Viver bem: a ética de Aristóteles Christopher Shields Universidade de Oxford Tradução de Desidério Murcho

1. O bem final para seres humanos

Os seres humanos entregam-se a comportamentos com propósitos. Fazemos coisas com razões e agimos tendo fins em vista. Assim, caminhamos para a loja com a intenção de comprar leite. Se um amigo que encontramos na rua nos perguntar no caminho por que estamos a caminhar na direcção da loja, a resposta sensata e correcta é a verdadeira: “Para comprar leite.” Se o nosso amigo for divertido e começar a regalar-nos com piadas e histórias de modo tão entusiasmante que nos esquecemos de para onde íamos e porquê, podemos ficar confundidos, esquecendo temporariamente o que estávamos a fazer e tentando recordar com que propósito estávamos na rua. Se não nos conseguirmos recordar, deixaremos de caminhar para a loja, pois não teremos qualquer propósito que nos motive a isso. Quando nos recordarmos do nosso propósito, retomamos então a nossa actividade com um sorriso nos lábios.

Suponha-se, em contraste, que o nosso amigo não é divertido, mas antes um filósofo de intenções sérias que quer saber por que queremos comprar leite. Se respondermos séria e honestamente que queremos comprar leite para comer os nossos flocos de aveia matinais, e ele insistir, querendo saber por que temos a intenção de comer flocos de aveia de manhã, podemos então muito bem responder que consideramos os flocos de aveia saudáveis e deliciosos, especialmente com leite, que nos damos então a liberdade de comprar. Sem dar atenção à nossa falta de interesse, o filósofo pode insistir, querendo saber por que desejamos comer comida deliciosa e saudável. Uma vez mais, podemos responder que isso é porque gostamos de comida deliciosa, comê-la dá-nos prazer, e que desejamos a saúde pela razão óbvia de que a saúde é boa — e, para que não nos faça essa pergunta, todos desejamos coisas boas para nós. Se até este momento não nos tivermos escapado, podemos ouvir o filósofo a fazer a mesma pergunta, seriamente, suponhamos, ad nauseam, ou pelo menos até dizermos, exasperados, que fazemos todas essas coisas que fazemos em nome da felicidade. Se nos perguntar agora por que desejamos a felicidade, talvez a má-educação seja apropriada. Podemos limitar-nos a voltar as costas, encolhendo os ombros e dizendo que temos mesmo de ir comprar leite.

Apesar de o nosso comportamento ser dotado de propósito, parece que estas perguntas têm de parar algures. Aristóteles considera haver algo de relevante nestas facetas relacionadas do nosso comportamento, que fazemos coisas por razões e que as nossas razões podem subordinar-se a razões de ordem superior até chegarmos a uma razão final e última subjacente a todas as nossas acções intencionais. Aristóteles abre a sua Ética a Nicómaco precisamente com este compromisso, apesar de usar o que parece um argumento desastroso a seu favor:

Toda a arte e toda a investigação, e similarmente toda a acção e escolha, parecem visar um qualquer bem; de acordo com isto, declarou-se correctamente que o bem é aquilo que todas as coisas visam. (Ética a Nicómaco 1094a 1-3)

Mesmo que seja verdade que há um qualquer bem último para toda a acção humana, este argumento, à primeira vista, não permite concluir tal coisa. Pois pode ser verdade que toda a acção visa um fim, apesar de não haver qualquer fim único que seja visado por todas as acções. Afinal, todo o arqueiro visa um alvo, apesar de não haver um alvo único que todos os arqueiros visem. Se Aristóteles está a argumentar assim, então cometeu uma falácia simples ao fazer notar que tudo tem uma característica e inferindo nessa base que há apenas uma característica que tudo tem.1

