutenção de um efetivo mínimo do Exercito, Marinha e Aeronáutica, de tal forma que nossa presença no mundo contemporâneo seja considerada como um país de real expressão econômica, política, diplomática e militar. Não há alternativa a ser considerada - a não ser a irresponsabilidade para com as necessidades da nação.
Os militares, os cidadãos que por primeiro sofrem com os horrores da batalha, com os sofrimentos infligidos pela guerra, são os cidadãos que mais aspiram a paz. Vale, no seu estilo e determinação de vida, a sábia orientação da máxima latina: “Si vis pacem, para bellum”, (se queres paz prepara-te para a guerra). Cabe aos civis, ao processo educacional de qualidade, às Igrejas cristãs, eliminarem ou diminuírem o mal, o pecado do mundo, conquistando as condições de realização da paz. Os militares devem ganhar as guerras, proteger a nação, suas leis e Constituição – esta é a sua missão, sua atribuição constitucional.
Certamente podemos visualizar na já longa caminhada da humanidade, exemplos notáveis de virtudes pessoais e coletivas, bem como instantes da mais deslavada predominância do mal cometido por pessoas ou por grupos de pessoas. Não precisamos nos deter muito mais debatendo este pressuposto óbvio e irretocável: - o mal, nas suas várias formas de manifestação, existe como decorrência mesmo da liberdade e da racionalidade da pessoa humana que faz opções na sua vida. Os militares, tratando-se daquilo que é considerado um mal para a sua nação, por sua liderança política civil, tratarão de eliminá-lo ou conte-lo, segundo os meios de combate e de treinamento que possuem.
Apreendi que certas palavras, com todas as suas possibilidades e força de comunicação, são o norte, a orientação principal da vida de um militar: Pátria, Honra e Lealdade. Uma ideologia que se cristaliza em tradição, disciplina, hierarquia e coragem. Agem, como outros grupamentos humanos que possuem suas ideologias próprias – partidos políticos, sindicatos, organizações várias que compõe uma sociedade.
O mesmo povo que hoje cospe no rosto dos militares, a mesma juventude que debocha do estilo de vida que os militares cultivam e dos valores pelos quais estão dispostos a dar a vida, é o que nos momentos de perigo vai exigir, clamar por forças armadas capazes de defendê-lo exigindo, neste momento, que as mesmas estejam prontas, bem equipadas e treinadas. Isto aconteceu em 2010 no Brasil e tende a se repetir outras vezes, com percepção clara dos inimigos internos e externos a serem neutralizados.
Frente a tal situação os militares ficam estupefatos, desorientados e tristes. Desolados com o abandono dos políticos, historiadores, filósofos, Igrejas, professores, que gozam a liberdade, a paz e o progresso que foram erguidas, em passado não muito distante, também com lutas, com guerras, com a perda de inúmeras vidas, geralmente de jovens, que acreditavam que lutavam e morriam por uma causa justa, cumprindo ordens dos legítimos dirigentes de sua nação, esperando, no desespero trágico dos combates, apenas cumprir a missão que lhes fora confiada e o reconhecimento do seu povo para com os sacrifícios que se dispuseram a fazer. Esta disposição continua a mesma.
Acredito que todos os cidadãos e cidadãs esperam pelo dia em que não mais existirão conflitos. Que as naturais divergências de opinião e conflitos de interesse possam ser resolvidos nos parlamentos nacionais e internacionais. São inúmeras as vozes de mulheres e de homens ilustres que, no decorrer da história da humanidade, propugnaram pelo aperfeiçoamento da democracia, da liberdade, da justiça e da paz. Muito já foi feito e consolidado na organização da vida das nações e da nascente ordem internacional. Muito resta a ser feito. Vale recordar as palavras do profeta Isaias:
“Com efeito, de Sião sairá a Lei, e de Jerusalém, a palavra de Iahweh. Ele julgará as nações, Ele corrigirá a muitos povos. Estes quebrarão as suas espadas, transformando-as em relhas, e as suas lanças, a fim de fazerem podadeiras. Uma nação não levantará a espada contra a outra, e nem se aprenderá mais a fazer guerra”, (Is 2, 1-4).
Os militares, disciplinadamente atentos, certamente saberão dizer, como uma oração, na trilha das tradições que cultivam, como ultimo alento de certeza na missão que lhes foi confiada pela sociedade, como tão singelamente cantou Castro Alves, (in Dous de Julho), com sua poesia vibrante de emoção e pertinência:
“Heróis! Como o cedro augusto
Campeia rijo e vetusto
Dos séculos ao perpassar,
Vós sois os cedros da História,
A cuja sombra de glória
Vai-se o Brasil abrigar.”
Publicado na Revista do Clube Naval, 1º trimestre de 2011, nº357, ano 119
Eurico de Andrade Neves Borba, 70, 2º tem RNR da Marinha; ex professor, Diretor do Depto. de Economia e Vice Reitor da PUC RIO; ex Presidente do IBGE; ex Diretor Geral da Escola de Administração Fazendária; escritor, reside em Ana Rech – RS; (janeiro de 2011).