Viagem a Terra do Nunca (Capítulo I - As montanhas gêmeas )
Viagem a Terra do Nunca
Capítulo I
As montanhas gêmeas
Janeiro de 1966
Após sacolejar durante três longas horas de viagem, vindo de Itabuna, em um ônibus que parecia querer despencar a qualquer momento nos vários precipícios daquela estrada poeirenta e esburacada, cheguei finalmente ao povoado da Coréia. O lugarejo, (um local tão turbulento que devia o seu nome à guerra travada na península asiática) perdido num ponto qualquer do mapa, não passava de um amontoado confuso de casas de madeira, incrustadas em colinas suaves que bordejavam um canyon produzido durante milhares de anos por um antigo rio que não mais existia.
À minha espera, avistei o meu primo Bubu, um caboclo de pele tornada pelo sol, uns dez anos mais velho do que eu, segurando pelas rédeas duas montarias: o burro Nego Rico, um castanho robusto e cheio de manha, daí a apropriada alcunha que lhe puseram, e a vistosa mula Beleza, de pelo liso, ruçado, a cara enfeitada por espertas orelhas curtas, parecendo estar sempre em estado de atenção - um belo exemplar de muar. Beleza era dona de um passo suave e constante, um animal de sela próprio para ginetes que, como eu, não eram muito afeitos a ásperas cavalgadas como a que iríamos encetar dentro em pouco. Tínhamos ainda uma longa jornada até a roça em que minha mãe morava juntamente com o meu padrasto.
Meu primo, assim que me preparei para montar, olhou com uma divertida expressão de desconfiança para mim, como se duvidando da minha capacidade em permanecer encarapitado na sela até o final da viagem. Mas, a despeito dos seus prognósticos nada animadores, ocupei o meu posto, firmei os pés nos estribos, cutuquei com calma autoridade as ilhargas da mula e seguimos em frente, com meus olhos irrequietos procurando armazenar as várias impressões que me vinha daquele mundo novo, ornado de vegetação soberba e solo de uma fertilidade impressionante.
Em meio às plantações de cacau havia jacarandás em profusão, assim como ipês, curindibas, cedro, angelim, gameleiras e a frondosa árvore do cajá, espalhando o seu fuxicoso cheiro a toda área em derredor. Enchi, em longos haustos, os meus pulmões com todo aquele perfume, como se não mais quisesse perdê-lo, enquanto penetrávamos na abóbada formada pelas copas dos cacaueiros. Já havia percorrido anteriormente outras grandes plantações de cacau, conhecendo a maciez de seu tapete de folhas, mas ainda não havia sentido o que é cavalgar sob sua proteção, pois a sensação que me vinha, ao andar naquele túnel verde, era como estar a viver um conto de fadas, em que ficamos esperando o surgimento de gigantes terríveis a qualquer momento do trajeto, mantendo-nos o tempo todo em atento e respeitoso temor.
Quase não troquei palavras com o meu primo Bubu durante o nosso trajeto. Ele seguia concentrado à minha frente, num trote firme e constante. Depois de aproximadamente uma hora de cavalgada tomamos a direção da esquerda, deixando a estrada principal e rumando para o Oeste, ainda debaixo da protetora cobertura dos cacaueiros, porém já entrando na propriedade que pertencia a minha mãe, segundo me informou o meu taciturno guia. Uns dez minutos mais de cavalgada e descortinava-se para mim o mais belo aclive que meus olhos já viram; e, no alto dele, em um terreno todo coberto por musgo e pontilhado por vastas porções de capim braquiária, no interior das quais podia se esconder um homem em pé, ficava a sede da fazenda em que minha mãe morava. Lá no alto, como a vigiar quem se dela se aproximasse, a casa principal, também feita de madeira, cujo alpendre foi a primeira coisa em que meu curioso olhar pousou. Entre o início do belo morro, quase uma montanha e a casa grande, vi uma outra casinha, construída de maneira rústica, feita de pau-a-pique que, deduzi, seria do agregado que meu padrasto mantinha na propriedade, informação já passada, à fórceps, pelo meu primo Badu. Prestei mais atenção ainda na goiabeira ao lado da casinha, carregada de frutos maduros, à qual certamente logo faria uma visita para degustar de seus frutos. Com o suor pingando, as nossas montarias empreenderam um trote rápido, sabedoras da proximidade do lar.
Apeamos. Vi um menino de uns três anos me abrindo um sorriso largo e correndo para o meu colo. Era o meu irmão Paulinho, que eu ainda não conhecia.
Fiquei acariciando seus cabelos louros enquanto a minha mãe chegava e abraçava demoradamente a nós dois, conduzindo-nos prá dentro de casa. Cansados, eu e meu primo Bubu fomos brindados com grandes canecas de porcelana contendo água fresca, colhida de um pote de barro colocado dentro de casa. Depois da água minha mãe nos serviu coalhada, feita por ela mesma, seguindo velha receita familiar, acompanhada por grandes porções de doce de banana em calda, as quais foram devidamente devoradas. Zé, o agregado, exímio caçador, havia abatido um tatu, iguaria que a minha mãe preparou para nossa refeição. Após comer, fui ao alpendre, aonde uma convidativa rede já me esperava, pronta prá embalar os meus belos sonhos de menino de quinze anos.