Dito isto, talvez seja possível compreender estas linhas de um modo mais favorável a Aristóteles, numa de duas maneiras. Primeiro, talvez ele esteja já a pressupor na primeira linha que toda a acção intencional visa em última análise a um dado fim, o bem, comentando depois que é então apropriado que se tenha caracterizado o bem como aquilo que todas as coisas visam.2 Neste modo de compreender estas linhas, Aristóteles não argumenta falaciosamente, porque nem sequer argumenta.3 Alternativamente, podemos considerar que Aristóteles está a apresentar um argumento que não fica imediatamente sujeito à objecção dada. Talvez queira afirmar que porque toda a acção visa um ou outro género de fim, cada um dos quais é um género qualquer de bem, o que estes fins têm em comum é o serem bens. Capitalistas diferentes comercializam carros, cabides e grãos de café, cada um deles visando o lucro no seu sector; assim, chama-se correctamente ao lucro o fim de todos os capitalistas. Similarmente, o exercício visa a saúde porque a saúde é um bem, o estudo vida o conhecimento porque o conhecimento é um bem, e a recreação visa a descontracção porque a descontracção é um bem. O que estes diferentes géneros de bens têm em comum é precisamente o serem bens. Tal inferência exige trabalho adicional, e pode não combinar muito bem com os escrúpulos de Aristóteles com respeito à univocidade do bem.4 Mesmo assim, não compromete Aristóteles com a falácia formal que tantas vezes se pensa que estas linhas cometem.

Em qualquer caso, se concordarmos que as acções dotadas de propósito visam fins bons, ou pelo menos aparentemente bons, e se além disso concordarmos que estes fins podem estar subordinados entre si de modo a haver um bem final que todos os seres humanos procuram, é uma boa ideia reflectir sobre as características que é de esperar que este bem final tenha.

Para começar, quando se pergunta qual é o seu bem final, é provável que as pessoas discordem. Algumas, os hedonistas, dirão honestamente que procuram o prazer acima de qualquer outra coisa. Outras, com prioridades diferentes, podem dizer que desejam acima de tudo ser amadas, ou que se esforçam por conduzir as suas vidas com honradez, ou que as riquezas ou o poder são o que mais lhes importa, e assim por diante. É importante ver que quando discordam deste modo, as pessoas podem estar a discordar quanto a qualquer um de dois níveis diferentes, ou quanto a ambos. Primeiro, as pessoas podem concordar quanto às características do bem último, mas discordar quanto aos estados ou actividades que exibem essas características. Ou a sua discordância pode ser de ordem superior: talvez estas respostas diferentes resultem de pressupostos não equivalentes sobre o que seria necessário para que um estado ou actividade fosse considerado um bem final. Assim, por exemplo, duas pessoas podem discordar quanto ao que é relaxante, sugerindo uma que ler sossegadamente na biblioteca é relaxante, ao passo que a outra recomenda o esqui aquático com um barco a motor como a maneira mais relaxante de passar uma tarde. Ambas podem concordar quanto ao que consiste o relaxamento, mas discordar quanto à melhor maneira de o alcançar; ou podem discordar quanto à natureza do relaxamento, supondo uma que qualquer actividade que não se relacione com o trabalho é relaxante, por mais vigorosa e cansativa que seja, ao passo que a outra entende que o relaxamento se restringe a pedaços de tranquila inactividade sossegada e sem tensão. Para resolver a discordância, precisariam, no segundo caso, de chegar primeiro a um acordo quanto às características gerais do relaxamento. Similarmente, quem discorda quanto ao bem final para os seres humanos, precisará em alguns casos de reflectir primeiro sobre os critérios abstractos para que se considere antes de mais que algo é um bem final.

Aristóteles começa neste nível mais abstracto. O seu método recomenda que para determinar o bem final, devemos primeiro concordar quanto aos critérios que terá de satisfazer (Ética a Nicómaco, 1094a 22-27). Só deste modo, supõe, será possível que uma concordância substancial prepare o caminho para um verdadeiro progresso. Aristóteles estabelece como condições para o bem final que:

Seja procurado por si mesmo (Ética a Nicómaco 1094a 1);

Desejemos outras coisas por causa de si (Ética a Nicómaco 1094a 19);

Não o desejemos em função de outras coisas (Ética a Nicómaco 1094a 21);

Seja completo (teleion), no sentido de ser sempre digno de escolha e de ser sempre escolhido por si mesmo (Ética a Nicómaco 1097a 26-33); e

Seja auto-suficiente (autarkês), no sentido de a sua presença ser suficiente para que nada falte na vida (Ética a Nicómaco 1097b 6-16).

