JOSÉ SARAMAGO, TESE E ANTÍTESE
Só comecei a gostar de José Saramago depois que comecei a trabalhar com Programação Neurolingüìstica. Até então tinha lido o Ensaio Sobre a Cegueira e o Evangelho Segundo Jesus Cristo sem entender muito do que lia. Depois que aprendi a forma pela qual a mente constrói os pensamentos, é que passei a entender o que rolava na cabeça dele.
Num mundo onde todos são cegos, a luz não desapareceu. Ela só não tem canais para se manifestar. A luz é um plano de existência negativa. Para que ela se manifeste positivamente é preciso que existam canais próprios para isso. No plano da existência humana, tudo concorre para a obstrução da luz. Necessidades, desejos, vaidades, vontade de poder e a busca do prazer interditam a passagem da luz. Não somos cegos de nascença, mas de repente ficamos. E há épocas em que a cegueira se torna verdadeira epidemia.
Passamos a maior parte das nossas vidas mergulhados em nossas visões interiores. A verdade de cada um é construída em cima dessas visões particulares e não sobre o que o mundo realmente é. Vivemos cegos a maior parte do tempo. Toda a miséria humana é conseqüência da nossa incapacidade de ver, ao mesmo tempo, as mesmas coisas. Por isso o mundo é um manicômio onde cada um vive de acordo com o que ele consegue ver. Ou não ver.
Quando li pela primeira vez o Evangelho Segundo Jesus Cristo, pensei: “Ousado, mas pouco original.” Kazantzàkis já havia humanizado Jesus o suficiente para que precisássemos de outro ser tão fragilizado pelas paixões humanas como aquele que Saramago estava nos apresentando.Depois vi que não era nada disso. O Jesus de Saramago era a antítese da tese que a mídia religiosa tem nos imposto esses séculos todos.
O Jesus de Saramago não é um ser sobrenatural que Deus manda á terra para se sacrificar pelos erros da humanidade. Aliás, para Saramago,a humanidade não tem pecado algum. Ela é o que é. Um processo em evolução, onde tudo é resultado, bom ou ruim, segundo a ótica de quem analisa. Nem Deus é uma Entidade para além do bem e do mal. Deus é uma consciência em construção. Ele também não sabe o que é bem e mal. Ele também está à procura de um conceito segundo o qual Ele próprio possa construir a sua própria sabedoria.
O Cristo de Saramago não se sacrifica pela humanidade, mas sim pela culpa de seu pai José. José poderia ter poupado os inocentes de serem sacrificados por Herodes, mas preferiu fugir para salvar a vida do seu filho e assim deixou que os recém nascidos de Belém fossem mortos. Muito humano. Jesus carregou essa culpa pela vida inteira. Sua decisão de tornar-se instrumento de Deus foi motivada por essa culpa.
O Deus de Saramago não é uma entidade benevolente que manda o próprio filho para o sacrifício para salvar a humanidade perdida e infeliz. Ele,na verdade, é como um sujeito oportunista e espertalhão, que usa as pessoas para realizar os seus projetos pessoais. É um deus tribal, que só tem poder sobre um povo primitivo e ignorante, que toda a vida foi escravo dos outros. Primeiro ele usa o desejo sexual de José para gerá-lo. Depois usa o Diabo para criá-lo. Jesus foi criado pelo Diabo travestido de Pastor. Nesse sentido, Saramago pensa como os gnósticos. O Diabo é o inverso de Deus. É a dialética dos opostos agindo para dar sentido a uma história que não teria nenhuma consistência se Jesus fosse um ser celestial que desce á terra e suporta humanos sofrimentos, como ensina a doutrina cristã oficial, para salvar uma humanidade que nem sabe que está perdida.
