UMA ÓPERA COMPOSTA DE MORTOS
UMA ÓPERA COMPOSTA DE MORTOS
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Escrito em 1967, Ópera dos Mortos, de Autran Dourado, vem firmar-se na literatura brasileira, por ser em sua particularidade e composição, uma obra que traduz e preenche na contemporaneidade, a escassez da produção literária caracterizada no final do século XX. Assim é a Ópera dos Mortos. Dividida em nove capítulos, os quais dão ênfase a narrativa como diferentes vozes que precisam ser ouvidas.
Os narradores se intercalam numa mesma sintonia com o autor, de forma simples e sensível, para compor um enredo atribulado em que é marcado pelo psicológico de cada personagem. Não existe uma ordem cronológica para cada narrativa. Presente e passado fundem-se todo momento como necessidade de informar ao leitor detalhes pertencentes a cada um deles. O foco narrativo é, portanto, em primeira e terceira pessoa logo perceptíveis no capítulo introdutório, intitulado O Sobrado. Há presença de um narrador que conta, em forma de causo, a um ouvinte que é o próprio leitor. Recurso este já utilizado por Riobaldo em Grande Sertão: Veredas. Os três personagens estão ligados direta e indiretamente e são eles, cada um a sua maneira, que compõem a narrativa, transformando-a num emaranhado de sentimentos repletos de amor, ódio, desilusão e solidão.
José Feliciano é um andarilho, livre e solto como um passarinho. Traz em sua bagagem pelo mundo afora apenas seu repertório de causos, que vai distribuindo pelo sertão para cada ouvinte disposto que encontra pelo caminho. Sua liberdade, o desapego ao trabalho ou a qualquer vínculo empregatício que envolva esforço físico, está descartado para ele. Como um dandi do sertão, José Feliciano é a caracterização máxima do homem que anseia por liberdade plena. E essa liberdade é interrompida quando chega em frente ao sobrado. O mundo que o espera depois de adentrá-lo é o desconhecido, transformando-o num ser avesso ao que era, modificado agora pelo meio que o cerca. Apesar da rudeza, descobriu-se possuidor de sentimentos nunca imaginados por ele. Cabe somente a ele relatar como se sente inserido neste novo mundo, que o inibe, lhe dá revolta e o despreza.
Rosalina é a personagem central do romance. Todos os outros dois personagens vivem em função dela. Depois de herdar o casarão da família, isola-se da sociedade, assim como fizera o seu pai. O destino que a persegue como uma ferida profunda que jamais será cicatrizada, transforma esta mulher, ainda jovem e bela, em um ser triste e rancoroso ao ponto de omiti-la do mundo exterior que a cerca. Seu convívio social se dá apenas com duas pessoas: Quiquina e Emanuel. A primeira está com ela desde o seu nascimento. A segunda, por questões de obrigação familiar. Rosalina e o seu desapego a coisas materiais referentes ao mundo, a transforma em um enigma para toda cidade. O silêncio da personagem é propício ao meio em que criou para viver. O diálogo com Quiquina é travado apenas por gestos e olhares sem carecer de palavras. O entendimento entre as duas faz com que ambas necessitem uma da outra. Essa rotina só é quebrada com a chegada de José Feliciano ao sobrado, que ao contrário das duas, é um falador nato que não consegue ficar calado. A presença deste homem em sua casa, faz com que Rosalina desperte para um mundo que há tempos foi esquecido. Sua fala, seu cheiro, sua posição de macho inserido num mundo totalmente feminino, fazem com que desperte nela o desejo adormecido de ser mulher. O envolvimento entre eles não é, no entanto, amoroso. É antes de tudo uma carência provocada pela solidão. O corpo do homem é apenas o veículo para esta fuga e quebra de seu cotidiano entediante. Sua personalidade varia com o período do dia. De manhã é a que coordena a casa, a que condena o mundo, sem sentimento algum, a que é estranha, onipotente em sua postura. A noite é a que cala, fala e consente. É a que se embriaga de vinho e mergulha num devaneio repleto de desejo carnal e insensibilidade. O resultado final deste desprendimento é a gravidez que não é evitada por nunca ter sido desejada.
Quiquina é o silêncio. Muda, vê o mundo que a cerca através dos olhos, que é ao mesmo tempo, a boca que transmite o inaudito. Sua presença na obra é de fundamental importância. É ela o empecilho na vida das outras duas personagens. Para Rosalina foi a mãe, amiga e companheira. Para José Feliciano, a pedra que estava em seu caminho. Entre os dois, o embate foi preciso desde o primeiro encontro. Sua influência sobre Rosalina é inquestionável. A dependência de Rosalina por ela faz com que sua presença seja autoritária e maternal, criando um paradoxo na posição hierárquica social: patroa / empregada, branca / negra. Cabe a Quiquina o desfecho inesperado da obra. É ela quem relata o final da inconseqüência de Rosalina, cujo saldo foi um filho. Detentora e manipuladora da situação, Quiquina é quem decide o destino dos dois, mãe e filho: a loucura da mãe e a morte do filho.
A temporariedade do romance se dá de duas formas. O tempo real, fora do casarão e o tempo no interior dele, marcado por velhos relógios pendurados na parede sem funcionar. Todos os três representam exatamente a hora em que seu avô, seu pai e sua mãe morreram. Essa rejeição ao tempo é a maneira pela qual a personagem Rosalina cultua seus mortos, compondo assim uma sinfonia muda, de silêncio total, que a envolve e a martiriza através da memória, como uma regente solitária que rege uma ópera para mortos.