As primeiras três destas condições são razoavelmente óbvias, apesar de ser necessário notar que 1 e 3 são distintas, dado que 1 sustenta que o bem seja procurado por si mesmo, ao passo que 3 exige que o bem não seja feito por coisa alguma além de si mesmo. Uma pessoa pode, por exemplo, procurar a saúde por si mesma, por ser um bem intrínseco, mas também em função de algo mais final do que a saúde, por ser considerada uma componente necessária de uma vida feliz, resultando então daqui que se quer a saúde tanto por si mesma como em função da felicidade. A saúde satisfaria assim 1, mas não 3, e por isso não poderia ser um fim último, segundo os critérios dados.

Os últimos dois critérios são um pouco mais difíceis, dado que Aristóteles os caracteriza muito brevemente. Para que um fim seja completo (teleion, também por vezes traduzido por “último” ou “perfeito”), não tem apenas de ser desejado por nada além de si, mas ser sempre tal que seja em si mesmo digno de escolha. Aristóteles sugere que algo poderá ser desejado por si e por nada além de si, e no entanto não ser completo porque as circunstâncias poderiam alterar o seu estatuto. Uma maneira de um fim último ser invulnerável a contingências seria sendo inteiramente abrangente. Assim, se a felicidade for o bem final, isto pode dever-se ao facto de abranger todos os bens humanos possíveis. Contraste-se isto com o prazer, que poderia normalmente ser bom, desejado por si e por nada mais senão por si mas, apesar disso, competir com outros bens, como a honra, talvez, e assim ser considerado menos digno de escolha nessa circunstância. Similarmente, um fim considerado auto-suficiente (autarkês) é um critério extremamente exigente. Algo é auto-suficiente se a sua presença sem mais é suficiente para que nada falte a uma vida. Uma vez mais, uma coisa poderia ser auto-suficiente por ser um bem especialmente abrangente, abarcando todas as formas do bem humano.

"Poderá parecer, dada a severidade destas exigências, que nada irá emergir que possa constituir o bem final para os seres humanos. Afinal, que coisa é sempre digna de escolha por si mesma, fazendo só por si que nada falte à vida? Vistos desta maneira, os critérios de Aristóteles podem parecer tão austeros que estarão condenados a não se aplicar a coisa alguma. Vistos de outra maneira, contudo, estas exigências parecem perfeitamente correctas. Pois nesta fase são apenas hipotéticas. Se há algum bem que seja final, o bem único e omniabrangente que procuramos em todas as nossas acções, então deve realmente obedecer aos elevados padrões que estes critérios impõem. Desta perspectiva, é fácil concordar com estes critérios do bem final, pois até agora não concordamos que algo os satisfaz realmente. Do mesmo modo, se surgir algum bem que os satisfaça a todos, teremos uma razão poderosa para concordar que este bem merece o seu elevado estatuto.

2. O carácter da felicidade humana: considerações preliminares

Por mais que os critérios de Aristóteles pareçam exigentes, talvez possamos todavia supor que há um candidato óbvio a bem último para os seres humanos. Esta razão final e última para toda a nossa acção é simplesmente a nossa felicidade: todos desejamos ser felizes. Desejamos a felicidade por si mesma, e não em função de qualquer outra coisa além dela; procuramos outros bens em função da felicidade; se tivermos atingido a felicidade, a felicidade genuína, então as nossas vidas estão completas e nada lhes falta; a felicidade, só por si, é suficiente para fazer das nossas vidas vidas boas (Ética a Nicómaco 1097a 30-b8). É por isso, na verdade, que desejamos a felicidade acima de tudo o mais. Além disso, é por isso que a pergunta “Sim, mas por que queres ser feliz?” é ociosa. No domínio do comportamento dotado de propósito, as perguntas “por que” chegam ao fim com a felicidade.

Tudo isto parece aceitável. Desejamos a felicidade. O que é, contudo, que desejamos? Compete ao filósofo que se entrega à filosofia prática responder a esta pergunta. Pois apesar de todos concordarmos que procuramos a felicidade, na verdade a nossa concordância obscurece formas importantes de discordância, porque discordamos afinal quanto à natureza da felicidade (Ética a Nicómaco 1095a 14-21). Postos perante a questão, alguns de nós dirão que a felicidade consiste numa auto-estima cálida e vaga; outros supõem que a felicidade é a fama; outros o poder; e muitos mais estão certos de que a felicidade é o prazer. Aristóteles argumenta que todas estas respostas estão erradas.

