"O Sagrado e o Alcançável" - Clarice Lispector

O Sagrado e o Alcançável

Sem uma palavra a escrever, Martim no entanto não resistiu à tentação de imaginar o que lhe aconteceria se o seu poder fosse mais forte que a prudência. «E se de repente eu pudesse?», indagou-se ele. E então não conseguiu se enganar: o que quer que conseguisse escrever seria apenas por não conseguir escrever «a outra coisa». Mesmo dentro do poder, o que dissesse seria apenas por impossibilidade de transmitir uma outra coisa. A Proibição era muito mais funda..., surpreendeu-se Martim.

Como se vê, aquele homem terminara por cair na profundeza que ele sempre sensatamente evitara.

E a escolha tornou-se ainda mais funda: ou ficar com a zona sagrada intacta e viver dela - ou traí-la pelo que ele certamente terminaria conseguindo e que seria apenas isso: o alcançável.

Como quem não conseguisse beber a água do rio senão enchendo o côncavo das próprias mãos - mas já não seria a silenciosa água do rio, não seria o seu movimento frígido, nem a delicada avidez com que a água tortura pedras, não seria aquilo que é um homem de tarde junto do rio depois de ter tido uma mulher. Seria o côncavo das próprias mãos. Preferia então o silêncio intacto. Pois o que se bebe é pouco; e do que se desiste, se vive.

*Clarice Lispector, in "A Maçã no Escuro"

Isabel Fontes
Enviado por Isabel Fontes em 23/05/2007
Código do texto: T498396
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