No final da tarde, logo depois de acordar de um rápido cochilo, deparo-me com um espetáculo difícil de descrever em palavras, tarefa quase impossível, devido à magnitude do mesmo: a queda do disco solar, qual uma bola de ouro e sangue, despencando lentamente por trás das montanhas cobertas de verde. Seguindo o rastro dourado daquela esfera rubra, uma imensa nuvem de pássaros numa algaravia ensurdecedora em que se misturavam harmonicamente papagaios, periquitos, curiós, coleirinhas, rolinhas, azulões e as indefectíveis andorinhas, as mais barulhentas daquela multicolorida turma. No meio daquela nuvem alada, destoava o grito do carcará, em vôo rasante, certeiro e letal, buscando alimento entre os mais fracos e desgarrados do bando para garantir a própria sobrevivência.
Escorei-me na balaustrada do alpendre a apreciar tudo o que se desenrolava à minha volta: debaixo do alpendre escuto um barulho estranho: desço para observar e encontro uma vaca dando de mamar ao seu filhote, um belo bezerro que puxa com força as tetas em busca do leite materno, também surrupiado ao amanhecer para garantir alimentação aos habitantes da moradia.
Fico sentado num pilão, a lembrar-me dos tempos na Fazenda de tio Joãozinho, em que via cena idêntica. Outros tempos, outro lugar. Aqui, na casa de minha mãe, Mimosa, a mãe vaca, me aceita com certa reserva, mas se tranqüiliza ao perceber que Coronel, o seu bezerro, logo faz amizade comigo. A vira-lata Bolinha, esparramada preguiçosamente num toco de pau, a tudo aprecia em um semi-dormitar enganador, como uma macia bola de pelos malhada, na qual, só o rabo a balançar de tempos em tempos, denunciava alguma atividade vital, numa pachorra própria de caninos bem alimentados. A cachorrinha postava-se como a estrela daquele reino, mimada por todos, pagando o carinho que recebia latindo vigorosamente ao menor ruído que denotasse a aproximação de estranhos. Acariciei a sua cabeça, deslizando as mãos por seu dorso e recebi, em troca, rosnados aprovadores e uma generosa lambida no rosto, à qual enxugo rápido, mas sem nojo, com as costas da minha mão. Aparentemente passei no teste e já somos grandes amigos; amizade que mantive a custa da partilha de partes das refeições que faço, colocando pedaços de carne e pão debaixo da mesa, aonde estrategicamente ela sempre se colocava.
Paulinho continuava dormindo, refazendo-se das peraltices do dia, enquanto minha mãe prepara a casa para receber Vardu, meu padrasto, de nome Valdomiro, nome que faz questão de me dizer por inteiro, pomposamente, ao me cumprimentar: “-Valdomiro Francisco Barreto, um seu criado” apertando vigorosamente a minha mão. Observo com estranheza aquele homem que hoje é o marido de minha mãe, notando os seus cabelos castanhos, os olhos sorridentes, de uma cor castanho apagado, quase verde, e uma postura que o faz aumentar em muito a sua pequena estatura. Vardu traja calças de mescla surradas, uma camisa quadriculada e usa botas sete-léguas para se proteger da umidade e das cobras, comuns na mata. Junto dele veio Zé, o agregado, personagem a quem logo me afeiçoei. Zé de Maroca era pouco mais alto que Vardu. Caboclo de pele crestada pelas lidas constantes ao sol, e só enxergava por um olho, enquanto o outro girava sem rumo, como a se rebelar pela inutilidade forçada. Nossa empatia foi instantânea, turbinada pela mutua curiosidade.
Depois do jantar na grande mesa de madeira, do qual Zé também participou como convidado, provavelmente devido ao fornecimento da carne do tatu que ele havia caçado, e também ao fato de minha presença, fomos todos – só os homens - sentar em volta de uma fogueira, confeccionada para nos dar iluminação e cumprir o papel de afastar os bichos noctívagos. Eles querendo saber das novidades que eu trazia de fora, e eu muito mais interessado em ouvir o que me falariam de suas vivências ali, naquele fim de mundo. Zé me deixou encantado com a narrativa de muitas de suas caçadas, prometendo-me que me levaria na manhã seguinte numa expedição, convite que foi feito e aceito de pronto. Vardu contou-me de um encontro com uma mãe tamanduá-bandeira, em que ela, ao ver a arma apontada em sua direção, pega do filhote, grudado em suas costas, e o coloca na frente do caçador, como se lhe dizendo:
” Preciso cuidar de meu filho! Você não está vendo?”