Para algumas sensibilidades modernas, a sugestão de que alguém possa estar enganado quanto à sua própria felicidade parece prepóstera à primeira vista. Afinal, eu decido o que me faz feliz; e eu sei quando estou feliz e quando não o estou. Só eu posso ajuizar se estou feliz, e sempre que esse é o meu juízo, então estou de facto feliz. Com certeza que não cabe ao filósofo, sentado no seu gabinete de trabalho da universidade, decidir essas questões por mim.

Pelo contrário, contesta Aristóteles, cabe ao filósofo determinar a natureza da felicidade, dado que esta, como outros conceitos éticos centrais, é susceptível de análise. Duas características desta abordagem ajudam a explicar por que razão Aristóteles dá continuidade ao seu trabalho partindo deste pressuposto.

Para ver correctamente a explicação de Aristóteles, é primeiro de tudo necessário compreender uma característica central da sua abordagem. Aristóteles está comprometido com uma concepção objectiva da felicidade. Podemos contrastar dois modos de pensar sobre a felicidade.5 Digamos que uma concepção de felicidade é subjectiva se pressupõe que a felicidade consiste na satisfação dos desejos do agente, sejam esses desejos o que forem. Tipicamente, suponhamos, a satisfação de desejos tem como resultado um sentimento de satisfação cálida ou mesmo ardente, e cálida auto-estima. Assim, numa concepção subjectiva de felicidade, é de esperar que um agente saiba quando é feliz e que tenha autoridade quanto à sua própria felicidade. Se ele se sente feliz, então é feliz, e não o é caso contrário. Numa concepção subjectiva da felicidade, dificilmente faz sentido imaginar alguém a dizer: “Pensava que era feliz, mas estava enganado.” Em contraste, uma concepção objectiva de felicidade sustenta que esta consiste em satisfazer alguns critérios que não são determinados pelos desejos do agente. Ser feliz, na concepção objectiva, exige que uma pessoa tenha uma vida bem-sucedida e de florescimento, na qual, uma vez mais, as condições de uma vida bem-sucedida ou de florescimento não competem ao agente. Com respeito a este aspecto, é proveitoso pensar sobre juízos de felicidade do ponto de vista da terceira pessoa. Podemos considerar que um vizinho ou familiar vive bem, e tem uma vida humana de florescimento, mesmo sem saber muitas coisas sobre a sua vida interior. Ademais, podemos ajuizar prontamente que um amigo ou pessoa próxima não está a viver a melhor vida ao seu alcance, podemos lamentar que estejam num caminho de autodestruição porque, digamos, abusam de drogas, ainda que, se lhes perguntarmos, respondam sinceramente que se sentem muitíssimo bem, que são felizes. Na concepção objectiva da felicidade, temos em princípio o direito, em alguns casos, de concluir que as pessoas estão enganadas quanto às suas próprias auto-atribuições de felicidade. Do mesmo modo, podemos olhar para um período anterior das nossas vidas e ajuizar correctamente que apesar de pensarmos que éramos felizes, estávamos enganados.

Ora bem, a este respeito faz-se muitas vezes notar que aquilo a que temos vindo a chamar “felicidade” é por estas razões uma tradução infeliz da palavra eudaimonia de Aristóteles, que seria mais adequadamente traduzida por “florescimento” ou “vida boa” ou “vida bem-sucedida.” Esta questão quanto à tradução pode contudo tornar-se facilmente um exagero: Aristóteles tem consciência de que as pessoas discordam quanto à natureza da eudemonia, que “a multidão não responde como os sábios” (Ética a Nicómaco 1095a 21-22), porque pensam que “é uma coisa óbvia e manifesta” (Ética a Nicómaco 1095a 22). Ora, isto é o mesmo que dizer que as pessoas discordam quanto ao que é a felicidade, e que algumas pessoas, irreflectidas, presumem pura e simplesmente, sem qualquer garantia, que a sua natureza é simples e visível para todos. Da perspectiva de Aristóteles, não se deve aceitar esta posição sem debate.