Jesus aprende com o Diabo a dar valor ao mundo dos sentidos e desenvolver uma consciência da realidade, muito diferente da cultura em que vivia, formatada na expiação e na culpa. Mas Deus o desvia desse caminho. Alicia-o como seu propagandista, porque precisa de um agente que o torne conhecido além das fronteiras de Israel. Ele quer se tornar Deus do mundo todo, para não continuar sendo somente uma divindade tribal, desconhecida e desprezada no mundo dito civilizado.
É o útil acaba se juntando com o necessário. Jeová precisa de um bom agente de propaganda, Jesus precisa aliviar sua consciência. Quem perde é o Diabo, que o educou para se tornar um ser humano..
Mas Saramago tinha outra idéia em mente quando escreveu o seu romance iconoclasta sobre Jesus Cristo. Comunista e ateu, dizem que ele era e ele mesmo se intitulava assim. Talvez fosse mesmo, pois o dialógo entre Deus e o Diabo pela posse de Jesus faria corar o próprio Marx.
Pessoalmente eu acho que essa rotulação que lhe deram, e que ele aceitava mais pelo incrível senso de humor que possuía do que por convicção, é pua bobagem. Comunista é um ser jurássico que tem muita massa e pouco cérebro. Não sabe que sua raça está extinta e continua tentando sobreviver fazendo barulho. O ateu é outra coisa. O verdadeiro ateu, se existisse algum, seria o único ser realmente religioso. Pois acreditar na existência de Deus é fácil. É cultura. Nascemos já inclinados pelo peso dessa massa e coisa mais fácil não existe do que nos curvarmos à pressão dela. Agora, para negar que Deus existe é preciso acreditar de verdade nisso. E isso não é facil. É preciso ter uma mente desvinculada da estrutura binária que a nossa cultura nos dá.
Saramago não era nem uma coisa nem outra. Ele era tão comunista quanto John Lennon e Mahatma Gandhi. Pois desejar que todas as pessoas tenham o suficiente para viver, e que os bens da terra sejam distribuídos com justiça e equidade não tem nada de comunismo. É Humanismo. Comunismo é política. Humanismo é filosofia.
Saramago não era ateu por que nunca negou a existência de Deus. Ele apenas o humanizou. Jesus é sua consciência e inconsciência ao mesmo tempo. É o seu reflexo no homem. É consciência quando vê o mundo como ação e resultado. Quando acha que não há coisas certas nem erradas, mas apenas resultados bons e ruins, decorrentes das escolhas que fazemos na vida. É inconsciência quando não sabemos disso e ficamos atribuindo a causas sobrenaturais o que é apenas resultado das nossas escolhas.
Por isso Saramago usa uma sintaxe tão diferente do usual em suas construções lingüísticas.Ele tenta fugir da linguagem organizada e dicotômica que a gramática comum, fundamentada na lógica, nos impõe como padrão para comunicarmos os nossos pensamentos. Então coloca ponto onde normalmente se espera encontrar uma vírgula e vírgula onde seria normal encontrar um ponto. Maiúsculas depois da vírgula e não depois do ponto. Escreve longos parágrafos sem pontuação. É o pensamento escorrendo livre, sem pausas nem interrupções. É como a vida sem intervalos, sem paradas para respirar, sem conformidades. A linguagem conforma o cérebro e a subversão das regras gramaticais é a desconstrução de “programas” instalados através da linguagem. Assim, ele trata as regras de linguagem da mesma forma com que faz com as convenções sociais e as crenças religiosas.
Aqui, o mundo formatado pela mídia religiosa oficial é uma tese imposta pelo poder que se apossou da religião e a utiliza como elemento de dominação. Trabalhos como o de José Saramago são a antítese dessa tese. O mundo de Saramago é visto como um tribunal, onde Deus e o Diabo debatem dentro de uma barca, no meio de um nevoeiro durante quarenta dias, como ele o descreve no seu Evangelho. O que resulta desse debate é um Jesus que se sacrifica sem saber exatamente por que o faz. Qualquer semelhança com o povo sofrido e alienado não terá sido mera coincidência.