Uma noite sem lua, compensada por um céu coalhado de estrelas, fazia pano de fundo para aquela conversa que avançava sem querer terminar, só encerrada pela forte intervenção de minha mãe cobrando os homens da necessidade de se recolherem, dado o avançado da hora. Resmungando a contragosto fomos todos para um merecido sono, sendo que o meu foi permeado de sonhos tão ricos como nunca antes os havia sonhado.
O canto insistente dos pássaros e o cheiro penetrante de banana da terra cozida funcionaram como toque de despertador para mim, que levantei ainda esfregando os olhos e dando com a minha mãe com uma bacia com água e uma toalha para a higiene matinal. O costume na roça é de que a primeira refeição seja a mais substancial do dia, devido ao grande gasto de energia durante a labuta diária de quem nela mora e trabalha. Na grande mesa de madeira enegrecida pela fumaça do fogão de lenha havia batata-doce, inhame cozido, queijo coalho, também produzido em casa, leite quente e cuscuz, feito à maneira sergipana, cozido no vapor, sendo o ato de cozimento do cuscuz, por si só, uma obra de arte. Aquela enorme bola de massa de milho, regada em leite de coco, envolta em pano e colocada para cozer no alto de uma panela de barro. Os homens, Vardu, Zé de Maroca e mais um trabalhador avulso, usado esporadicamente para auxiliar na poda do cacau, já haviam comido sua refeição que era muito mais que um almoço, composta de feijão com carne-seca, couve, toucinho defumado e mais o café da manhã propriamente dito. Nem tentei acompanhá-los. Limitei-me a olhar espantado enquanto via aquela montanha de alimento desaparecer rapidamente dos pratos. Terminada aquela batalha gastronômica, os homens pegaram as suas ferramentas e foram cuidar de seus afazeres, jornada que iria, aproximadamente, até as quatro horas da tarde.
Aproveitando que estava sozinho, já que Paulinho ainda dormia e minha mãe tratava de por em ordem o palco de guerra em que se tornara a casa, iniciei um reconhecimento das coisas da propriedade. Nos fundos, uma imensa goiabeira, lotada de frutos, para os quais olhei com certo desdém, tão locupletado estava. Aqueles frutos não me tentavam ainda, ao contrário da vontade de empreender uma escalada nos galhos em que se encontravam. De onde estava escuto um chamado apavorado, já no mais alto ponto da árvore, testando sua resistência: “Menino danado! Desce já daí. Tome cuidado, pois você acabou de comer. Você pode cair daí e se machucar.” Vi o rosto de minha mãe na janela da cozinha, e lhe devolvi um sorriso tranqüilizador de quem sabia o que estava fazendo.
Depois de algum tempo piruetando na goiabeira e a minha mãe já tendo se livrado das tarefas domésticas, lá fomos nós dois conhecer o pomar criado por ela; pés de banana da terra com cachos enormes, escorados por estacas para não virem ao chão com o peso, bananas nanicas roxas como nunca havia visto antes, fruta-pão e muita verdura entremeando as árvores frutíferas. Vi umas folhas enormes, felpudas que, depois seria informado, eram folhas de tabaco, do qual Vardu preparava seus cheirosos cigarros de palha, pitados durante a noite, depois de um paciente ritual de corte do fumo a canivete e o enrolar na palha de milho laboriosamente cortada em pedacinhos. Em seguida, pegamos as vasilhas para buscar água na mina que abastecia a residência. A mina ficava localizada no fundo do canyon. Chegando lá minha mãe aproveitou para tomar banho, o que também fiz, procurando olhar mais detidamente para aquela mulher que não tinha ainda trinta anos e já havia dado à luz sete filhos, dos quais cinco, entre eles eu, sobreviveram. Olhei suas grossas sobrancelhas, um buço incipiente, boca bem feita e olhar firme, quase endurecido de quem já muita coisa havia visto e vencido. Minha mãe usava anéis em quase todos os dedos e, na fonte, enquanto tomávamos banho, ela pegou da minha mão, experimentou um de seus anéis, que encaixou em meu anular, dando-me como presente.
Guardei-o por muitos anos, e ainda trago na memória os raios emanados pela sua pedra de rubi, de um intenso fulgor avermelhado. Percebia claramente o imenso e desajeitado esforço que aquela mulher fazia, na tentativa de sanar o hiato havido entre ela e eu, desde a sua partida anos antes, sem que ninguém soubesse de seu paradeiro. De minha parte, com a leveza própria de um garoto recém entrado na adolescência, buscava mais usufruir daquela convivência do que propriamente questionar o porquê de seu afastamento, abrindo-me para conhecê-la um pouco mais.
Terminado o banho, vestimos nossas roupas e pegamos as nossas vasilhas de água, Paulinho com uma bem pequenininha, equivalente ao seu tamanho, e iniciamos a subida do morro de volta para o aconchego de casa.
(Vai continuar...)