O que realmente conta nesta discussão não é se traduzimos eudaimonia por “felicidade” nem se não, mas se, concordando chamar “felicidade” a seja o que for que satisfaça os critérios do bem último, podemos evidenciar um estado ou actividade à altura desse papel. A primeira posição de Aristóteles com respeito a isto é que as concepções subjectivas de felicidade não cumprem este papel. Por vezes os nossos desejos são satisfeitos, mas em vez de sentirmos prazer ou satisfação, ficamos na verdade perplexos connosco mesmos, por vezes até ao ponto de nos alienarmos de nós mesmos. Um homem que deseja mais do que tudo um carro desportivo amarelo, tudo sacrificando para o obter, pode perguntar-se, depois de o ter, por que razão exactamente o queria com tanta intensidade. Além disso, mesmo quando nos sentimos realmente satisfeitos por satisfazer os nossos desejos, podemos na verdade ter desejos que não são dignos de nós. Este aspecto é menos óbvio, mas uma vez mais pode valer a pena adoptar a perspectiva da terceira pessoa para ver por que razão Aristóteles procede deste modo. Uma mulher pode estar preocupada com o seu filho querido, porque ele não está a viver de modo a fazer jus ao seu potencial. Ela sabe de modo imparcial que o seu filho é muito inteligente, excepcionalmente talentoso, e superior nas suas capacidades atléticas naturais. Contudo, também vê que o seu filho está tão ansioso por impressionar os seus amigos boémios que está propositadamente a ter maus resultados, por desejar ardentemente sentir-se aceite. Uma mãe assim ajuizará correctamente que o seu filho não está a florescer, que não está a viver a vida rica que poderia viver. Se o filho a considerar intrometida e lhe disser que é feliz e que quer que o deixem em paz, poderá muito bem não estar em posição de ajuizar correctamente a sua circunstância, em virtude da sua obstinação cega. Se alguém agora quiser insistir que o adolescente é contudo feliz, então basta sublinhar que não está em condição de satisfazer os critérios do bem último que aceitámos. Uma vez mais, não vale a pena fazer uma questiúncula sobre se devemos traduzir eudaimonia por felicidade. O que conta quanto ao caso em questão é se o rapaz está a ter a melhor vida que pode, se aquilo a que chama felicidade satisfaz de facto os critérios do bem humano último que aceitámos.

Na verdade, insiste Aristóteles, podemos ver que algumas concepções comuns de felicidade não obedecem a estes critérios, e consequentemente têm de ser postos de lado. Um desses é obviamente a vida de quem se dedica a fazer dinheiro (Ética a Nicómaco 1096a 6-11). Aristóteles não desacredita neste contexto o dinheiro em si mas observa, correctamente, que é um bem instrumental. Se é meramente um instrumento, então o dinheiro não é digno de escolha em si mesmo e portanto viola o primeiro dos nossos critérios, nomeadamente que o bem último seja escolhido por si. Caso se responda que o dinheiro é mesmo assim uma coisa boa, em virtude do que permite obter, Aristóteles poderá estar disposto a concordar; mas então teremos de voltar a nossa atenção para as coisas que o dinheiro compra para determinar se podem constituir o bem último. Aristóteles tem outras reservas sobre a vida de honra (Ética a Nicómaco 1095b 23-1096a 4). Certamente que viver honradamente é uma coisa boa. Mesmo assim, se procurarmos a honra como um bem em si, estaremos a ceder a nossa felicidade aos caprichos alheios: as pessoas podem ser volúveis e tolas, honrando por vezes quem não tem valor e não honrando quem o tem. O bem final, em contraste, é algo “genuinamente nosso e difícil de nos ser tirado” (Ética a Nicómaco 1095b 24-26). Parece, então, que a honra não é completa (teleion) nem auto-suficiente (autarkês). Em qualquer caso, a sua presença, que poderá ser ardilosa, não é suficiente para que nada falte a uma vida.

