EU SOU A OUTRA

Eu sou a outra.

Eu sou a doença. Sou o id, sou a voz rouca insinuante do instinto dentro da sua cabeça, sou seus sonhos mais selvagens personificados em uma boneca que repete frases de efeito quando se puxa uma corda. Eu sou Coney Island. O amor de verão que não sobe a serra e para sempre deixa um gosto de um filme que você pausou pra ir ao banheiro e nunca mais terminou. Eu sou o seu exagero, seu colapso, seus prazeres culpados, a poesia que morre em você a cada dia de trabalho. Sou o fogo de palha, o fogo-fátuo, o incêndio consumindo em segundos tudo em que você acreditava, tudo o que amava, tudo em que se confortava às cinzas; eu sou o ácido que age onde há felicidade e languidez, seu sonho romântico perfumado de uma noite, a revolução popular aos brados de promessas de liberdade e glória a torto e a direito, a última bala do pacote que você guarda para mais tarde e dias depois percebe que derreteu no fundo da bolsa, sou a ilusão, a catarse, o anticlímax, garota-problema, menina-veneno, no domingo de manhã é ele quem contempla seus olhos verdes embaçados de um sono pálido enquanto eu reviro meus pulsos mutilados deitada sobre manchas de delineador e seios cujo rosto não conheço, sou a casa de praia vazia mofada, o brinquedo largado, o livro terminado, a fissura saciada, a revolta calada, a bruxa torturada, M. Madalena desonrada, o fim da madrugada, a moda ultrapassada, eu sou seus restos, eu-sou-a-outra, e a Outra, querida, por dentro tem nada.

Valentina Caligari
Enviado por Valentina Caligari em 30/08/2015
Reeditado em 02/09/2015
Código do texto: T5364451
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