Talvez o candidato mais forte ao estatuto de bem final seja o prazer. Afinal, o prazer é uma coisa boa, e é escolhido por si mesmo e não por qualquer outra coisa além de si. Além disso, é geralmente encarado como a melhor coisa da vida, aquilo que na verdade procuramos acima de qualquer outra coisa. Para compreendermos a atitude de Aristóteles perante o prazer é necessário e instrutivo reconhecer até que ponto o seu objectivismo ético se baseia na sua teoria psicológica subjacente.6 Vimos que Aristóteles reconhece que todos os seres vivos têm alma, mas supõe também haver uma hierarquia entre os seres vivos, começando com as plantas, que têm apenas nutrição, passando pelos animais inumanos, que acrescentam a percepção à nutrição, e acabando nos seres humanos, que são também racionais. Isto explica por que razão Aristóteles usa uma linguagem bastante dura com respeito aos hedonistas:

A multidão mais grosseira considera que o bem e a felicidade é o prazer, e consequentemente adoram uma vida de gratificação […] Assim, parecem completamente escravizados, dado escolherem uma vida que pertence aos ruminantes. Mas têm realmente um argumento em sua defensa, dado que muitos dos poderosos […] têm a mesma convicção. (Ética a Nicómaco 1095b 16-23)

Os hedonistas encaram-se como vacas, ruminando nos campos, vivendo pelo prazer e por nada mais.

Ao rejeitar a perspectiva da multidão, Aristóteles não está apenas a ser desdenhoso com a sua retórica arrogante. O que ele quer dizer é que quem procura apenas o prazer ignora o facto de serem animais racionais, dando-se ao invés a si mesmos o género de gratificação possível para quem é destituído de mente. Ao falar desse modo, Aristóteles parece sublinhar o prazer físico em detrimento do intelectual, e parece sugerir que quem procura o prazer se situa numa posição inferior na hierarquia das almas, pois limita-se à gratificação sensual na ausência de actividade intelectual. Um modo de ajuizar a correcção da perspectiva de Aristóteles é conceber a possibilidade (talvez não muito distante) de um comprimido cor-de-rosa do prazer. Dão-nos a possibilidade de tomar um comprimido cor-de-rosa do prazer. Se o fizermos, sentiremos prazer físico para o resto dos nossos dias. Contudo, nada faremos, não formaremos planos, não procuraremos atingir fins. Limitar-nos-emos a sentar-nos num sofá para o resto dos nossos dias, sentindo prazer, sendo alimentados, e sendo lavados uma vez e outra. Todos os nossos dias serão de prazer, apesar de termos abdicado de toda a actividade e de toda a associação autêntica.

Escolhemos tomar o comprimido cor-de-rosa do prazer ou não?

A pergunta não é, é claro, um argumento, mas um simples apelo à intuição. Mesmo assim, se não escolhemos tomar o comprimido cor-de-rosa do prazer, isso indica que não estamos inclinados a encarar pelo menos esta forma de prazer como o melhor que a vida tem para oferecer. Pensamos que as nossas vidas têm possibilidades mais elevadas, que o bem final para os seres humanos nos leva para lá do domínio do prazer físico. O prazer, note-se de novo, é de facto bom. Não é isso que está em questão. O que está em questão é saber se é o bem último para os seres humanos. A teoria psicológica de Aristóteles fornece razões para adoptar uma teoria ética que não eleve o prazer a essa posição.

Vimos assim até agora Aristóteles fazer o seguinte: argumentou que há um bem último para os seres humanos; estabeleceu critérios pelos quais quaisquer pretendentes a este papel possam ser avaliados; e permitiu que possamos considerar que o bem último é a felicidade, ou eudemonia, mas insistindo que algumas concepções de felicidade, consideradas como o bem humano último, podem ser superiores a outras; insistiu que as concepções subjectivas de felicidade devem ser rejeitadas a favor de concepções objectivas; e argumentou que, dadas estas exigências, há três concepções amplamente aceites de felicidade — vidas de dedicação ao dinheiro, à honra e ao prazer físico — não estão à altura do que se pretende. A sua rejeição do prazer físico foi especialmente importante na medida em que usou livremente a metafísica da psicologia humana desenvolvida no enquadramento hilomórfico do seu De Anima. Neste ponto, Aristóteles pressupõe que tem justificação para apelar às características essenciais dos seres humanos para tentar explicar qual é a melhor forma de vida à nossa disposição. Aristóteles não tenta mostrar que devemos de facto desejar a melhor forma de vida à nossa disposição, pois dá como garantido que as pessoas querem o que é de facto bom para elas e não apenas o que parece bom sem que o seja de facto. O que é realmente bom para os seres humanos, contudo, é determinado pelo que os seres humanos são por natureza. A natureza dos seres humanos só se revela, contudo, refletindo nas estruturas teleológicas em termos das quais a função humana pode ser especificada e compreendida."